terça-feira, 31 de dezembro de 2024

A TOLERÂNCIA PARA COM OS JUDEUS NA GALIZA MEDIEVAL

 Carlos Barros

Ao étimo latino tolerantia, sofremento e paciência, vigorante na Idade Média (1), acrescenta-se posteriormente, mormente a partir do Iluminismo, um segundo significado mais positivo referido à alteridade, onde ser tolerantes acarreta a admisom do outro.

 

É o nosso intuito, tomando como exemplo a Galiza medieval, estudar a tolerância cristã para com a minoria judaica, como prática consciente da sociedade cristã mais do que como conceçom intelectual. Reequilibrando, portanto, a focagem tradicional da investigaçom, centrada de mais -nom por acaso- na constante antissemita. Questionando a historia a partir dos problemas do presente (2), aprendendo para hoje e para amanhã das experiências do passado, no nosso caso do serpentino processo histórico medieval que conduziu, após um convívio secular, à expulsom dos Judeus em 1492 de Espanha e em 1496 de Portugal.

 

Em termos psicológicos a tolerância, o conceito-ferramenta desta análise, poder-se-ia definir como umha atitude -e umha conduta- baseada na flexibilidade e no autocontrolo nas respostas aos estímulos externos que entram em contradiçom com as nossas crenças e opiniões. Umha predisposiçom -e a prática consequente- ao convívio pacífico com os que pensam ou são diferentes a nós no tocante à religiom, raça, nacionalidade, estatuto social ou ideologia. O eu tolerante comporta a aceitaçom e o respeito ao outro; tratando-se dumha identidade com base na alteridade. Umha atitude tolerante nom admira, por conseguinte, renuncia às próprias convições, mantém o desacordo com as crenças contrárias, presupõe o convencimento do outro através do diálogo e nom pola força. O uso da violência para impor determinadas crenças ou ideologias, eliminando àqueles que nom as compartilham, assinala o momento de predomínio da intolerância; isto é, a predisposiçom à exclusom do outro, frequentemente de forma física, com ajuda do desterro, da tortura ou da morte.

 

A Galiza medieval foi tolerante para com os Judeus e esteve à margem de ataques antissemitas

Foi norma geral dos autores (3) que se ocuparam dos Judeus na Galiza medieval destacar o predomínio da tolerância sobre a exclusom e a notória ausência do Reino da Galiza das listas de pogromos no final da Idade Média (4). Amador de los Ríos diz do reino medieval de Galiza: “onde rara vez foram os Judeus vítimas das iras populares” (5). De jeito que se a investigaçom sobre os Judeus se centrasse, unilateralmente, na mentalidade e na prática antissemita, poder-se-ia dizer que a Galiza hebraica mal existiu. A Galiza é logo, ao nom trespassar o antijudaísmo popular o limiar da violência durante a Idade Média, o palco ajeitado para estudar o peso da tolerância nas relações judaico-cristãs, sem que isso queira dizer: nem que se possa extrapolar, sem mais, a específica situaçom galega ao conjunto dos reinos de Castela e Leom, nem que se devam eludir as necessárias revisões daqueles estudos das relações judaico-cristãs na Península Ibérica que giraram, exclusivamente, por volta do tema antissemita.

 

Nom apenas a Galiza ficou à margem da onda violenta antissemita, as matanças de 1391 em Castela e na Catalunha também nom se espalharam para Leom, Portugal e Navarra (6). Do ponto de vista tipológico, no final da Idade Média, os movimentos antisenhoriais surgem com mais intensidade a norte da Coroa de Castela, particularmente na Galiza, e os movimentos anti-judeus manifestam-se com mais força a sul, especialmente na Andaluzia, donde partem justamente os pogromos de 1391 (7). Estas diferenças regionais, no ámbito dos reinos de Castela e Leom, no “nível de manifestações de antissemitismo” (8), também se detetam logicamente a respeito do nível de tolerância para com os Judeus (9). O legislador sabe-o, é por isso que no Ordenamento de Alcalá de 1348, ao limitar as compras dos Judeus, a fim de que nom incrementassem sem controlo os seus bens patrimoniais, mostra umha maior permisividade a norte do Douro, “Duero allende”, nos reinos portanto da Galiza, Astúrias, Leom e nas províncias bascas, do que a sul do rio, “Duero aquende”: “de Duero allende fasta en quantia de treynta mill mr. cada uno desque ouier casa por sy; et de Duero aquende por todas las otras comarcas fasta quantia de veynte mill mr. cada uno como dicho es” (10).

 

Quanto mais tolerância, conversões mais sinceras (menos forçadas). É opiniom comum nas fontes narrativas do século XV que os conversos do norte (Castela a Velha) eram mais autênticos do que os conversos do sul (Castela a Nova e, mais ainda, a Andaluzia), de pior sona perante os cristãos-velhos, polo qual a Inquisiçom do final da Idade Média concentrou a sua atuaçom na banda do meio-dia (11). Este clima crescentemente convivencial conforme nos movermos para o norte e ocidente, está ligado -segundo alguns autores- ao menor número de localizações com presença judaica medievais (12), e sublinha, em qualquer caso, a representatividade da tolerância galega no quadro peninsular.

 

Perante a evidência e espetacularidade do antissemitismo triunfante em Castela, passa desapercibido o seu contraponto tolerante, apesar da sua continuidade temporal -ressurge mesmo nos locais mais afetados polas matanças de 1391-, daí a luz que joga sobre esta tendência, agachada em Castela, o estudo de situações menos crispadas como a galega.

 

Localizaçom das principais Judiarias galegas | Raigame nº11 (2000)

 Das judiarias galegas medievais conservam-se menos pegadas documentais (13) do que as judiarias castelhanas (14), de resto, mais importantes e conflitivas; apesar disso, sabe-se dos Judeus da Galiza medieval mais que do resto do norte peninsular (15), incrementando-se os dados no século XV (16). Em vésperas da expulsom, entre 1474 e 1491, conhece-se polos impostos reais que pagavam as alfamas (serviços, meio serviços e repartimentos para a guerra de Granada) em que cidades galegas existiam, nessa altura, comunidades judaicas significativas (embora a lista de lugares onde está documentada a presença medieval de Judeus na Galiza seja mais ampla): AlharizBaionaBetançosCorunhaMonforteOurensePontedeumeRibadávia e Ribadeu (17). A quantía de maravedis assignados situam, abaixo das alfamas castelhanas, aos Judeus galegos que viviam em ditas vilas (18), confirmando o seu número relativamente reduzido (19).

 A atitude da maioria cristã para com a minoria judaica é, dum ou doutro modo, questom de subjetividade, umha problemática mais qualitativa do que quantitativa (20). A fraqueza numérica judaica favorecia por um lado a integraçom e a tolerância, ao sentir-se menos ameaçada a hegemónica sociedade cristã, mas nem por isso deixava de atuar o antijudaísmo de modo extremo, agrandando imaginariamente a envergadura dos inimigos da fé (21). José María Monsalvo notou o papel da psicologia social (22) para explicar a nom extensom das matanças de 1391 ao norte castelhano, apesar do tamanho das suas alfamas, por exemplo a Burgos (120-150 famílias), a segunda maior judiaria depois de Toledo (23). O desencadeamento da ira popular contra os Judeus nom precisa realmente oponentes numerosos, mas fatores catalizadores, um universo mental propício -a invençom do outro, materializada em falsas acusações, divulgada a miúde por pregadores exaltados- e umhas latentes tensões sociais que nom disponhan doutra válvula de escape que agitar convenientemente um geralizado estereótipo medieval (24), com origens e prolongamentos que remetem a longa duraçom.

 

A tolerancia como alteridade

A tolerância como integraçom

Anti-judaísmo nobiliário

Da tolerância à fraternizaçom

Modernidade do estereotipo antijudaico

Afastamento e expulsom

Resistencia à Santa Inquisiçom castelhana

 

Capa do nº11 de Raigame especial sobre Judeus na Galiza (novembro de 2000)

Antes de mais, para indagarmos as causas da particular atitude da sociedade hegemónica na Galiza face a minoria judaica deparamo-nos com o argumento quantitativo: com certeza, o número dos Judeus galegos era pequeno se bem que no século XV a situaçom muda sensivelmente nalgumhas cidades. Por outro lado, a posiçom económica abastada dos Judeus mais conhecidos, nom compensa a inferioridade numérica quando se estabelecem relações de força entre as duas comunidades?.

 

Os casos estudados nesta análise -Alhariz e Ourense- avalizam umha resposta asertiva. Mas, a questom de fundo é que a fraqueza numérica das comunidades judaicas favorece, com efeito, a tolerância da maioria cristã mas nom explica, polo contrário, a baixa intensidade do antissemitismo na Galiza: o antissemitismo, em boa medida imaginário e irracional, nom precisa, de qualquer forma, um elevado número de Judeus para se manifestar, segundo referido.

 

Como a inquietaçom pola homogeneizaçom religiosa provém do Estado que emerge em Castela e Aragón, na transiçom da Idade Média para a Idade Moderna, e o Reino da Galiza estava na periferia desse novo poder tendencialmente uniformador, pode, sem dúvida, esta marginalidade política ter facilitado a pervivencia dumha tradiçom medieval alicerçada na admisom do outro. A fraqueza da monarquia -e dos seus aparelhos administrativos e ideológicos- no Reino da Galiza atranca o trânsito do outro admitido para o outro excluído, a homologaçom da Galiza com o resto da penísula. A resistência à mudança das mentalidades coletivas desempenha, neste caso, em prol da manutençom da tolerância medieval como regra de comportamento.

 

O antissemitismo era umha usual válvula de escape das tensões sociais no final da Idade Média, embora sem ser-se a que punha em causa o sistema estabelecido. Se na Galiza do final dessa altura o judeu nom foi a vítima propiciatoria por excelência é porque existiam outras vítimas propiciatórias que concitavam mais fortemente a revolta, que mobilizabam mais fundamente o imaginário popular: as fortalezas senhoriais. A acuidade do confronto social entre vassalos e senhores no século XV galego torna, portanto, menos necessária a invençom de inimigos imaginários.

 

Carlos Barros Guimeráns, historiador galego especialista em história medieval da Galiza, exerce como professor de História Medieval na Universidade de Santiago de Compostela

 

Traduçom livre para o galego-português da versom galega atualizada de "El otro admitido. La tolerancia hacia los judíos en la Edad Media gallega"/Xudeus e conversos na historia. I. Mentalidades e cultura (Congresso de Ribadávia, outubro 1991), Carlos Barros (ed.), Santiago, 1994, pp. 85-115; “O outro admitido”, ¡Viva El-Rei! Ensaios medievais, Vigo, 1996, pp. 75-115.

 

1 Tolerare é padecer, sofrer, comportar, sustentar, durar, “Universal Vocabulario” de Alfonso de Palencia. Registro de voces españolas internas (1490), John M. HILL (ed.), Madrid, 1957, p. 185; tem este mesmo sentido quando as pessoas afirmarem nom suportar os danos intoleráveis, Mentalidad justiciera, pp. 96, 113-116.

2 A renascença do racismo, do antissemitismo e do nacionalismo agressivo, e apesar da auge do fundamentalismo religioso, colocam na tona o tópico da tolerância/intolerância face o diferente pola sua religiom, raça ou nacionalidade; veja-se umha análise histórica da ideia de tolerância, a recuperarmos hoje face o incremento do fenómeno da intolerância, ideologia e prática da nom aceitaçom da diversidade, en “L’intolleranza: uguali e diversi nella storia” (Congreso Internacional, Bolonha, dezembro 1985; em colaboraçom com Anistía Internacional), Bolonha, 1986, p. 9; o mesmo ano tevo lugar um outro colóquio semelhante em París: “La Tolérance” (XIIIe Colloque International de Recherches sur les civilisations de l’Occident moderne, 1985), París, 1986.

3 Benito F.ALONSO “Los judíos en Orense (siglos XV al XVII)”, Boletín de la Comisión de Monumentos de Orense, II, 1904, pp. 166, 182; Leopoldo MERUÉNDANO, Los judíos de Ribadavia (1915), Lugo, 1981, pp. 6-7, 13-15, 24-25; Carlos DEAÑO,”Judíos”, Gran Enciclopedia Gallega, XVIII, 1974, pp. 120-123; José Ramón ONEGA, Los judíos en el Reino de Galicia, Madrid, 1981, pp. 199, 247, 272, 280, 291, 326, 361, 365, 407, 417, 443, 543; Anselmo LÓPEZ CARREIRA, “Os xudeos en Ourense no século XV”, Boletín Auriense, XIII, 1983, pp. 164-165, 168.

4 Salvo o assalto da sinagoga de Ourense en 1442 por parte do bando nobiliar dos Cadórnigas, que entra dificilmente no conceito de motim popular antissemita.

5 Refere apenas a agressom, seguida de saque, dos Judeus de Ribadávia, em 1386, por parte das tropas estrangeiras do Duque de Lencastre, apontando que “o odio contra la raza hebrea no arraigaba sólo en los españoles”, José AMADOR DE LOS RÍOS, Historia de los judíos de España y Portugal, tomo II, Madrid, 1984, pp. 329-330; tomo III, Madrid, 1984, p. 647.

6 Yitzhak BAER, op. cit., II, Madrid, 1981, pp. 386, 395, 402, 439; David ROMANO, “Los judíos de la Corona de Aragón en la Edad Media”, España. Al-Andalus, Sefarad: síntesis y nuevas perspectivas, p. 156.

7 Julio VALDEÓN, Los conflictos sociales en el reino de Castilla en los siglos XIV y XV, Madrid, 1975, p. 50.

8 José María MONSALVO ANTÓN, Teoría y evolución de un conflicto social. El antisemitismo en la Corona de Castilla en la Baja Edad Media, Madrid, 1985, p. 7.

9 A indissociabilidade e complementareidade das atitudes antijudaicas e tolerantes transformam este sistema mental e social de dupla tendência numha sorte de vasos comunicantes.

10 Cortes de los antiguos reinos de León y Castilla, I, Madrid, 1861, p. 533.

11 Julio CARO BAROJA, Los judíos en la España moderna y contemporánea, I, Madrid, 1986, pp. 145, 158.

12 Julio CARO BAROJA, op. cit., pp. 45, 50, 58, 60-61; Yitzhak BAER, op.cit., pp. 153, 155, 159.

13 O problema fundamental é a perda, na Galiza, da maior parte dos arquivos medievais dos concelhos urbanos, nos casos -como o de Ourense- em que se conservaram melhor as atas municipais os dados abondam.

14 Da Coroa de Castela também se preservaram menos documentos que da Coroa de Aragom, David ROMANO, op. cit., p. 154.

15 Julio CARO BAROJA, op. cit., p. 60.

16 No século XV cresceu o número de Judeus na Coroa de Castela, mormente nas pequenas povoações, Yitzhak BAER, op.cit., II, pp. 504-505; por outro lado, as conversões maciças nos lugares onde houve matanças, em 1391, destacam a importância religiosa e política das comunidades judaicas do norte e do noroeste.

17 Luis SUÁREZ FERNÁNDEZ, Documentos acerca de la expulsión de los judíos, Valladolid, 1964, pp. 66, 68, 69,79.

18 Na relaçom de 1474 os Judeus galegos nom aparecen como alfama mas como os Judeus que moram em, o que parece provar umha menor entidade, Luis SUÁREZ FERNÁNDEZ, op. cit., p. 79.

19 O número de 1500 Judeus que Froissart diz que viviam en Ribadávia nos finais do século XIV constitui, com toda evidência, o típico exagero, Kervyn LETTENHOVE (ed.), Oeuvres de Froissart. Chroniques (1386-1389), XII, Bruxelles, 1871, p. 86.

20 Nem sequer as mais grandes comunidades judaicas de Espanha -que sem dúvida eram muito maiores do que as do resto da Europa- superaram nunca as 200-400 famílias. A cultura hebraica floresceu mesmo nos núcleos mais pequenos, facto que merece atençom, pois é muito importante para entendermos bem a vida social e religiosa daqueles dias, Yitzhak BAER, op.cit., p. 158.

21 Segundo os regimentos de 1432, em todo lugar onde morassem mais de 10 cabeças de família judaicas estavam obrigados a ter sinagoga, Yitzhak BAER, op.cit., II, p. 517.

22 José María MONSALVO ANTÓN, Teoría y evolución de un conflicto social. El antisemitismo en la Corona de Castilla en la Baja Edad Media, Madrid, 1985, p. 262.

23 Yitzhak BAER, op.cit., I, pp. 155-156.

24 A universalidade do estereótipo unifica o imaginário antijudaico nos territorios de Castela e, além, em todo o Ocidente Medieval, José María MONSALVO ANTÓN, Teoría y evolución de un conflicto social. El antisemitismo en la Corona de Castilla en la Baja Edad Media, Madrid, 1985, p. 114.

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