Carlos Barros
No ano
1457 tem lugar em Ourense, durante o casamento do fidalgo Álvaro Suares, um facto
singular: a reconciliaçom, por iniciativa dos anfitriões cristãos, de duas famílias
judaicas enfrontadas (duas mulheres eram presas por pelejarem). A ata notarial
refere: “estando ende a sua muller nóvea e esas donas onrradas da çibdade e fidalgos
et escuderos trabtaron en maneira que fosen amigas et amigos nos outros todos
los judios et que eran presos, por lo qual se abraçaron et perdoaron a rogo de
aqueles fidalgos et donas” (1). O ato de reconciliaçom acontece sob a proteçom
do concelho: “en presença de Vasco Gomes, alcallde e regidor da dita çibdade,
que as tenía presos, et pera os poer en concordia poso, pena de seys çentos
mrs, que usasen de boas obras unos e outros e se onrrasen” (2). O alcaide aceita
e ratifica legalmente a resoluçom dos noivos e os outros fidalgos cristãos,
libertando do cárcere municipal as mulheres judias enfrontadas; as quais, no dia
seguinte, comparecem com os seus homens na sinagoga junto dum tribunal
arbitral judaico para dirimir pacifica e legalmente as suas diferenças (3),
repondo-se deste modo a autonomia judicial da alfama.
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Encenaçom dum casamento judaico durante a Festa da Istória de Ribadávia |
Estes fidalgos cristãos, conciliadores de Judeus, fazem um bom uso da sua
autoridade: nom aproveitam a ocasiom para impor a superioridade da religiom
maioritária. A integraçom dos Judeus na sociedade de Ourense nom era
uniformadora, como bem se sabe, comportava certo respeito pola sua religiom e a
sua autonomia judiciária. Relativamente a direitos civis tratam mesmo os Judeus
como se fossem cristãos, sem os obrigar a serem cristãos. Isto, mais do que
admitir o outro, é já fraternizar com ele, quebrando a ideia hierárquica de que
“un no-cristiano no es un verdadero hombre. Sólo un cristiano, por lo
tanto, puede gozar de todos los derechos humanos” (4).
O
casamento cristão-judaico de Ourense transgredia a legalidade tanto judaica
como cristã (se bem que a maior vulneraçom que se produzia era a das normas
legais vigorantes; isto é, cristãs). As Sete Partidas proibem explicitamente
os banquetes conjuntos: “que ningund christiano, nin christana non combide a
ningun judio, nin judia nin reciba otrosi conbite dellos para comer nin bever” (5).
As leis de Valhadolid de 1412 impedem
os Judeus de participarem nas festas dos cristãos (6). Prescreve, em 1460, o
confessor de Enrique IV, Alonso de Espina, na sua Fortalitium Fidei: “no
pudiendo comer unidos ni convidarse mutuamente” (7). As leis e costumes judaicos,
por outro lado, desautorizavam que os Judeus levassem as suas diferenças perante
os juízes cristãos (8), e, subentende-se, menos aínda perante simples vizinhos
(embora sejam fidalgos). Os casamentos, festas e banquetes populares tinham na
Idade Média, polo comum, umha finalidade igualitária, implicavam tal inversom
de valores, que se comprende bem o pouco caso que se fazia de normas e intençom
discriminadoras como as referidas.
O Padre Mariana, no início do século XVII, justifica
a implantaçom da Santa Inquisiçom em Castela “a causa de la grande libertad de
los años pasados y por andar moros y judíos mezclados con los cristianos en
todo género de conversación y trato” (9). Na Galiza, em meados do século XV, andavam mais do que misturados:
irmandados em casamentos e revoltas. A 25 de abril de 1467, relata um cônego de
Ourense quando se aprestava a fazer parte no assalto irmandinho a Castelo
Ramiro -açom rebelde que segundo ele “fazia por força”-: “os de Santa Yrmandade
avían lançado pregón que leigos e clérigos, judíos e mouros, fosen derribar o
castelo Ramiro” (10). O sentido igualitário e justiceiro da revolta ignorava as
diferenças étnico-religiosas e da própria hierarquia da igreja. Foi referido o carácter autónomo dalgumhas concepções populares sobre a religiom que afloram com a mentalidade irmandinha da revolta (11). Por outro lado,
dada a trajetória das relações cristão-judaicas em Ourense, também nom tem porque
surpreender muito a unidade de açom em 1467.
Quer
isto dizer que desaparecem, com a revolta antisenhorial, as atitudes antissemitas?
Dez dias antes de dito testemunho oral do precavido cônego, umha irmandade
local devolve a granja de Reza ao mosteiro de San Miguel de Bóveda, que antes
fora subtraída aos freires por Diego Pérez Sarmiento, conde de Santa Marta,
através justamente do seu mordomo e arrecadador Abraham de León, conhecido judeu
de Ourense. Os camponeses que trabalhavam na granja de Reza, testemunham contra
o mordomo dos Sarmiento no dito ato de restituiçom irmandinha, identificando-o
como judeu ladrom no momento de reproduzir umha frase -“¡como agora engañei a
señora abadesa con un rabo de pescado…!” (12)-, com a qual Abraham de León se
vangloria de se ter apossado enganosamente da granja de Reza para o seu senhor
Sarmiento. Esta leve manifestaçom antijudaica sai à tona movida polas atitudes
antisenhoriais, que decorrentemente situavam os Judeus galegos no bando dos
populares. O comentário citado nom deixa de ser, portanto, um fenômeno marginal
na primavera insurreicional de 1467, dominada pola revolta urbana e rural
igualitária de “leigos e clérigos, xudeus e mouros”, fruto de muitos anos de
integraçom e relações amigáveis. Os que foram defendidos como vítimas polos
populares são agora cabalmente convocados como rebeldes contra o velho inimigo
comum, materializado em Ourense na fortaleza de Castelo Ramiro, que nom por
acaso em 1446, quatro anos despois de ser tomada por assalto a sinagoga, estava
nas mãos dos homens do mesmíssimo Pedro Díaz de Cadórniga (13).
Em
resumo, a conflitividade social no final da Idade Média nom transforma na Galiza
a tolerância em perseguiçom. Polo contrário, medra e metamorfoseia em
fraternizaçom. Em meados do século XV, a alteridade devém pois identidade, em
certo sentido o outro é, agora, como se fosse o eu. Produz-se umha inversom de
valores que, apesar do seu carácter temporário, resulta bem significativa. Os
galegos da época, segundo a documentaçom e os factos conhecidos, mais do que
segregar, discriminar e fustrigar os Judeus, procurando culpados como meio de
sublimar e descarregar tensões, chegam a fazer deles amigos de voda e irmãos na
luta justiceira antinobiliar.
Compreende-se
muito mellor o valor destes momentos de confraternizaçom galega entre cristãos
e Judeus comparados com os massacres que, nessa altura, acontecem em
Castela e Leom: o confronto armado, em julho de 1467, entre
conversos e cristãos velhos em Toledo, e as matanças de Judeus em Sepúlveda
(1468) e em Tolosa (1469) (14). Nos anos 50 e 60 do século XV, enquanto no Reino
da Galiza se formam as precondições socio-psicológicas dumha grande revolta
contra os senhores das fortalezas, em Castela e Leom agudizam-se as tensões
antissemitas e põem-se as bases mentais para o édito de expulsom de 1492 (15).
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O processo de "domesticaçom e castraçom do Reino da Galiza" inoculou o vírus antissemita no corpo social galego e deu cabo das relações amigáveis com os Judeus 📷 Terra e Tempo |
A dependência
política da Galiza da recentemente fortalecida monarquía castelhana obrigará a implementar
nas cidades galegas a nova e definitiva legislaçom antijudaica. A integraçom da
Galiza no Estado dos Reis Católicos e logo depois da Casa dos Áustrias, acarretará a perda progressiva de certas liberdades medievais, nomeadamente, a antiga
tradiçom dumhas relações liberais e amigáveis entre Judeus e cristãos. Dito
isto, cabe insistir em que estas boas relações nom apagaram as correntes antijudaicas
da Galiza medieval (que terão nos tempos modernos um contexto institucional mais
favorável). Porque nom existe tolerância sem o contraponto antijudaico. O
problema é saber o que resulta hegemónico em cada lugar e em cada momento.
Carlos Barros, historiador
galego especialista em história medieval da Galiza, exerce como professor de
História Medieval na Universidade de Santiago de Compostela
Traduçom livre para o galego-português da
versom galega atualizada de “El otro admitido. La tolerancia hacia los
judíos en la Edad Media gallega”/Xudeus e conversos na historia. I.
Mentalidades e cultura (Congresso de Ribadávia, outubro 1991), Carlos Barros
(ed.), Santiago, 1994, pp. 85-115; “O outro admitido”, ¡Viva El-Rei! Ensaios
medievais, Vigo, 1996, pp. 75-115.
1 Tem
certa significaçom, no quadro do modelo cabaleiresco, a relaçom que estabelece
o texto entre a condiçom fidalga dos mediadores e o objetivo perseguido de
amizade e concórdia.
2 Xesús FERRO
COUSELO, op. cit., p. 321.
3 ídem, p. 232.
4 Jacques LE GOFF, op. cit., p. 215.
5 Partidas VII, 24, 8.
6 Yitzhak BAER, op.cit., II, p. 440.
7 José AMADOR DE LOS RÍOS, Historia de los judíos
de España y Portugal, III, Madrid, 1984, p. 399.
8
Yitzhak BAER, op.cit., I, p. 145.
9 “Historia de España”, Obras del Padre Juan de
Mariana, II, Madrid, 1854, p. 202.
10 Xesús
FERRO COUSELO, op. cit., p. 375.
11 Mentalidad justiciera, pp. 143-145.
12 Xesús FERRO COUSELO, op. cit., p. 146.
13 Xesús FERRO COUSELO, op. cit., II, p. 260.
14 José
AMADOR DE LOS RÍOS, Historia de los judíos de España y Portugal, III, Madrid,
1984, pp. 147-152, 648; Angus MACKAY, “Popular movements and progroms in
fifteenth-century Castile”, Past and Present, nº 55, 1972, pp. 34-35.
15 José María MONSALVO ANTÓN, Teoría y evolución de
un conflicto social. El antisemitismo en la Corona de Castilla en la Baja Edad
Media, Madrid, 1985, pp. 297 ss.