quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

HISTÓRIA DOS JUDEUS EM PORTUGAL

 No próximo 2 de fevereiro será apresentada a 7a ediçom da "Breve História dos Judeus em Portugal", o novo livro do historiador Jorge Martins, no Museu Damião de Góis e das Vítimas da Inquisição, em Alenquer, polas 16 horas.



O livro será apresentado por 𝐏𝐞𝐝𝐫𝐨 𝐄𝐬𝐜𝐚𝐣𝐚, especialista e formador em herança sefardita.

 



Eis o índice da "Breve História dos Judeus em Portugal".





segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

MODERNIDADE DO ESTEREÓTIPO ANTIJUDAICO

 Carlos Barros

A constituiçom nas mentalidades coletivas dum imaginário antijudaico é inseparável do espalhamento dumha série de falsas acusações, suspeitosamente universais. Que o estereótipo antijudaico fique constante apesar da diversidade histórica e geográfica de situações (1), revela o seu carácter induzido e a cumplicidade das instituições interessadas.

 

Que dados ilustram esta invençom do outro na Galiza? No fim do século XVIII, Manuel Risco recolhe da obra antissemita de Alonso de Espina “Fortalitium Fidei” (1460) um facto atribuído ao bispo de Lugo, García Martínez de Bahamonde (1452-1456), que estava a batizar um judeu quando “este contó como se halló presente à un horrendo espectáculo que celebraron los Judios en la Ciudad de Saona de la Republica de Genova, matando cruelisimamente à un niño christiano, cuya sangre comieron mezclando con ella algunas frutas” (2). Este assassinato ritual dumha criança cristã nom teve lugar na Galiza mas na Itália. Os transmissores cultos são prelados e escritores cristãos: o bispo García Martínez, o clérigo Espina e o agostinho Risco.

 

Ao século XVIII também remonta a fabulaçom de que os Judeus de Monforte açoutavam “en su infame Sinagoga” a imagem de Jesus Cristo “que ay en la Sacristia y Celda de los Padres Guardianes”, a qual milagrosamente deu vozes que alertaram os franciscanos que pegaram nela e alertaram a Inquisiçom que “prendió y castigó a los judíos” (3). Este anacronismo de situar umha sinagoga em Monforte de Lemos na altura da Inquisiçom, é evitado em Ribadávia polos produtores dumha tradiçom culta semellante (que passou depois à tradiçom oral): umha imagem de Cristo estava a ser açoitada por conversos judaizantes que se reuniam os sábados na casa da Coenga, até que interveio a Inquisiçom procesando os profanadores; daí o dito: “Os xudíos de Ribadavia iban azoutar o Cristo á Coenga” (4). Enfim, a própria Inquisiçom propagava estas fantásticas acusações sacrílegas contra os falsos conversos, quando os seus delitos principais consistían em seguir a praticar clandestinamente a religiom dos seus velhos.

 

Casa da Coenga (freguesia de Ventosela) onde, segundo a tradiçom oral antissemita, os conversos de Ribadávia se juntavam para maltratar umha imagem de Cristo

Para além dos rituais universais de matar crianças cristãs e injuriar Jesus Cristo crucificado, nom podía faltar na Galiza do Antigo Regime novas sobre a profanaçom de hóstias sagradas. Em 1726 Muñoz de la Cueva, bispo de Ourense escreveu que em 1671 produzira-se um roubo na igreja dos jesuítas da cidade, desaparecendo as hóstias sagradas, encaminhando logo a seguir o dedo acusador contra os descendentes dos Judeus, se calhar porque a sinagoga segundo diz Onega- esteve colocada no mesmo lugar onde agora estavam instalados os jesuítas. Os espetaculares atos religiosos en desagravo pola profanaçom evidenciam o clima mental inquisitorial da época (5). O contrário do clima de tolerância detetado no Ourense medieval. Por algo todas as referências referidas ao estereótipo antijudaico são modernas, de origem culta e eclesiástica, e estão ligadas, dum jeito ou doutro, à mentalidade inquisitorial implantada, com sucesso e ritmo desiguais, polas instituções do novo Estado.

 

Carlos Barros, historiador galego especialista em história medieval da Galiza, exerce como professor de História Medieval na Universidade de Santiago de Compostela

 

Traduçom livre para o galego-português da versom galega atualizada de “El otro admitido. La tolerancia hacia los judíos en la Edad Media gallega”, Xudeus e conversos na historia. I. Mentalidades e cultura (Congresso de Ribadávia, outubro 1991), Carlos Barros (ed.), Santiago, 1994, pp. 85-115; “O outro admitido”, ¡Viva El-Rei! Ensaios medievais, Vigo, 1996, pp. 75-115.

 

1 ídem, pp. 114-115.

2 España Sagrada, tomo XLI, Madrid, 1798, p. 138.

3 Jacobo de CASTRO, Árbol cronológico de la Santa Provincia de Santiago, I, Salamanca, 1722, p. 215.

4 Leopoldo MERUÉNDANO, Los judíos de Ribadavia (1915), Lugo, 1981, pp. 17-18.

5 José Ramón ONEGA, Los judíos en el Reino de Galicia, Madrid, 1981, p. 581.


quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

ACORDO DE CESSAR-FOGO É APROVADO POR ISRAEL E O HAMAS

 João Koat Miragaya


Hoje Israel e o HAMAS acordam um cessar-fogo.


Termos do acordo

Ele é temporário (42 dias), sendo que no dia 16 do acordo começarão as negociações para um acordo permanente.

Durante estes 42 dias, serão libertados 3 reféns israelitas por semana, e 14 na última semana. Começa já no domingo.


A cada civil israelita mulher ou menor de idade, 30 presos palestinianos serão libertados (mulheres e menores, na sua maioria). 

A cada soldada e homem adulto, 50 presos libertados. Soldados homens nom serão libertados neste primeiro estágio. 

Cerca de 220 dos presos palestinianos que serão liberados foram condenados à prisom perpétua, outros 250 a penas de mais que 20 anos. Outros mil foram presos no dia 7 de outubro. Os primeiros nom serão mandados nem para a Faixa de Gaza nem para a Cisjordânia.

Nom se sabe quantos reféns estão vivos ou mortos, e, entre estes 33, sabemos que nem todos estão vivos. Calcula-se que entre 1/3 e 1/2 do total estão mortos, e é razoável supor que o paradeiro de alguns corpos é desconhecido até mesmo por membros do HAMAS.

Israel retirar-se-á do Corredor Netzarim, e os habitantes do norte de Gaza poderão regressar. Do Corredor Filadélfia, Israel nom se retirará de imediato, mas liberará para o controlo do Egito a Passagem de Rafah. Por lá entrará a maior parte da ajuda humanitária. 

Corredores abertos por Israel na Faixa de Gaza


Porque agora?

O acordo é devido a quatro fatores:

1. O enfraquecimento do bloco do Hamas

Após o cessar-fogo com o Hezbollah e a queda do regime Assad na Síria, o HAMAS viu-se isolado. Os seus líderes foram mortos e havia (ainda há) a possibilidade real de colonizaçom civil do norte da Faixa de Gaza. Isso flexibilizou a posiçom do HAMAS.


2. A popularidade do acordo em Israel

Se há alguns meses a base de Netanyahu era contrária a um cessar-fogo, hoje a situaçom mudou completamente. Entre os apoiadores do governo, mais da metade é a favor do acordo, mesmo sem a aniquilaçom do HAMAS. Netanyahu sabe disso.


3. A instabilidade do governo

Até março, o governo Netanyahu precisa aprovar o orçamento, caso contrário o governo automaticamente é dissolvido e são convocadas novas eleições. Os ultraortodoxos impõem a votaçom dumha lei que os isente do alistamento militar como condiçom para votar a favor do orçamento, e parte do governo é contra essa lei (extremamente impopular). Netanyahu sabe que o governo pode cair até março, e, se for para arriscá-lo, é melhor que se dê através dumha medida popular, como a libertaçom dos reféns.


4. A pressom de Trump

Trump impôs a Israel o cessar-fogo até o dia da sua posse, e enviou o seu emissário para o Próximo Oriente para Israel e ao Catar, a fim de deixar isso claro para Netanyahu e para o HAMAS. Netanyahu, aparentemente, nom queria começar mal com Trump.

Donald Trump empezinhou-se em que Israel acordasse um cessar-fogo antes de 20 de janeiro


Ainda é cedo para dizer se o cessar-fogo vai continuar. Serão 42 dias para Netanyahu tentar contornar as crises no seu governo. Caso nom consiga, ele deverá ir até o fim. Caso consiga, pode ser que a guerra retorne. Mas será que Trump permitirá? 

DA TOLERÂNCIA À FRATERNIZAÇOM

 Carlos Barros

No ano 1457 tem lugar em Ourense, durante o casamento do fidalgo Álvaro Suares, um facto singular: a reconciliaçom, por iniciativa dos anfitriões cristãos, de duas famílias judaicas enfrontadas (duas mulheres eram presas por pelejarem). A ata notarial refere: “estando ende a sua muller nóvea e esas donas onrradas da çibdade e fidalgos et escuderos trabtaron en maneira que fosen amigas et amigos nos outros todos los judios et que eran presos, por lo qual se abraçaron et perdoaron a rogo de aqueles fidalgos et donas” (1). O ato de reconciliaçom acontece sob a proteçom do concelho: “en presença de Vasco Gomes, alcallde e regidor da dita çibdade, que as tenía presos, et pera os poer en concordia poso, pena de seys çentos mrs, que usasen de boas obras unos e outros e se onrrasen” (2). O alcaide aceita e ratifica legalmente a resoluçom dos noivos e os outros fidalgos cristãos, libertando do cárcere municipal as mulheres judias enfrontadas; as quais, no dia seguinte, comparecem com os seus homens na sinagoga junto dum tribunal arbitral judaico para dirimir pacifica e legalmente as suas diferenças (3), repondo-se deste modo a autonomia judicial da alfama.

 

Encenaçom dum casamento judaico durante a Festa da Istória de Ribadávia 

Estes fidalgos cristãos, conciliadores de Judeus, fazem um bom uso da sua autoridade: nom aproveitam a ocasiom para impor a superioridade da religiom maioritária. A integraçom dos Judeus na sociedade de Ourense nom era uniformadora, como bem se sabe, comportava certo respeito pola sua religiom e a sua autonomia judiciária. Relativamente a direitos civis tratam mesmo os Judeus como se fossem cristãos, sem os obrigar a serem cristãos. Isto, mais do que admitir o outro, é já fraternizar com ele, quebrando a ideia hierárquica de que “un no-cristiano no es un verdadero hombre. Sólo un cristiano, por lo tanto, puede gozar de todos los derechos humanos” (4).

 

O casamento cristão-judaico de Ourense transgredia a legalidade tanto judaica como cristã (se bem que a maior vulneraçom que se produzia era a das normas legais vigorantes; isto é, cristãs). As Sete Partidas proibem explicitamente os banquetes conjuntos: “que ningund christiano, nin christana non combide a ningun judio, nin judia nin reciba otrosi conbite dellos para comer nin bever” (5). As leis de Valhadolid de 1412 impedem os Judeus de participarem nas festas dos cristãos (6). Prescreve, em 1460, o confessor de Enrique IV, Alonso de Espina, na sua Fortalitium Fidei: “no pudiendo comer unidos ni convidarse mutuamente” (7). As leis e costumes judaicos, por outro lado, desautorizavam que os Judeus levassem as suas diferenças perante os juízes cristãos (8), e, subentende-se, menos aínda perante simples vizinhos (embora sejam fidalgos). Os casamentos, festas e banquetes populares tinham na Idade Média, polo comum, umha finalidade igualitária, implicavam tal inversom de valores, que se comprende bem o pouco caso que se fazia de normas e intençom discriminadoras como as referidas.

 

O Padre Mariana, no início do século XVII, justifica a implantaçom da Santa Inquisiçom em Castela “a causa de la grande libertad de los años pasados y por andar moros y judíos mezclados con los cristianos en todo género de conversación y trato” (9). Na Galiza, em meados do século XV, andavam mais do que misturados: irmandados em casamentos e revoltas. A 25 de abril de 1467, relata um cônego de Ourense quando se aprestava a fazer parte no assalto irmandinho a Castelo Ramiro -açom rebelde que segundo ele “fazia por força”-: “os de Santa Yrmandade avían lançado pregón que leigos e clérigos, judíos e mouros, fosen derribar o castelo Ramiro” (10). O sentido igualitário e justiceiro da revolta ignorava as diferenças étnico-religiosas e da própria hierarquia da igreja. Foi referido o carácter autónomo dalgumhas concepções populares sobre a religiom que afloram com a mentalidade irmandinha da revolta (11). Por outro lado, dada a trajetória das relações cristão-judaicas em Ourense, também nom tem porque surpreender muito a unidade de açom em 1467.

 

Quer isto dizer que desaparecem, com a revolta antisenhorial, as atitudes antissemitas? Dez dias antes de dito testemunho oral do precavido cônego, umha irmandade local devolve a granja de Reza ao mosteiro de San Miguel de Bóveda, que antes fora subtraída aos freires por Diego Pérez Sarmiento, conde de Santa Marta, através justamente do seu mordomo e arrecadador Abraham de León, conhecido judeu de Ourense. Os camponeses que trabalhavam na granja de Reza, testemunham contra o mordomo dos Sarmiento no dito ato de restituiçom irmandinha, identificando-o como judeu ladrom no momento de reproduzir umha frase -“¡como agora engañei a señora abadesa con un rabo de pescado…!” (12)-, com a qual Abraham de León se vangloria de se ter apossado enganosamente da granja de Reza para o seu senhor Sarmiento. Esta leve manifestaçom antijudaica sai à tona movida polas atitudes antisenhoriais, que decorrentemente situavam os Judeus galegos no bando dos populares. O comentário citado nom deixa de ser, portanto, um fenômeno marginal na primavera insurreicional de 1467, dominada pola revolta urbana e rural igualitária de “leigos e clérigos, xudeus e mouros”, fruto de muitos anos de integraçom e relações amigáveis. Os que foram defendidos como vítimas polos populares são agora cabalmente convocados como rebeldes contra o velho inimigo comum, materializado em Ourense na fortaleza de Castelo Ramiro, que nom por acaso em 1446, quatro anos despois de ser tomada por assalto a sinagoga, estava nas mãos dos homens do mesmíssimo Pedro Díaz de Cadórniga (13).

 

Em resumo, a conflitividade social no final da Idade Média nom transforma na Galiza a tolerância em perseguiçom. Polo contrário, medra e metamorfoseia em fraternizaçom. Em meados do século XV, a alteridade devém pois identidade, em certo sentido o outro é, agora, como se fosse o eu. Produz-se umha inversom de valores que, apesar do seu carácter temporário, resulta bem significativa. Os galegos da época, segundo a documentaçom e os factos conhecidos, mais do que segregar, discriminar e fustrigar os Judeus, procurando culpados como meio de sublimar e descarregar tensões, chegam a fazer deles amigos de voda e irmãos na luta justiceira antinobiliar.

 

Compreende-se muito mellor o valor destes momentos de confraternizaçom galega entre cristãos e Judeus comparados com os massacres que, nessa altura, acontecem em Castela e Leom: o confronto armado, em julho de 1467, entre conversos e cristãos velhos em Toledo, e as matanças de Judeus em Sepúlveda (1468) e em Tolosa (1469) (14). Nos anos 50 e 60 do século XV, enquanto no Reino da Galiza se formam as precondições socio-psicológicas dumha grande revolta contra os senhores das fortalezas, em Castela e Leom agudizam-se as tensões antissemitas e põem-se as bases mentais para o édito de expulsom de 1492 (15).

 

O processo de "domesticaçom e castraçom do Reino da Galiza" inoculou o vírus antissemita no corpo social galego e deu cabo das relações amigáveis com os Judeus  📷 Terra e Tempo

A dependência política da Galiza da recentemente fortalecida monarquía castelhana obrigará a implementar nas cidades galegas a nova e definitiva legislaçom antijudaica. A integraçom da Galiza no Estado dos Reis Católicos e logo depois da Casa dos Áustrias, acarretará a perda progressiva de certas liberdades medievais, nomeadamente, a antiga tradiçom dumhas relações liberais e amigáveis entre Judeus e cristãos. Dito isto, cabe insistir em que estas boas relações nom apagaram as correntes antijudaicas da Galiza medieval (que terão nos tempos modernos um contexto institucional mais favorável). Porque nom existe tolerância sem o contraponto antijudaico. O problema é saber o que resulta hegemónico em cada lugar e em cada momento.

 

Carlos Barros, historiador galego especialista em história medieval da Galiza, exerce como professor de História Medieval na Universidade de Santiago de Compostela

 

Traduçom livre para o galego-português da versom galega atualizada de “El otro admitido. La tolerancia hacia los judíos en la Edad Media gallega”/Xudeus e conversos na historia. I. Mentalidades e cultura (Congresso de Ribadávia, outubro 1991), Carlos Barros (ed.), Santiago, 1994, pp. 85-115; “O outro admitido”, ¡Viva El-Rei! Ensaios medievais, Vigo, 1996, pp. 75-115.

 

1 Tem certa significaçom, no quadro do modelo cabaleiresco, a relaçom que estabelece o texto entre a condiçom fidalga dos mediadores e o objetivo perseguido de amizade e concórdia.

2 Xesús FERRO COUSELO, op. cit., p. 321.

3 ídem, p. 232.

4 Jacques LE GOFF, op. cit., p. 215.

5 Partidas VII, 24, 8.

6 Yitzhak BAER, op.cit., II, p. 440.

7 José AMADOR DE LOS RÍOS, Historia de los judíos de España y Portugal, III, Madrid, 1984, p. 399.

8 Yitzhak BAER, op.cit., I, p. 145.

9 “Historia de España”, Obras del Padre Juan de Mariana, II, Madrid, 1854, p. 202.

10 Xesús FERRO COUSELO, op. cit., p. 375.

11 Mentalidad justiciera, pp. 143-145.

12 Xesús FERRO COUSELO, op. cit., p. 146.

13 Xesús FERRO COUSELO, op. cit., II, p. 260.

14  José AMADOR DE LOS RÍOS, Historia de los judíos de España y Portugal, III, Madrid, 1984, pp. 147-152, 648; Angus MACKAY, “Popular movements and progroms in fifteenth-century Castile”, Past and Present, nº 55, 1972, pp. 34-35.

15 José María MONSALVO ANTÓN, Teoría y evolución de un conflicto social. El antisemitismo en la Corona de Castilla en la Baja Edad Media, Madrid, 1985, pp. 297 ss.


quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

ANTI-JUDAISMO NOBILIÁRIO

 Carlos Barros

O potencial económico dos Judeus (dalguns Judeus) tornava-os em alvo da pilhagem nobiliária; induvitavelmente, um virtual ambiente antissemita -nem sempre explicitado nas fontes- favorecia a impunidade dos agressores.

 

Existem dous precedentes na província [distrito] de Ourense.

 

No século XI, entre as terras de Alhariz e Cela Nova e a cidade de Ourense, tinha os seus domínios um nobre, Mendo González, que protegia uns comerciantes em tecidos -“hebreus”, segundo os documentos-, que são atacados e roubados por um outro nobre, Árias Oduáriz, que em represália é preso por Mendo, quem consegue a restituiçom do roubado, depois dumha série de peripécias que duram anos e supõem o trespasso do senhorio de certas vilas do agressor Árias para o nobre Mendo, para quem traballavam os Judeus na altura do ataque. (1)

 


Na sequência da Guerra dos Cem anos, durante a invasom do Reino de Galiza polo exército de João de Lencastre (1386-87), as iluminações da crónica de Jean Froissart mostram os Judeus a defender a vila de Ribadávia do ataque inglês.

No século XIV, quando as tropas do duque de Lencastre tomam Ribadávia (1386), o cronista Froissart, testemunha presencial, relata o seguinte: “Ainsi fut la ville de Ribadave gaignée à force, et eurent ceulx qui y entrèrent, grant butin d’or de d’argent ès maisons des Juifs par espécial” (2). De novo a referência à condiçom étnico-religiosa das vítimas aparece ligada à riqueza, alvo do saque nobiliário. Quer-se dizer que, como no caso anterior, o antissemitismo é, muito provavelmente, causa coadjuvante da agressom.

 

Chegamos, destarte, ao asalto de 1442 à sinagoga de Ourense por parte dos homens do cabaleiro Pedro Díaz de Cadórniga. Para além do roubo de dinheiro (50 mrs. velhos), destaca o agravo como meta principal dos atacantes: destruiçom da sinagoga e roubo das árvores (candelabros de sete braços), vexames de clara significaçom religiosa. Naturalmente o concelho reage em defesa dos Judeus, honrando a tradiçom local de tolerância, e denuncia o cabaleiro Cadórniga, a 15 de abril de 1442, quem se compromete a “castigar seus omees” polos agravos feitos “aos judíos da dita çidade et da sinagoga que avya destroyda” (3).

 

Estes danos causados aos Judeus da vila encabeçam um desses memoriais antisenhoriais de agravos que costumavam redigir no final da Idade Media os vizinhos de Ourense. Destacar os Judeus como vítimas é prova dumha secular política de integraçom e do igualitarismo da contestaçom antisenhorial (4), a qual também provoca, em ocasiões, umha divisom de opiniões entre os vizinhos mais influentes que nom marginaliza os Judeus, duvidosos também quando se tratava do confronto com os poderosos, mesmo nalgo que lhes tocaba tão de cerca como a agressom à sinagoga.

 

A 26 de junho de 1442, em presença dalguns cônegos e da gente de Pedro Díaz de Cadórniga, quatro Judeus de Ourense declaram junto do notário do cabido para exculpar dito cabaleiro do roubo na “sua casa de oraçon” a fim de que fosse absolvido da excomunhom, situaçom na que ele se achava por causa da destruiçom da sinagoga, junto com vários dos seus homens, “sen querela alguna de los ditos judios”. Isto é, para além da queixa referida do concelho (15 de abril), houve umha outra de tipo eclesiástico que concluiu com a excomunhom dos culpados e do mesmo Pedro Díaz, contra a opiniom do bando dos Cadórnigas, ao que indubitavelmente pertenciam os cônegos, familiares e, dalgum jeito, os Judeus que protagonizam esta ata notarial de 26 de junho. No entanto, os Judeus exculpadores declaram que “asalvo quedase que qual quer que tevese as arbores que lles foron tomadas da dita casa de oraçon que os no absolvesen ffasta que lle fosen tornadas” (5). Procuravam, em consequência, exonerar o chefe do bando nobiliar, mas sem ultrapassar o limiar mental que assinalava a gravidade do delito religioso do roubo, e nom devoluçom, das árvores dos Judeus. A dimensom religiosa do agravo estava acima das parcialidades, resultava algo imperdoável no Ourense do século XV, mesmo para os amigos do senhor.

 

A igreja-catedral de Ourense adotou umha postura filojudaica mesmo em questões religiosas

Na hora de conviver com os Judeus, a igreja-catedral de Ourense chega, logo, em 1442, muito mais longe do que a igreja de Alhariz quando cede terra, en 1487, para o cemitério judaico: adota umha atitude filojudaica mesmo em questões religiosas. Castiga um atentado religioso contra a sinagoga como se fosse perpetrado contra a igreja cristã, indo mesmo além do que o próprio concelho que, a 15 de abril, exime pessoalmente Pedro Díaz, enquanto a igreja o excomunga, através do provisor do bispo com o provável apoio da maioria do cabido. A desvalorizaçom da excomunhom como umha censura eclesiástica que se vinha aplicando a todo tipo de delitos que afetassem os interesses eclesiásticos, nom mingua a importância desta defesa dos Judeus mediante umha pena canônica.

 

O duro conflito civil entre os Cadórnigas e a igreja de Ourense (6), alimenta com certeza o suporte eclesiástico às vítimas judias mas nom esclarece completamente o uso concreto da excomunhom, que comporta a exclusom da igreja cristã, para punir um delito cometido contra os membros doutra religiom. Na realidade é como se se praticasse isso de que “se salvaba cada uno en su ley”.

 

Em resumo, o mais parecido que houve na Galiza medieval com um motim antissemita, o ataque à sinagoga de Ourense em 1442, tem mais de episódio de bandidismo senhorial do que outra cousa. Nom se vê cá essa procura dumha válvula de escape para o descontentamento popular que torna os Judeus em “bodes expiatórios” da conflitividade social do final da Idade Média. O povo que representa ao concelho está claramente do lado dos Judeus, solidariedade que se irá reforçar ainda mais enquanto as tensões sociais se agudizarem nas vésperas da revoluçom de 1467.

 

Carlos Barros, historiador galego especialista em história medieval da Galiza, exerce como professor de História Medieval na Universidade de Santiago de Compostela

 

Traduçom livre para o galego-português da versom galega atualizada de “El otro admitido. La tolerancia hacia los judíos en la Edad Media gallega”, Xudeus e conversos na historia. I. Mentalidades e cultura (Congresso de Ribadávia, outubro 1991), Carlos Barros (ed.), Santiago, 1994, pp. 85-115; “O outro admitido”, ¡Viva El-Rei! Ensaios medievais, Vigo, 1996, pp. 75-115.

 

1 Os documentos, datados nos anos 1044 e 1047, foram publicados por Fidel FITA, Boletín de la Real Academia de la Historia, tomo XXII, 1893, pp. 171-180.

2 Kervyn de LETTENHOVE (ed.), Oeuvres de Froissart. Chroniques, tomo XII (1386-1389), Bruxelles, 1981, p. 86.

3 Xesús FERRO COUSELO, op. cit., pp. 273-274. 

4 Mais do mesmo, noutro memorial de 1442 sobre os Agravios que son feytos ao qoncello por Pedro Dias é seus omes, o concello inclúe entre as vítimas dous xudeus: Iten seu escudeiro Alvaro Gandio matou á noso vesiño Alonso judio (…) Item Gomes de Paazos quiso matar á noso vesyño Nuño Patiño judio, Benito F. ALONSO, Los judíos en Orense, Ourense, 1904, p. 17. 

5 Documentos del Archivo de la Catedral de Orense, I, Ourense, 1923, pp. 424-425. 

6 Houve conflitos do provisor e do cabido com García Díaz de Cadórniga em 1440 e 1441, publica Boletín de la Comisión de Monumentos de Orense, VI, pp. 230-270; Rui Díaz de Cadórniga é ajustiçado em 1450 por agravos ao bispo de Ourense, e o mesmo Pedro Díaz de Cadórniga morre en 1459 estando preso -e de novo excomungado- no cárcere da igreja catedral, ídem, pp. 162, 231-232, 272.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

O GIGANTE ACORDOU

 Selly Nasser

Há tempos não falo mais sobre o Brasil.

Acho que as expectativas abaixaram tanto que nada mais me surpreendia.



Afinal, o que esperar de um país que não condenou o assassinato brutal dos brasileiros Bruna Valeanu, Ranani Glazer, Karla Stelzer e Celeste Fichbein (filha de brasileira) pelas mãos do Hamas no dia 7.10.23?


Antes da reação israelense.


Antes de Israel começar a se defender do maior genocídio de judeus desde o Holocausto.


Brasileiros foram assassinados e o

Brasil se calou.


O Brasil também se calou sobre o sequestro de um cidadão brasileiro pelo Hamas.


O Brasil que tanto se orgulha de seus laços com o Irã e com grupos terroristas (claro, se recusando a considera-los como tais), não usou os seus laços para tentar trazer o Michel Nisenbaum para casa.


O Brasil nem fingiu se importar.


Quando descobrimos que o Michel foi assassinado pelo Hamas e que na verdade era seu corpo que estava sendo mantido em Gaza - o Brasil também não condenou.


O Brasil não prestou apoio às vítimas brasileiras do Nova.

Aos sobreviventes que foram a uma festa dançar e terminaram a noite escondidos entre corpos.


O Brasil não soube (e nem tentou) lidar com o crescimento antissemitismo em seu território.


Mais do que isso - a liderança brasileira encabeçou o movimento antissemita no Brasil.


O Brasil falhou.

Falhou.

Falhou.

Falhou tanto que eu não tinha mais nenhuma expectativa.

Mas de alguma forma hoje o Brasil conseguiu me surpreender.


Hoje o Brasil decidiu, pela primeira vez, se manifestar em relação a um sobrevivente do Nova.


Hoje o Brasil acordou.


Quebrou o silêncio.


Mas pasmem (eu pasmei): não foi um manifesto de apoio.

Foi um mandato de prisão e a abertura de uma investigação.

Sim, um sobrevivente do massacre do Hamas que viajava pelo Brasil foi alvo da polícia federal.


Entendam: dia 7.10.23 ele foi para um festival. Foi dançar e curtir.

De lá para cá ele teve que lidar com a morte de perto.

Literalmente sofreu uma tentativa de genocídio.

E por sua legítima defesa, e pela minha legítima defesa, ele fez parte do serviço de reservistas do Estado de Israel.


Ele tentou garantir que o crime do qual ele foi vítima não se repita.

Ele tentou evitar a próxima tentativa de genocídio.

Ele agiu por autodefesa: sua, minha, do Estado de Israel e dos judeus do mundo.


Mas para o Brasil um judeu que age para se defender é criminoso.

E como se um judeu estivesse sendo preso por matar o nazista que o prendia e por fugir de Aushwitz - esse reservista sobrevivente está sendo processado.


Não no Irã.

Não no Líbano.

Não na Síria.


No Brasil.


Hoje o gigante acordou.


Mas bem que poderia voltar a dormir.


O silêncio do Brasil já não choca.


Mas a oficialização do antissemitismo me preocupa.


O anão diplomático está fazendo o impossível- diminuindo a sua relevância e se unindo às maiores ditaduras do mundo.


Volte a dormir Brasil.


Pelo bem de todos - e principalmente pelo seu próprio bem.


Selly Nasser, judia nascida no Brasil e morando em Israel.

sábado, 4 de janeiro de 2025

A TOLERÂNCIA COMO INTEGRAÇOM: OURENSE

 Carlos Barros

No final da Idade Média a cidade de Ourense semelha umha sociedade urbana muito mais convulsa do que Alhariz. As atas notariais do concelho e do cabido, no século XV, mostram um trasfundo de revoltas e luta de bandos que nom podia deixar de influir no convívio com a judiaria, de resto muito integrada na cidade. Os Judeus de Ourense aparecem na documentaçom como umha categoria diferenciada mas aceitada, são tratados de “vecinos” e protegidos como tais polo concelho (1); como é habitual, exercem ofícios de grande importância económica (arrecadadores de rendimentos reais e senhoriais, comerciantes, prateiros (2); e desfrutam, de resto, da precetiva liberdade (3) religiosa, dumha autonomia financeira que abeira o autogoverno: em 1433, o ourive judeu Salomón protesta, perante o alcaide da cidade, porque nom se respeitara o “uso et costume” de que quando se cobravam impostos na cidade, os Judeus escolhiam um deles “a juramento en sua ley, pera que vise ontre eles os ditos repartimentos”, e obtém do concelho a confirmaçom da tradicional autonomia judaica: “mandava que des aqui en deante non se fesese o dito repartimento sen estar o dito judío presente, pera que repartise os ditos mrs. ontre eles” (4).

 

Os Judeus em Ourense viviam misturados com a populaçom

Porém, o concelho, que reconhecia a alfama, nom tolerava as manifestações de anticristianismo. Em 1441, o alcaide tem preso o judeu Mosé Marcos, prateiro, “por rasón que diso que disera yrisía e infamia contra Deus e Santa María, disendo que Santa María parira tres veses”, e o procurador do concelho reclama que o alcaide nom deixe de fazer justiça com ele (5). Se a tolerância significa que a maioria aceita a religiom da minoria, demarcando-se polo tanto dos antijudeus, com maior motivo resultará incompatível com o desrespeito judaico para com o cristianismo. A irreverência dos Judeus, seja como for, revela que -ao igual que em Alhariz no final do século XIII- para bem e para mal as duas etnias reconheciam-se iguais, também para o mau. Sobre esta base alicerçava a política de tolerância e de integraçom.

 

Em Ourense, diferentemente de Alhariz, nom parece tão necessário organizar o convívio separando ambas as comunidades: a tolerância recíproca organiza-se de jeito mais natural, talvez cumha menor consciência de alteridade. Cristãos e Judeus viviam mais misturados, sem dano de que os segundos fizessem respeitar coletivamente os seus direitos quando convir. Tal integraçom explica porque, com o tempo, as fraturas sociais tendem a produzir-se horizontalmente.

 

A radicalizaçom das atitudes coletivas, consequência e causa do incremento da conflitividade social em meados do século XV (6), como é que afeta em concreto à boa vizinhança entre cristãos e Judeus?. Primeiro, desata-se a intolerância nobiliar: o assalto à sinagoga en 1442. E, logo, produz-se a confraternizaçom dentro da irmandade cidadã e popular de 1467. As prévias boas relações entre Judeus e cristãos, entre a comunidade judaica e o concelho, empurram à cidade a tomar partido pola sinagoga, e ao Judeus a porem-se do lado dos cidadãos na contenda civil.

 

Carlos Barros, historiador galego especialista em história medieval da Galiza, exerce como professor de História Medieval na Universidade de Santiago de Compostela

 

Traduçom livre para o galego-português da versom galega atualizada de “El otro admitido. La tolerancia hacia los judíos en la Edad Media gallega”/Xudeus e conversos na historia. I. Mentalidades e cultura (Congresso de Ribadávia, outubro 1991), Carlos Barros (ed.), Santiago, 1994, pp. 85-115; “O outro admitido”, ¡Viva El-Rei! Ensaios medievais, Vigo, 1996, pp. 75-115.

 

1 Anselmo LÓPEZ CARREIRA, “Os xudeos de Ourense no século XV”, Boletín Auriense, XIII, 1983, pp. 164-165.

2 ídem, p. 172.

3 A sinagoga da Rua Nova estava integrada no conjunto urbano e rodeada de casas habitadas por cristãos; há notícias sobre ela nos anos 1427, 1441, 1442 e 1474, ídem, pp. 161-162; para além de local de oraçom, era o sítio escolhido para ministrar a justiça que tinha a ver com a comunidade judaica (1457 e 1484), Xesús FERRO COUSELO, A vida e a fala dos devanceiros, II, Vigo, 1967, pp. 232-233.

4 Xesús FERRO COUSELO, op. cit., p. 227.

5 Xesús FERRO COUSELO, op. cit., pp. 228-229; a desconfianza do procurador do concello, figura institucional que en Ourense resposta a unha tradición de defensa do común, é, sobre todo, social, sen dúbida temían ou podían temer os veciños que o alcalde fixera a vista gorda dada a condición social do xudeu blasfemo. 

6 O ponto culminante é a insurreiçom de 1455, Mentalidad justiciera, pp. 32, 45.