Pedro Doria
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Campanha de manchetes sobre a fome em Gaza |
O Globo 29/7/2025
Ele está conduzindo uma guerra bárbara que o Exército e a sociedade israelense rejeitam
Quando enfim a guerra terminar, e ela terminará um dia, as fronteiras de Gaza se reabrirão. Uma onda de jornalistas e ativistas entrará na Faixa. No mesmo dia, o número de imagens à nossa disposição será imenso. Que imagens veremos? Incontáveis prédios destruídos, isso é certo. Prédios reconstroem-se. Mas e as pessoas, como estarão? O relatório da Organização Mundial da Saúde divulgado no domingo aponta que 74 pessoas morreram por desnutrição aguda neste ano. Delas, mais de 63 se foram agora em julho. Um trabalho mais profundo, do IPC, prevê que até setembro haverá 470 mil pessoas com fome em nível 5. O estudo é de abril. O IPC, um painel formado por especialistas e financiado por inúmeros países, tem uma escala para medir fome. Esse nível, o 5, é o pior deles. Chamam de “catástrofe”. Mas é uma previsão, não sabemos ainda se será concretizada. Fome assim dá em corpos esqueléticos, longilíneos, as costelas saltando contra a pele, a cavidade torácica afundada, bochechas ausentes, olhos opacos flutuando sobre círculos negros no meio do rosto. Se o IPC estiver correto, essas serão as imagens de que nos lembraremos da guerra em Gaza.
Algumas guerras da História recente produziram fome nesse nível. A Guerra de Biafra, entre 1967 e 1970; a da Somália, que teve o pico em 2011. Entram na conta também as guerras do Sudão do Sul (com pico da fome em 2017) e da Etiópia (pico em 2021). O que todos esses conflitos têm em comum é o bloqueio da entrada de ajuda humanitária por parte de um dos lados do conflito. Uma distinção, porém, não pode ser ignorada. É que Israel é uma democracia. A única outra vez que uma democracia provocou uma fome em grande escala foi em 1943, durante a Segunda Guerra. Os britânicos são responsáveis diretos pela morte de 3 milhões em Bengala, hoje entre Índia e Bangladesh. E, ainda assim, aquilo foi num contexto de incompetência e desatenção perante a guerra.
O judaísmo criou a tradição mais humanista das três religiões do Livro. Não pode o governo de Israel matar seres humanos de fome. É desumano. Cruel. É antijudaico.
O governo de Benjamin Netanyahu argumenta que, da maneira como a ONU estava fazendo a entrega de alimentos, boa parte terminava confiscada pelo Hamas. Ia parar no mercado paralelo, usada como instrumento de força política. Talvez. Mas, como diz o jornalista britânico Jonathan Freedland, dane-se. Se a alternativa é a fome de pessoas, não há escolha real. Além do que seria simples resolver o problema. Basta botar dentro de Gaza muito mais comida do que é necessário. Oferta e demanda. Se há oferta demais, não há demanda. Sem demanda, o Hamas não transforma comida em instrumento de poder.
Tenho em uma de minhas estantes dois bonequinhos, um de David Ben-Gurion e outro de Yitzhak Rabin. No mundo da política, estão entre meus heróis pessoais. Um construiu no deserto um país para um povo oprimido. Outro teve a coragem de negociar uma paz muito difícil. São, ambos, exemplos de dedicação ao bem público e convicções democráticas. Muitos na comunidade judaica na diáspora não têm tido coragem de denunciar o horror causado pelo governo Netanyahu. Há razões, mas Netanyahu cruzou a última linha da ética.
Há um surto de antissemitismo no Ocidente. Mal passou do pogrom do Hamas, naquele 7 de outubro de 2023, e já havia militantes de esquerda nas ruas pedindo o fim de Israel. À crueldade absurda do Hamas, limitaram-se a virar o rosto para fingir que não viam. Para dizer que era mentira. Na semana passada mesmo, o governo do Brasil deixou oficialmente a Aliança Internacional para a Memória do Holocausto, um gesto incompreensível de tão absurdo. O que lutar contra negacionistas do genocídio nazista tem a ver com Israel? Nada. O Planalto confunde judeus com israelenses e vira as costas para os muitos brasileiros que, sendo judeus, nada têm a ver com as decisões tomadas dentro do Knesset. Esse tipo de comportamento tem nome.
Os nazistas mataram 4 milhões de judeus entre 1942 e 1945. Só entre agosto e outubro de 1942 foram 1,5 milhão. Nada na História contemporânea sequer se aproxima daquilo. Mas, se o IPC estiver correto, quando a imprensa entrar com liberdade em Gaza registrará imagens da tragédia produzida pelo governo Netanyahu que serão associadas ao Holocausto. O terror que o governo Netanyahu está construindo liberará incontáveis antissemitas da vergonha de se mostrarem como são, e as vítimas maiores serão judeus na diáspora. Netanyahu não só foi incapaz de garantir a segurança de judeus no 7 de Outubro, como está conduzindo uma guerra bárbara que o Exército e a sociedade israelense rejeitam.
Lutar contra o antissemitismo, hoje, passa por denunciar Bibi Netanyahu.
Carta aberta em resposta ao artigo “A fome em Gaza”
Caro Pedro,
Li seu artigo com o coração apertado. Sim, pela tragédia que estamos todos testemunhando, mas também por ver um texto que, em nome da dor legítima, abre mão de algo que deveria ser sagrado para quem escreve: o rigor.
Não há dúvida de que a situação humanitária em Gaza é grave. Relatos de desnutrição e insegurança alimentar existem, e são motivo de atenção e preocupação. Mas é justamente por levar esse cenário a sério que me incomoda ver acusações tão pesadas sendo sustentadas por dados e conclusões que carecem de rigor metodológico, contextualização e responsabilidade.
Boa parte da cobertura e das denúncias sobre “fome como arma” se baseia nos relatórios do IPC e de agências da ONU. No entanto, o Instituto de Estudos de Segurança Nacional (INSS), entre outros analistas, expôs falhas sérias nesses documentos: dependência de fontes locais sem verificação independente, uso alarmista de linguagem técnica, ausência de dados brutos e desconsideração de registros oficiais israelenses, como os da COGAT, que mostram entrada contínua de ajuda.
E aqui é importante destacar: os relatórios da COGAT não são especulativos. Eles se baseiam em dados concretos, rastreáveis, e exigem comprovação documental para cada carga. Os relatórios detalham origem, tipo de carga, rota de entrada e destino, com números específicos. São insumos logísticos, não interpretações políticas. Ignorá-los ou descartá-los por completo empobrece o debate e enfraquece qualquer tentativa honesta de apurar responsabilidades.
Além disso, as discrepâncias entre os dados divulgados pela ONU e IPC são significativas e recorrentes. Ao longo dos últimos meses, ambas as instituições foram obrigadas a revisar e corrigir suas previsões e classificações, inclusive reduzindo estimativas alarmistas que não se confirmaram com o passar do tempo. Esse padrão de correções e imprecisões não é trivial: ele compromete a credibilidade dos alertas e levanta sérias dúvidas sobre o uso político desses relatórios. Quando o alarme substitui o critério, e projeções instáveis são tratadas como provas, temos um problema que é mais de método do que de conteúdo.
Ainda mais relevante: os próprios relatórios da ONU e do IPC, frequentemente usados em efeito cascata como evidência contra Israel, reconhecem que o Hamas intercepta, desvia e controla a distribuição da ajuda humanitária. Eles registram que a presença de grupos armados, as restrições impostas por eles e a insegurança nas zonas de entrega comprometem o acesso da população aos suprimentos. Ou seja, as mesmas fontes que alertam para a crise também apontam um dos seus principais causadores, e ele está dentro de Gaza.
Você cita o bloqueio como prova de intenção. Sim, houve bloqueio. Foi severo, e suas consequências foram debatidas, inclusive dentro de Israel. Mas o que não se pode ignorar é que, antes mesmo da decisão de restringir o acesso por Rafah e Kerem Shalom, Israel havia mapeado, por inteligência de campo e imagens de satélite, que havia dentro de Gaza alimentos suficientes para seis meses. Esses estoques, em vez de serem distribuídos à população civil, estavam sob controle do Hamas, que os retinha e usava como instrumento de poder.
A lógica do bloqueio, controversa como muitas medidas de guerra, visava justamente pressionar o Hamas a liberar essa ajuda. Não matar civis de fome. E isso, do ponto de vista do Direito Internacional Humanitário, faz toda a diferença. Para que se configure o crime de usar a fome como arma de guerra, é preciso provar intenção deliberada e comprovada de causar esse sofrimento à população civil.
Você sugere que o problema da fome seria facilmente resolvido se Israel simplesmente despejasse comida em Gaza e que, diante da urgência humanitária, “dane-se” o Hamas. Essa proposta soa moralmente apelativa, mas ignora o essencial: não estamos lidando com um mercado livre, mas com um território sob o controle de uma milícia armada que transforma escassez em estratégia. O Hamas intercepta, confisca, redireciona e comercializa ajuda humanitária com fins políticos e militares. A lógica da oferta e demanda não opera quando quem detém o monopólio da distribuição é também o causador da crise. Jogar mais comida, sem garantir canais seguros, neutros e desmilitarizados de entrega, não soluciona o problema, só alimenta o controle. Até os próprios relatórios da ONU e do IPC reconhecem que milícias armadas dentro de Gaza impedem a chegada da ajuda a quem mais precisa.
Portanto, sim, mais ajuda precisa entrar. Mas ela precisa chegar às mãos certas. Jogar comida no abismo não é política pública. É teatro moral com consequências trágicas. A frase citada por você — “se a alternativa é a fome, não há escolha real” — propõe uma dicotomia enganosa: ou alimentamos civis sob qualquer condição, ou permitimos que morram. Mas isso apaga o agente que sequestra a ajuda. Não se trata de escolher entre o mal e o mal maior. Trata-se de interromper um ciclo no qual o Hamas transforma a fome em ferramenta de controle e chantagem. Ajudar sim, mas com segurança, com neutralidade, e sem fortalecer quem perpetua o sofrimento. O “dane-se” soa como um grito moral, mas na prática, é um gesto de rendição ética. Se aceitarmos que qualquer canal de ajuda é válido, mesmo que termine nas mãos de grupos terroristas, estamos normalizando o uso político da fome. Alimentar civis é urgente, mas fazê-lo às custas de reforçar o poder de quem os oprime é um pacto com o predador e não um gesto de compaixão.
Ao longo do seu texto, você recorre a projeções, previsões e estimativas futuras para tentar caracterizar um crime no presente. O relatório do IPC, por exemplo, fala de possíveis níveis de “fome catastrófica” que podem vir a ser atingidos. E você é cuidadoso em admitir que se trata de uma previsão. Ainda assim, é com base nela que você constrói grande parte do argumento moral e jurídico contra Israel. Isso é problemático. Projeção serve como alerta, não como prova retroativa. Imputar crime com base em hipótese futura é confundir análise com acusação. E, pior ainda, é desrespeitar um princípio básico de justiça.
E para que esse tipo de crime ocorra, como você mesmo compara ao Holocausto, à fome de Biafra, da Etiópia e da Somália, não basta que haja sofrimento. É preciso que haja um aparato institucional, ordens claras, cadeia de comando, cumplicidade entre órgãos do Estado e silêncio das instituições. Nada disso se verifica em Israel. Nenhum documento vazado. Nenhuma denúncia interna. Nenhuma decisão reconhecida em cortes internacionais. Nenhuma evidência de que o governo israelense tenha atuado com essa intenção, muito menos com o apoio ou omissão de todo o aparato de defesa, jurídico e político.
Reconheço, sim, que o impacto humanitário sobre civis em Gaza é devastador e, sob esse aspecto, pode lembrar tragédias históricas como as que você menciona. Mas isso não justifica, nem legal nem moralmente, que se equipare tais eventos. Os contextos são distintos, as intenções, opostas, e os agentes responsáveis, diversos. Comparações desse tipo, ainda que emocionalmente potentes, apagam a complexidade dos fatos e distorcem a percepção pública da guerra.
Israel, por mais pressionado que esteja, segue sendo uma democracia funcional. Uma democracia com imprensa livre, tribunais independentes, oposição ativa e sociedade civil crítica. Se houvesse uma política deliberada de matar palestinos de fome, isso não se sustentaria no silêncio. Não seria discreto. Não seria possível sem reação. Seria um escândalo público, e provavelmente geraria protestos até mesmo entre eleitores do Likud e membros das Forças de Defesa de Israel. Crimes dessa natureza exigem cumplicidade em massa. E essa cumplicidade simplesmente não existe.
É nesse ponto que sua analogia com o Holocausto ou com a fome de Bengala se torna não apenas indevida, mas absolutamente mentirosa. É falsa em termos históricos, jurídicos, morais e factuais. Se comparações como essa têm apelo emocional, é justamente porque o peso simbólico suplanta a evidência. Mas não há paralelos válidos. E insistir neles é repetir a mesma lógica que sustenta campanhas de desinformação já desmentidas.
Aliás, por que você não mencionou os três casos mais escandalosos de distorção da realidade nos últimos meses?
Primeiro, a manchete que correu o mundo: “14 mil crianças morrerão em 48 horas”. Não aconteceu. Nunca houve evidência que sustentasse isso. Os próprios autores do relatório, ONGs e agências envolvidas, tiveram que se retratar. Mas o estrago já estava feito.
Segundo, a imagem amplamente divulgada pelo New York Times, e replicada em efeito cascata, de uma criança supostamente esquelética por fome. Dias depois, o jornal admitiu que ela sofria de condições preexistentes e uma doença genética grave. Mas, novamente, a correção não teve nem um décimo da repercussão da imagem original.
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Criança com doença genética grave utilizada para acusar Israel de esfomear Gaza |
Todas estas fotos foram tiradas por Ahmed Jihad Ibrahim Al-Arini, fotojornalista que trabalha para a agência estatal turca Anadolu. As imagens foram divulgadas para sugerir que Israel está a matar crianças à fome em Gaza. No entanto, o rapaz retratado (Muhammad Zakariya Ayyoub al-Matouq) sofre de uma doença degenerativa totalmente alheia à fome. Apesar disso, a foto foi amplamente partilhada por grandes meios de comunicação, incluindo o The New York Times, NBC News, The Guardian e BBC. Nenhum deles se preocupou em verificar o contexto antes da publicação —e nenhum parece interessado em corrigir a narrativa agora.
Terceiro, o escândalo recente envolvendo a BBC. Um e-mail interno da emissora revelou instruções explícitas para que seus jornalistas seguissem uma única narrativa sobre a crise humanitária em Gaza. A orientação era clara: ignorar discussões sobre a quantidade de ajuda que entra, culpar exclusivamente a fundação humanitária GHF, criada com apoio americano e israelense, e repetir, sem espaço para nuances, que Israel é o único responsável legal pela fome em Gaza. Trata-se de uma distorção editorial deliberada, que abandona o jornalismo em favor da militância.
Você afirma que, por ser uma democracia, Israel jamais poderia permitir algo assim. Concordo. Mas a mesma democracia que você invoca também exige provas antes de condenações. E até agora, essa prova simplesmente não veio.
Por fim, dizer que lutar contra o antissemitismo passa por denunciar Netanyahu é, francamente, uma inversão perigosa. Antissemitismo não depende de Netanyahu. Ele o antecede, o ultrapassa e o sobrevive. Condicionar o respeito aos judeus à postura de um governo específico é, no mínimo, uma chantagem moral, e, no máximo, um álibi para antissemitas que se disfarçam de críticos políticos.
Pedro, criticar Israel é legítimo e necessário. Mas acusar sem provas, reduzir toda uma nação à figura de um líder e transformar análise em narrativa moralista não é jornalismo. É um gesto de empatia sincera, mas que cede à pressão emocional e à opinião pública internacional, afrouxando o senso crítico. E quando isso vem de alguém bem-intencionado como você, fere não só a verdade. Fere o debate.
Com respeito,
Hasbará Brasil