A decalagem
no século XV da Galiza a respeito do resto da Coroa, explica que a tolerância
-e mais ainda a irmandade- que lá impera entre cristãos e Judeus, seja em
Castela e León um valor subordinado ao antissemitismo triunfante, mormente a
partir das matanças de 1391. De jeito que as medidas radicais que tomam os Reis
Católicos vam deparar-se, no Reino da Galiza, com a ausência dumha tradiçom de antissemitismo
popular sobre a que alicerçar; antissemitismo que também nom fora instigado
pola Igreja galega, ocupada como estava em sobreviver aos avatares dum século
XV superpovoado de usurpações, guerras e revoltas. Contodo, as velhas e novas
instituições galegas estavam obrigadas a cumprir as normas discriminatórias que
vinham da Corte de Castela, cada vez mais duras e expeditivas, contra Judeus e conversos. A
Galiza seguirá, pois, a corrente castelhana às avessas e, mormente, lentamente.
AsCortes de Toledo de 1480 dão aos concelhos um prazo de dous anos para transferirem
os Judeus para bairros isolados, circundados de muralhas, para evitar a sua "perniciosa influência sobre cristãos e conversos" (1). Trata-se dumha velha
teima segregacionista. Enquanto em Alhariz era aplicado de mútuo acordo entre Judeus
e cristãos; o salientável agora é o sentido racista e coercitivo da ordem, a sua
origem estatal e a intransigência e determinaçom dos seus promotores. De facto,
o fracasso das medidas de afastamento, deixará a expulsom como única soluçom.
No ano
seguinte o concelho de Madrid mesmo chega a pagar a cerca do novo bairro para o
isolamento, vista a pobreza dos vizinhos judeus (2). Neste mesmo ano de 1481,
dous mil judeus e judias são queimados em Sevilha; obra de inquisidores dominicanos
que inaugura umha prática genocida que o Santo Oficio tentará generalizar, na
Idade Moderna, por toda a geografía espanhola (3).
Veja-se
o que faz o concelho de Ourense perante as renovadas exigências antijudias do
Estado. De partida, continua a máxima medieval de “obedecer mas nom cumprir”.
Assim sendo, a 3 de julho de 1484, na sinagoga, estando presentes como testemunhas
dous cônegos, o concelho intima formalmente os Judeus para “guardar la ley de
Toledo”, ordenando que num prazo de três días “se apartasen onde lles sería
dado e asynado lugar” (4). É um simples simulacro, nem sequer se molestam em
fixar a localizaçom do gueto. Mas, três anos depois, a 22 de maio de 1487 (5), novos
alcaides-juízes reiteram mais seriamente, alegando que “suas Alteças mandavan
apartar e faser apartamento en todos seus regnos a los judíos”, concretando o
lugar onde estaria colocada a judiaria, “ena Rúa Nova da dita çibdad, junto da
porta da vyla”, e criticando, duramente, os anteriores concelhos por nom terem
aplicado a lei de Toledo: “protestavan e protestaron que sy os regidores e
juises os tenpos pasados, por non aver feito o dito apartamento por virtud da
dita ley, segundo eran obligados, avían caydo ou encorrido en alguas penas”. A
seguir assignam o casario da Rua Nova, onde teriam de viver assinalados judeus
refractários (arrecadadores, mercadores e prateiros), antes da segunda-feira da
semana seguinte. Face esta rutura que se propunha de toda umha secular tradiçom
de integraçom e tolerância, reage o arrecadador Mosé Péres, um dos “apartados”,
para dizer que apelava os Reis alegando que “se lles fasyan injustiça”. Mas a
mudança de mentalidade, e de política, no concelho nom tinha volta atrás, e os
ditos novos juízes insistem, a 28 de janeiro de 1488, intimando mais umha vez,
um após outro, os Judeus que habitavam fora da judiaria para que mudassem a sua
habitaçom sob ameaça da puniçom prevista pola lei de 1481 (6). Como Mosé Péres
nom está, a ordem de traslado é notificada a um criado, e a 6 de novembro de
1488, tornam requerir o judeu rebelde, e também a Yudá Péres, dentro da sua própria
casa, fora da judiaria. No dia seguinte os dous potentados judeus respondem ao
concelho com grande astúcia e altiveza.
Cidade de Ourense no século XV: Localizaçom do casario da Rua Nova onde teriam de viver os Judeus ao abrigo das leis racistas impostas por Castela |
Declaram
que, na verdade, já nom eram vizinhos de Ourense -“ni lo queremos ser”, acrescentam-,
mas de Alhariz (Mosé Péres) e de Villafranca de Valcáçar [atual Vila Franca do Berzo] (Yudá
Péres), mas como exerciam polos Reis de arrecadadores das alcavalas [impostos
reais do Reino de Castela] na província de Ourense tinham de passar alguns dias
na capital, estando obrigados os alcaides -os acusados passam deste jeito a
acusadores- “a nos dar posada en la dicha çiudad… que nos sea tuta e sygura
para tener en ella la fasienda de sus Altezas”, denunciando como impróprias as
casas da judiaria que lhes queriam atribuir: “son despobladas y en lugar donde
no podríamos estar seguros”; segue a alegaçom com a desqualificaçom moral dos
alcaides demandadores: “este dicho requerymiento nos fesyestes odiosamente”,
“nos amenazades a nos e a los judíos que nos tienen arrendadas las dichas
rentas”, “protestamos que qualquier agravio… por nos ser odiosos como los
sois”; e acaba anunciando o recurso destes judeus agravados perante o Governador
da Galiza (7).
A escolha
de Alhariz por parte de Mosé Péres como lugar para viver em paz confirma que lá -com certeza- a tolerância segue a ser norma de convívio, até o último
momento, apesar das imposições estatais. Mesmo no ano anterior (1487) alargaram
os Judeus, com a ajuda do pároco de S. Estevo, o seu cemitério do Campo da
Mina, mostrando o dinamismo da judiaria de Alhariz, enquanto em 1500, treze
anos depois, têm de remover dito cemitério (8) as autoridades ao se extinguir a
comunidade judaica alaricana por razões exógenas: o édito de expulsom de 1492.
Porém,
em Ourense, logo depois dumha década de resistência, a separaçom espacial,
social e mental das duas comunidades tornou-se numha realidade. Para alguns citadinos a amizade irmandinha trocou-se em ódio antijudeu. Medra, nas portas
da modernidade, um outrora quase desconhecido sentimento antissemita que também
na Galiza buscava raízes populares, bem como em Castela e Leom, e encaminhava-se
mormente contra os Judeus mais ricos -caso de Mosé e Yudá Péres-, talvez por
isso menos prontos a perderem o seu estatuto social em consequência da segregaçom
sócio-religiosa (9).
Em fevereiro
de 1489, os Judeus de Ourense protagonizam dous documentos reais (10) que apresentam
o arredamento como um facto consolidado e apontam para novos problemas. Demandam
os habitantes da judiaria de Ourense aos Reis Católicos a proteçom que durante
muito tempo lhes garantira o concelho como vizinhos da cidade que eram. Os Reis
concedem-lhes, a 21 de fevereiro, umha carta de seguro “desiendo quellos se
temen e reçelan que por ocio e malquerençia e enemistad que con ellos han e
tienen algunos cavalleros e personas”. Apesar da fórmula anticabalaria, nessa
altura útil para ganhar apoios na Corte, especialmente tratando-se da Galiza,
sabe-se que nom eram tanto cavaleiros quanto cidadãos do concelho os novos
inimigos dos Judeus de Ourense. Isto é confirmado polo conteúdo dumha segunda
carta encaminhada polos Reis, a 27 de fevereiro, ao governador López de Haro,
ordenando-lhe soster os Judeus da Rua Nova para que o concelho nom piorasse a
situaçom do gueto e para que pudessen conservar as lojas, com as que comerciavam
na praça da cidade, condenando mesmo aos juízes-alcaides que, em 1488, obrigaram-nos
a pagar multas por valor de 3.000 mrs. por se resistirem ao deslocamento para a
Rua Nova, censurando de passagem também os monarcas aos cristãos que continuavam
a morar na judiaria porque nom quiseran deixar as suas casas aos judeus… Enfim,
quebrada a solidariedade cristão-judiaria em Ourense, à minoria apenas lhe cabia
a autoridade real para se proteger. Porém, o final chega quando no ano crítico
de 1492 a monarquia vira definitivamente em contra dos Judeus.
O édito de expulsom dos Judeus -dos nom convertidos ao cristianismo- dos reinos de Castela e Aragom leva a data do 31 de março de 1492. O prazo para a partida finda a 1 de julho de 1492. Estava estabelecido que ao marchar -forçadamente- da sua Sefarad nom podiam levar “oro ni plata ni moneda amonedada, ni las otras cosas vedadas por las leyes, salvo en mercadorías” (11). Esta proibiçom, vulnerada frequentemente polos Judeus ricos, deixou um documento que prova como no Reino da Galiza funcionou o decreto de expulsom.
Em 13 de
maio de 1493 os Reis Católicos ordenam um inquérito perante a denúncia de
Marcos Alonso, vizinho da Corunha, contra as pessoas que favoreceram, e se
beneficiaram, da fugida doutro corunhês, o prateiro Isaque, que levara consigo,
de contrabando, 2,5 milhões de maravedis em “monedas e oro e plata e perlas e
otras cosas de valor”, despois de ter pago a colaboraçom e o silêncio dos
arrendadores de alcavalas da Corunha, e do capitám da nau, o mercador Juan de
San Juan, que o transportou a terras da África (12). O mesmo documento deixa
claro que no Reino da Galiza a cumplicidade com os expulsos foi muito ampla,
inclui (seguindo o memorial perdido de Marcos Alonso) entre os amigos dos Judeus
o mesmo corrigidor real na Corunha e a “otros capitanes de naos que llevaron
otros judíos de la dicha Villafranca e de Ferrol e de la Ponte d’Eume de
Lisbona” (13), o que põe em destaque o porto da Corunha como via usual para o êxodo
clandestino de Judeus galegos e nom galegos após março de 1492.
Do mesmo
jeito que a tradiçom tolerante da Galiza facilita a fugida dos Judeus abastados
sem necessidade de perder os bens, a hipótese de que polos mesmos motivos (a fraqueza
do antissemitismo galego) a maioria ficou na Galiza, convertida ao cristianismo
e reintegrada na sociedade civil da época, é mais do que plausível (14). A tolerância
medieval face os Judeus vai-se reproduzir, facilmente, como tolerância moderna face
uns conversos que, em muitos casos, continuavam a praticar e aprender os seus
filhos na religiom judaica. Por algo o maior número de causas da Inquisiçom na Galiza
entre 1565 e 1683 são de judaizantes (15).
Carlos Barros, historiador galego especialista em história medieval da Galiza, exerce como professor de História Medieval na Universidade de Santiago de Compostela.
Traduçom livre para o galego-português da
versom galega atualizada de “El otro admitido. La tolerancia hacia los
judíos en la Edad Media gallega”, Xudeus e conversos na historia. I.
Mentalidades e cultura (Congresso de Ribadávia, outubro 1991), Carlos Barros
(ed.), Santiago, 1994, pp. 85-115; “O outro admitido”, ¡Viva el-Rei! Ensaios
medievais, Vigo, 1996, pp. 75-115.
1 Luis SUÁREZ FERNÁNDEZ, Judíos españoles en la Edad Media, Madrid, 1980, pp. 263-264; José AMADOR DE LOS RÍOS, op. cit., III, p. 287; Cortes de los antiguos reinos de León y Castilla, IV, Madrid, 1861-2, pp. 149-151.
2 José AMADOR DE LOS RÍOS, op. cit., III, p. 288, nº 1.
3 Julio CARO BAROJA, Los judíos en la España moderna y contemporánea, I, Madrid, 1986, pp. 153-154.
4 Xesús FERRO COUSELO, op. cit., p. 233.
5 ídem, pp. 235-236.
6 Como eles foran rebeldes e ynobedientes e non los quiseran conprir los mandamientos del concejo segundo lles fora mandado, e por elo avían caydo e encorrido enas ditas penas, que eles ante de todos estes protestavan de exsecutar as ditas penas contiudas ena dita ley de Toledo, ídem, p. 237; veremos máis adiante como o concello chega facer efectivas ditas penas.
7 ídem, pp. 239-240.
8 Alfredo CID RUMBAO, op. cit., p. 125.
9 Asina repararão os Judeus refratários que a melhor via para manterem a sua posición social era a conversom ao cristianismo, embora na Galicia nom existiam precedentes no século XV; anteriormente nom precisaram os Judeus mudar de religiom para ganhar o respeito e a estima da sociedade cristã dominante.
10 Luis SUÁREZ FERNÁNDEZ, Documentos acerca de la expulsión de los judíos, Valladolid, 1964, pp. 320-322.
11 Alfonso GARCÍA GALLO, Manual de historia del derecho español. II. Antología de fuentes del antiguo derecho, Madrid, 1982, pp. 767-769.
12 Luis SUÁREZ FERNÁNDEZ, Documentos acerca de la expulsión de los judíos, Valladolid, 1964, pp. 513-514.
13 ídem, p. 514.
14 Benito F. ALONSO, “Los judíos en Orense (siglos XV al XVII)”, Boletín de la Comisión de Monumentos de Orense, II, 1904, pp. 23-29.
15 Carmelo LISÓN TOLOSANA, Brujería, estructura
soical y simbolismo en Galicia, Madrid, 1983, 2º ed., p. 11 n. 3.
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