quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

A TOLERÂNCIA COMO ALTERIDADE: ALHARIZ

 Carlos Barros

A 20 de maio de 1289, o Concelho de Alhariz chega a um acordo paradigmático (1), perante o meirinho real da vila “e cregos dela”, com Isaac Ismael, “Judeu Mor dos judeus moradores nesta vila”, para regulamentar o convívio pacífico de cristãos e Judeus: um autêntico pacto de alteridade. O primeiro a destacar é a posiçom arbitral do poder real (2) e da Igreja, junto com o sentido equitativo e igualitário da avença. A tolerância que se institui é mútua; abstendo-se de explicitar a superioridade cristã.

 

Embora o documento do acordo nom refere o local ocupado pola Judiaria de Alhariz, a referência ao castelo permite localizá-la próxima dele e da atual igreja de S. Estevo | Raigame nº11

No terreno religioso acorda-se separar as celebrações públicas de Judeus e cristãos, evitando que uns estejam presentes nas procissões dos outros, para evitar manifestações tanto de antijudaísmo como de anticristianismo.

 

Destarte fica estabelecido que “nas rogas e festas, que os ditos xudeus fan nos soburvios da vila por vaixo do noso Castelo (3), non vaya hi ningun cristian, morador da dita vila, para os prendar e moestar en suas rogas”. As procissões judaicas tinham lugar, significativamente, extramuros da vila, mostrando a situaçom de marginalidade judaica da que se partía. Umha forma habitual de antijudaísmo consitia em incomodá-los com ações de justiça, nos seus atos religiosos, que parecem implicar o próprio concelho. De partida, renunciava-se a todo isto de mútuo acordo.

 

Sem dúvida estas ações antijudaicas tinham provocado reações de signo contrário, e/ou vice-versa.

 

Por outro lado, os Judeus estavam obrigados a respeitar as procissões cristãs: “e cando nos saquemos o noso Deus e a sua mai Santa Maria pelas ruas n’a d’estar presente nengun xudeu, e os cristians tornarnos an das ruas, donde pasarem con noso Deus, porque se non mofen e non aya hi camerias, nin ruindades, nin desaguisados como de costume”. Era, com certeza, habitual esta forma de se meterem os Judeus com os cristãos, em vingança pola discriminaçom que padeciam: gozar com o seu deus, Jesus Cristo, e da mãe dele, Santa Maria. Mas é a expressom cristã “o nosso Deus” a destacar, porque equivale a um reconhecimento da pluralidade de crenças que se afasta, notadamente, do monopolismo e proselitismo oficial e faz entrever o relativismo religioso referido, que exprime, neste caso, a sinceridade da oferta de igualdade de tratamento por parte da religiom maioritária.

 

Tolerância e segregaçom -agora voluntária, admitida- no espaço urbano é o jeito acordado para artelhar a aceitaçom do outro. Nom apenas as procissões ham-de se afastadas e isoladas, também os bairros. “E nengun cristian morará na Xuderia”, diz a avença, informando assim da existência dum bairro judeu na vila (4); a intençom convivencial e nom discriminatoria do afastamento vém do facto mesmo do pacto: “ni fará hí nengun desaguisado”. Da outra banda estabelece-se: “Que o dito Xudeu Maor nin su jente merquen, troquen nin moren en vivienda fora da Xuderia e non nas outras ruas da vila, do moran os cristians”. Pactua-se, pois, que os Judeus de Alhariz nom possam instalar os seus comércios ou viver fora da judaria, mas, em compensaçom, é permitido atravesar a vila com os seus alimentos e mercaderias: “e entren los xudeus pelas portas da vila para Xuderia os vastimentos, que tiveren por menester” (5).

 

Isto é, segregaçom, mas sem negar aos Judeus o uso da cidade amuralhada dos cristãos quando resultar comercialmente conveniente. Destarte facilitavam-se reciprocamente a vida diária e económica, fazendo as duas partes concesões, tanto civis como religiosas.

 

Decide-se, aliás, que o Judeu Mor, Isaac Ismael, que se revela como um importante proprietário de bens imóveis fora do bairro judeu, no interior e no exterior da muralha, entregue a jeito de prenda “a casa do burgo” a Xoan de Amoeiro “polo dapnos que seus xudeus hi feçeren” (6). Esta compensaçom por agravos assinala um respeito pola autonomía judicial da alfama -o judeu-mor responde com os seus bens pola sua gente, sobrentendendo-se que farão despois entre eles a sua própria justiça- como base civil para a admisom do outro. E, além disso, o concelho obtém de Isaac Ismael outro compromiso -ao que, inferimos, vinha resistindo-se- que tem a ver com a tolerância dos Judeus para com a religiom dos cristãos (estes cediam com base no seu poder político e aqueles com base no seu poder económico): “e donar en juro de heredad pelo prezo, que conviren, á Sancha Eanez, abatisa do mosteiro de Santa Clara, que se está a facer, a orta que hi ten nos soburbios da vila, por que as Donas do Mosteiro, que hi fundou a Reina doña Violante, podan agrandar a orta e façer seu cimeterio”. As freiras clarisas poderám ter assim o seu camposanto graças aos Judeus de Alhariz, nom muito longe da judiaria e além da cerca da urbe. O facto de que tanto a judiaria quanto o mosteiro de Santa Clara estiveram fora da muralha, põe de manifesto como esta já nom atuava tanto como divisória neta entre as duas comunidades.

 

Este documento notarial é redigido e aprovado numha assembleia conjunta de “omes” do concelho e “xudeus”, que acreditam a tolerância como artelhamento da alteridade no final do século XIII, pacto que terá umha continuidade secular: as referências do final da Idade Média, posteriores ao acordo de convívio de 1289, nom o desmentem, tudo o contrário.

 

Texto da Avença de Alhariz de 1289 | Raigame nº11

A 5 de maio de 1366, em vésperas da guerra civil, o valedor da causa do rei Pedro I na Galiza, Fernando de Castro, adiantado-mor de el-Rei e tenente da fortaleza real de Alhariz, proclama umha anistia para os vizinhos da vila, que tem como finalidade perdoar os delitos pendentes e suspender toda açom de justiça do meirinho real: “que toda la justicia que el Rey dera contra ellos, et contra cualesquier dellos en cualquier manera e por cualesquier maleficios quellos hayan fechos o se hayan guardado de faser, a todos así judíos como cristianos… a todos les declara libres” (7). Reconhecimento senhorial e real da persistência, em meados do século XIV, de duas comunidades bem diferenciadas, tratadas igualitariamente no que diz respeito à responsabilidade civil.

 

Igreja de S. Estevo de Alhariz | 📷 Património Galego

Quase douscentos anos depois do pacto fundador, a 15 de junho de 1487, é o pároco da igreja cristã de S. Estevo que facilita aos judeus o alargamento do seu cemitério no Campo da Mina, ao pé da muralha, colado à judiaria, dando em foro umha herdade vizinha a todos “los judíos de la Aljama, vecinos y moradores de la villa de Allariz… por cuanto tenéis vuestro enterramientos, ya de luengo tiempo, en la otra heredad” (8). O carácter basicamente religioso da mútua tolerância entre cristãos e Judeus, destaca a importância desta referência para ilustrar a vigência tácita do acordo de finais do século XIII. Testemunha deste foro tão especial é Xoán Alfonso Carpinteiro, dirigente qualificado da revolta irmandinha em Alhariz que ajudara a juntar, vinte anos antes, umha fronte comum de cristãos, Judeus e mesmo mouros - assim foram chamados em Ourense- contra os cabaleiros do reino e as suas fortalezas.

 

A grande estabilidade das atitudes tolerantes entre os Judeus e os cristãos de Alhariz nom significa, com certeza, que nom existissem tensões e práticas de confronto como as que provocaram a avença de 1289. Mas, o característico de Alhariz são umhas mais que aceitáveis relações interétnicas, que levarão em 1488 a Mosé Peres, arrecadador real, a procurar lá refúgio para safar do afastamento discriminatório que se impunha nessa altura na cidade de Ourense.

 

Carlos Barros, historiador galego especialista em história medieval da Galiza, exerce como professor de História Medieval na Universidade de Santiago de Compostela. 

Traduçom livre para o galego-português da versom galega atualizada de “El otro admitido. La tolerancia hacia los judíos en la Edad Media gallega”/Xudeus e conversos na historia. I. Mentalidades e cultura (Congresso de Ribadávia, outubro 1991), Carlos Barros (ed.), Santiago, 1994, pp. 85-115; “O outro admitido”, ¡Viva El-Rei! Ensaios medievais, Vigo, 1996, pp. 75-115.

 

1 Documento do arquivo municipal de Alhariz publicado por José AMADOR DE LOS RÍOS, Historia de los judíos de España y Portugal, tomo II, Madrid, 1984, pp. 553-554; reproduzido também por Alfredo CID RUMBAO, Historia de Allariz, Ourense, 1984, pp. 64-65.

2 A vila de Allariz teve umha estreita relaçom com a familia real no século XIII, moraram lá os infantes, fundando a rainha Violante o mosteiro de Santa Clara, Alfredo CID RUMBAO, Historia de Allariz, Ourense, 1984.

3 Entre o castelo e o rio Arnoia, fora portanto das muralhas da vila, existe ainda, paralela à rua Socastelo, umha outra rúa chamada popularmente de sinagoga, Alfredo CID RUMBAO, Historia de Allariz, Ourense, 1984, p. 266.

4 Segundo a historiografía local as primeiras notícias da judiaria de Alhariz datam de inícios do século XIII, cfr. Alfredo CID RUMBAO, “Allariz”, Gran Enciclopedia Gallega, I, 1974, p. 195; isso podia explicar a falta de referência aos Judeus no foro de Alhariz do século XII.

5 Localizada a judiaria muito provavelmente a NO, entre a muralha e o rio, apenas existiam duas vías de acesso: circundar com grande dificuldade a cerca ou entrar pola Porta da Vila a fim de atravessar a vila; mapa anexo a Alfredo CID RUMBAO, Historia de Allariz, Ourense, 1984.

6 A transcriçom publicada por Alfredo Cid Rumbao (Historia de Allariz, Ourense, 1984, p. 64) mesmo esclarece melhor este aspecto concreto do acordo do que a versom referida de Amador de los Ríos.

7 Publica Benito F. ALONSO, El pontificado gallego, Ourense, 1897, p. 307; também Alfredo CID RUMBAO, Historia de Allariz, Ourense, 1984, p. 89.

8 Alfredo CID RUMBAO, Historia de Allariz, Ourense, 1984, p. 122; a igrexa de San Estevo está, precisamente, dentro do recinto amurallado, á altura da xudería.

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