quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

DA TOLERÂNCIA À FRATERNIZAÇOM

 Carlos Barros

No ano 1457 tem lugar em Ourense, durante o casamento do fidalgo Álvaro Suares, um facto singular: a reconciliaçom, por iniciativa dos anfitriões cristãos, de duas famílias judaicas enfrontadas (duas mulheres eram presas por pelejarem). A ata notarial refere: “estando ende a sua muller nóvea e esas donas onrradas da çibdade e fidalgos et escuderos trabtaron en maneira que fosen amigas et amigos nos outros todos los judios et que eran presos, por lo qual se abraçaron et perdoaron a rogo de aqueles fidalgos et donas” (1). O ato de reconciliaçom acontece sob a proteçom do concelho: “en presença de Vasco Gomes, alcallde e regidor da dita çibdade, que as tenía presos, et pera os poer en concordia poso, pena de seys çentos mrs, que usasen de boas obras unos e outros e se onrrasen” (2). O alcaide aceita e ratifica legalmente a resoluçom dos noivos e os outros fidalgos cristãos, libertando do cárcere municipal as mulheres judias enfrontadas; as quais, no dia seguinte, comparecem com os seus homens na sinagoga junto dum tribunal arbitral judaico para dirimir pacifica e legalmente as suas diferenças (3), repondo-se deste modo a autonomia judicial da alfama.

 

Encenaçom dum casamento judaico durante a Festa da Istória de Ribadávia 

Estes fidalgos cristãos, conciliadores de Judeus, fazem um bom uso da sua autoridade: nom aproveitam a ocasiom para impor a superioridade da religiom maioritária. A integraçom dos Judeus na sociedade de Ourense nom era uniformadora, como bem se sabe, comportava certo respeito pola sua religiom e a sua autonomia judiciária. Relativamente a direitos civis tratam mesmo os Judeus como se fossem cristãos, sem os obrigar a serem cristãos. Isto, mais do que admitir o outro, é já fraternizar com ele, quebrando a ideia hierárquica de que “un no-cristiano no es un verdadero hombre. Sólo un cristiano, por lo tanto, puede gozar de todos los derechos humanos” (4).

 

O casamento cristão-judaico de Ourense transgredia a legalidade tanto judaica como cristã (se bem que a maior vulneraçom que se produzia era a das normas legais vigorantes; isto é, cristãs). As Sete Partidas proibem explicitamente os banquetes conjuntos: “que ningund christiano, nin christana non combide a ningun judio, nin judia nin reciba otrosi conbite dellos para comer nin bever” (5). As leis de Valhadolid de 1412 impedem os Judeus de participarem nas festas dos cristãos (6). Prescreve, em 1460, o confessor de Enrique IV, Alonso de Espina, na sua Fortalitium Fidei: “no pudiendo comer unidos ni convidarse mutuamente” (7). As leis e costumes judaicos, por outro lado, desautorizavam que os Judeus levassem as suas diferenças perante os juízes cristãos (8), e, subentende-se, menos aínda perante simples vizinhos (embora sejam fidalgos). Os casamentos, festas e banquetes populares tinham na Idade Média, polo comum, umha finalidade igualitária, implicavam tal inversom de valores, que se comprende bem o pouco caso que se fazia de normas e intençom discriminadoras como as referidas.

 

O Padre Mariana, no início do século XVII, justifica a implantaçom da Santa Inquisiçom em Castela “a causa de la grande libertad de los años pasados y por andar moros y judíos mezclados con los cristianos en todo género de conversación y trato” (9). Na Galiza, em meados do século XV, andavam mais do que misturados: irmandados em casamentos e revoltas. A 25 de abril de 1467, relata um cônego de Ourense quando se aprestava a fazer parte no assalto irmandinho a Castelo Ramiro -açom rebelde que segundo ele “fazia por força”-: “os de Santa Yrmandade avían lançado pregón que leigos e clérigos, judíos e mouros, fosen derribar o castelo Ramiro” (10). O sentido igualitário e justiceiro da revolta ignorava as diferenças étnico-religiosas e da própria hierarquia da igreja. Foi referido o carácter autónomo dalgumhas concepções populares sobre a religiom que afloram com a mentalidade irmandinha da revolta (11). Por outro lado, dada a trajetória das relações cristão-judaicas em Ourense, também nom tem porque surpreender muito a unidade de açom em 1467.

 

Quer isto dizer que desaparecem, com a revolta antisenhorial, as atitudes antissemitas? Dez dias antes de dito testemunho oral do precavido cônego, umha irmandade local devolve a granja de Reza ao mosteiro de San Miguel de Bóveda, que antes fora subtraída aos freires por Diego Pérez Sarmiento, conde de Santa Marta, através justamente do seu mordomo e arrecadador Abraham de León, conhecido judeu de Ourense. Os camponeses que trabalhavam na granja de Reza, testemunham contra o mordomo dos Sarmiento no dito ato de restituiçom irmandinha, identificando-o como judeu ladrom no momento de reproduzir umha frase -“¡como agora engañei a señora abadesa con un rabo de pescado…!” (12)-, com a qual Abraham de León se vangloria de se ter apossado enganosamente da granja de Reza para o seu senhor Sarmiento. Esta leve manifestaçom antijudaica sai à tona movida polas atitudes antisenhoriais, que decorrentemente situavam os Judeus galegos no bando dos populares. O comentário citado nom deixa de ser, portanto, um fenômeno marginal na primavera insurreicional de 1467, dominada pola revolta urbana e rural igualitária de “leigos e clérigos, xudeus e mouros”, fruto de muitos anos de integraçom e relações amigáveis. Os que foram defendidos como vítimas polos populares são agora cabalmente convocados como rebeldes contra o velho inimigo comum, materializado em Ourense na fortaleza de Castelo Ramiro, que nom por acaso em 1446, quatro anos despois de ser tomada por assalto a sinagoga, estava nas mãos dos homens do mesmíssimo Pedro Díaz de Cadórniga (13).

 

Em resumo, a conflitividade social no final da Idade Média nom transforma na Galiza a tolerância em perseguiçom. Polo contrário, medra e metamorfoseia em fraternizaçom. Em meados do século XV, a alteridade devém pois identidade, em certo sentido o outro é, agora, como se fosse o eu. Produz-se umha inversom de valores que, apesar do seu carácter temporário, resulta bem significativa. Os galegos da época, segundo a documentaçom e os factos conhecidos, mais do que segregar, discriminar e fustrigar os Judeus, procurando culpados como meio de sublimar e descarregar tensões, chegam a fazer deles amigos de voda e irmãos na luta justiceira antinobiliar.

 

Compreende-se muito mellor o valor destes momentos de confraternizaçom galega entre cristãos e Judeus comparados com os massacres que, nessa altura, acontecem em Castela e Leom: o confronto armado, em julho de 1467, entre conversos e cristãos velhos em Toledo, e as matanças de Judeus em Sepúlveda (1468) e em Tolosa (1469) (14). Nos anos 50 e 60 do século XV, enquanto no Reino da Galiza se formam as precondições socio-psicológicas dumha grande revolta contra os senhores das fortalezas, em Castela e Leom agudizam-se as tensões antissemitas e põem-se as bases mentais para o édito de expulsom de 1492 (15).

 

O processo de "domesticaçom e castraçom do Reino da Galiza" inoculou o vírus antissemita no corpo social galego e deu cabo das relações amigáveis com os Judeus  📷 Terra e Tempo

A dependência política da Galiza da recentemente fortalecida monarquía castelhana obrigará a implementar nas cidades galegas a nova e definitiva legislaçom antijudaica. A integraçom da Galiza no Estado dos Reis Católicos e logo depois da Casa dos Áustrias, acarretará a perda progressiva de certas liberdades medievais, nomeadamente, a antiga tradiçom dumhas relações liberais e amigáveis entre Judeus e cristãos. Dito isto, cabe insistir em que estas boas relações nom apagaram as correntes antijudaicas da Galiza medieval (que terão nos tempos modernos um contexto institucional mais favorável). Porque nom existe tolerância sem o contraponto antijudaico. O problema é saber o que resulta hegemónico em cada lugar e em cada momento.

 

Carlos Barros, historiador galego especialista em história medieval da Galiza, exerce como professor de História Medieval na Universidade de Santiago de Compostela

 

Traduçom livre para o galego-português da versom galega atualizada de “El otro admitido. La tolerancia hacia los judíos en la Edad Media gallega”/Xudeus e conversos na historia. I. Mentalidades e cultura (Congresso de Ribadávia, outubro 1991), Carlos Barros (ed.), Santiago, 1994, pp. 85-115; “O outro admitido”, ¡Viva El-Rei! Ensaios medievais, Vigo, 1996, pp. 75-115.

 

1 Tem certa significaçom, no quadro do modelo cabaleiresco, a relaçom que estabelece o texto entre a condiçom fidalga dos mediadores e o objetivo perseguido de amizade e concórdia.

2 Xesús FERRO COUSELO, op. cit., p. 321.

3 ídem, p. 232.

4 Jacques LE GOFF, op. cit., p. 215.

5 Partidas VII, 24, 8.

6 Yitzhak BAER, op.cit., II, p. 440.

7 José AMADOR DE LOS RÍOS, Historia de los judíos de España y Portugal, III, Madrid, 1984, p. 399.

8 Yitzhak BAER, op.cit., I, p. 145.

9 “Historia de España”, Obras del Padre Juan de Mariana, II, Madrid, 1854, p. 202.

10 Xesús FERRO COUSELO, op. cit., p. 375.

11 Mentalidad justiciera, pp. 143-145.

12 Xesús FERRO COUSELO, op. cit., p. 146.

13 Xesús FERRO COUSELO, op. cit., II, p. 260.

14  José AMADOR DE LOS RÍOS, Historia de los judíos de España y Portugal, III, Madrid, 1984, pp. 147-152, 648; Angus MACKAY, “Popular movements and progroms in fifteenth-century Castile”, Past and Present, nº 55, 1972, pp. 34-35.

15 José María MONSALVO ANTÓN, Teoría y evolución de un conflicto social. El antisemitismo en la Corona de Castilla en la Baja Edad Media, Madrid, 1985, pp. 297 ss.


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