quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

ANTI-JUDAISMO NOBILIÁRIO

 Carlos Barros

O potencial económico dos Judeus (dalguns Judeus) tornava-os em alvo da pilhagem nobiliária; induvitavelmente, um virtual ambiente antissemita -nem sempre explicitado nas fontes- favorecia a impunidade dos agressores.

 

Existem dous precedentes na província [distrito] de Ourense.

 

No século XI, entre as terras de Alhariz e Cela Nova e a cidade de Ourense, tinha os seus domínios um nobre, Mendo González, que protegia uns comerciantes em tecidos -“hebreus”, segundo os documentos-, que são atacados e roubados por um outro nobre, Árias Oduáriz, que em represália é preso por Mendo, quem consegue a restituiçom do roubado, depois dumha série de peripécias que duram anos e supõem o trespasso do senhorio de certas vilas do agressor Árias para o nobre Mendo, para quem traballavam os Judeus na altura do ataque. (1)

 


Na sequência da Guerra dos Cem anos, durante a invasom do Reino de Galiza polo exército de João de Lencastre (1386-87), as iluminações da crónica de Jean Froissart mostram os Judeus a defender a vila de Ribadávia do ataque inglês.

No século XIV, quando as tropas do duque de Lencastre tomam Ribadávia (1386), o cronista Froissart, testemunha presencial, relata o seguinte: “Ainsi fut la ville de Ribadave gaignée à force, et eurent ceulx qui y entrèrent, grant butin d’or de d’argent ès maisons des Juifs par espécial” (2). De novo a referência à condiçom étnico-religiosa das vítimas aparece ligada à riqueza, alvo do saque nobiliário. Quer-se dizer que, como no caso anterior, o antissemitismo é, muito provavelmente, causa coadjuvante da agressom.

 

Chegamos, destarte, ao asalto de 1442 à sinagoga de Ourense por parte dos homens do cabaleiro Pedro Díaz de Cadórniga. Para além do roubo de dinheiro (50 mrs. velhos), destaca o agravo como meta principal dos atacantes: destruiçom da sinagoga e roubo das árvores (candelabros de sete braços), vexames de clara significaçom religiosa. Naturalmente o concelho reage em defesa dos Judeus, honrando a tradiçom local de tolerância, e denuncia o cabaleiro Cadórniga, a 15 de abril de 1442, quem se compromete a “castigar seus omees” polos agravos feitos “aos judíos da dita çidade et da sinagoga que avya destroyda” (3).

 

Estes danos causados aos Judeus da vila encabeçam um desses memoriais antisenhoriais de agravos que costumavam redigir no final da Idade Media os vizinhos de Ourense. Destacar os Judeus como vítimas é prova dumha secular política de integraçom e do igualitarismo da contestaçom antisenhorial (4), a qual também provoca, em ocasiões, umha divisom de opiniões entre os vizinhos mais influentes que nom marginaliza os Judeus, duvidosos também quando se tratava do confronto com os poderosos, mesmo nalgo que lhes tocaba tão de cerca como a agressom à sinagoga.

 

A 26 de junho de 1442, em presença dalguns cônegos e da gente de Pedro Díaz de Cadórniga, quatro Judeus de Ourense declaram junto do notário do cabido para exculpar dito cabaleiro do roubo na “sua casa de oraçon” a fim de que fosse absolvido da excomunhom, situaçom na que ele se achava por causa da destruiçom da sinagoga, junto com vários dos seus homens, “sen querela alguna de los ditos judios”. Isto é, para além da queixa referida do concelho (15 de abril), houve umha outra de tipo eclesiástico que concluiu com a excomunhom dos culpados e do mesmo Pedro Díaz, contra a opiniom do bando dos Cadórnigas, ao que indubitavelmente pertenciam os cônegos, familiares e, dalgum jeito, os Judeus que protagonizam esta ata notarial de 26 de junho. No entanto, os Judeus exculpadores declaram que “asalvo quedase que qual quer que tevese as arbores que lles foron tomadas da dita casa de oraçon que os no absolvesen ffasta que lle fosen tornadas” (5). Procuravam, em consequência, exonerar o chefe do bando nobiliar, mas sem ultrapassar o limiar mental que assinalava a gravidade do delito religioso do roubo, e nom devoluçom, das árvores dos Judeus. A dimensom religiosa do agravo estava acima das parcialidades, resultava algo imperdoável no Ourense do século XV, mesmo para os amigos do senhor.

 

A igreja-catedral de Ourense adotou umha postura filojudaica mesmo em questões religiosas

Na hora de conviver com os Judeus, a igreja-catedral de Ourense chega, logo, em 1442, muito mais longe do que a igreja de Alhariz quando cede terra, en 1487, para o cemitério judaico: adota umha atitude filojudaica mesmo em questões religiosas. Castiga um atentado religioso contra a sinagoga como se fosse perpetrado contra a igreja cristã, indo mesmo além do que o próprio concelho que, a 15 de abril, exime pessoalmente Pedro Díaz, enquanto a igreja o excomunga, através do provisor do bispo com o provável apoio da maioria do cabido. A desvalorizaçom da excomunhom como umha censura eclesiástica que se vinha aplicando a todo tipo de delitos que afetassem os interesses eclesiásticos, nom mingua a importância desta defesa dos Judeus mediante umha pena canônica.

 

O duro conflito civil entre os Cadórnigas e a igreja de Ourense (6), alimenta com certeza o suporte eclesiástico às vítimas judias mas nom esclarece completamente o uso concreto da excomunhom, que comporta a exclusom da igreja cristã, para punir um delito cometido contra os membros doutra religiom. Na realidade é como se se praticasse isso de que “se salvaba cada uno en su ley”.

 

Em resumo, o mais parecido que houve na Galiza medieval com um motim antissemita, o ataque à sinagoga de Ourense em 1442, tem mais de episódio de bandidismo senhorial do que outra cousa. Nom se vê cá essa procura dumha válvula de escape para o descontentamento popular que torna os Judeus em “bodes expiatórios” da conflitividade social do final da Idade Média. O povo que representa ao concelho está claramente do lado dos Judeus, solidariedade que se irá reforçar ainda mais enquanto as tensões sociais se agudizarem nas vésperas da revoluçom de 1467.

 

Carlos Barros, historiador galego especialista em história medieval da Galiza, exerce como professor de História Medieval na Universidade de Santiago de Compostela

 

Traduçom livre para o galego-português da versom galega atualizada de “El otro admitido. La tolerancia hacia los judíos en la Edad Media gallega”, Xudeus e conversos na historia. I. Mentalidades e cultura (Congresso de Ribadávia, outubro 1991), Carlos Barros (ed.), Santiago, 1994, pp. 85-115; “O outro admitido”, ¡Viva El-Rei! Ensaios medievais, Vigo, 1996, pp. 75-115.

 

1 Os documentos, datados nos anos 1044 e 1047, foram publicados por Fidel FITA, Boletín de la Real Academia de la Historia, tomo XXII, 1893, pp. 171-180.

2 Kervyn de LETTENHOVE (ed.), Oeuvres de Froissart. Chroniques, tomo XII (1386-1389), Bruxelles, 1981, p. 86.

3 Xesús FERRO COUSELO, op. cit., pp. 273-274. 

4 Mais do mesmo, noutro memorial de 1442 sobre os Agravios que son feytos ao qoncello por Pedro Dias é seus omes, o concello inclúe entre as vítimas dous xudeus: Iten seu escudeiro Alvaro Gandio matou á noso vesiño Alonso judio (…) Item Gomes de Paazos quiso matar á noso vesyño Nuño Patiño judio, Benito F. ALONSO, Los judíos en Orense, Ourense, 1904, p. 17. 

5 Documentos del Archivo de la Catedral de Orense, I, Ourense, 1923, pp. 424-425. 

6 Houve conflitos do provisor e do cabido com García Díaz de Cadórniga em 1440 e 1441, publica Boletín de la Comisión de Monumentos de Orense, VI, pp. 230-270; Rui Díaz de Cadórniga é ajustiçado em 1450 por agravos ao bispo de Ourense, e o mesmo Pedro Díaz de Cadórniga morre en 1459 estando preso -e de novo excomungado- no cárcere da igreja catedral, ídem, pp. 162, 231-232, 272.

Sem comentários:

Enviar um comentário