quarta-feira, 27 de março de 2024

ASSASSINOS DE CRIANÇAS

 Acusar Judeus de serem "assassinos de crianças" pode parecer insignificante para algumhas pessoas, mas é crucial reconhecer que essa afirmaçom carrega consigo umha carga histórica extremamente prejudicial. O mito, conhecido como "libelo de sangue" ou "crime ritual", tem raízes milenares e foi frequentemente utilizado ao longo dos séculos como justificativa para a perseguiçom e o massacre de comunidades judaicas, especialmente durante a Idade Média. Surpreendentemente, esse mito persiste até hoje.

Caricatura antissemita atual em que Israel (Judeus) é acusado de assassino de crianças

Para compreendermos a origem e o desenvolvimento desse mito ao longo da história, é necessário retroceder um pouco e explorar os eventos que contribuíram para a sua disseminaçom.


No século I d.e.c., em Alexandria, no Egito, sob domínio romano, surge pola primeira vez na história a acusaçom do 'libelo de sangue'. Alexandria era umha das maiores cidades do mundo na época e abrigava umha considerável comunidade judaica, já estabelecida há alguns séculos.

Naquele momento, os Judeus já enfrentavam acusações de serem responsáveis polas derrotas militares do Egito. Surgiu, entom, o boato de que, durante a celebraçom da Páscoa judaica (Pessach), os Judeus estariam a realizar sacrifícios de humanos nom-judeus nas suas sinagogas, utilizando o sangue para fazer matzah, o pão ázimo.

No meio desses rumores, o governador romano Flaccus permitiu que a populaçom atacasse os Judeus. Isso resultou numha terrível violência antijudaica caracterizada por saques, pilhagens, violência física, tortura e assassinatos direcionados contra a comunidade judaica.


Oitocentos anos depois, no século XII, durante o período das Cruzadas, período marcado por intensa violência contra os Judeus, a acusaçom do 'libelo de sangue' aparece pola primeira vez, na Europa, especificamente no condado de Norwich, na Inglaterra.

Na véspera do feriado de Páscoa de 1144, umha criança de 12 anos chamada Guilherme desapareceu. Após o seu corpo ter sido encontrado na floresta com marcas de facadas, surgiu o rumor de que ele fora sequestrado por Judeus, que o teriam torturado, assassinado e utilizado o seu sangue para a produçom de matzah, o pão ázimo consumido durante a festividade judaica de Pessach.

Os judeus de Norwich foram brutalmente massacrados, e em sequência, Guilherme de Norwich adquiriu o status de mártir. Este episódio transformou o ‘libelo de sangue’ num mito fundante da cristandade europeia, sugerindo erroneamente que os Judeus encontram prazer supremo em torturar e sacrificar crianças nom judias.

Na cidade de Norwich, umha igreja ainda preserva essa narrativa por meio dumha pintura ou quadro.

O "martírio" de Guilherme de Norwich

No Reino de Aragom a 31 de agosto de 1250 a criança Domingos de Val, infante do coro da catedral do Salvador de Saragoça, teria sido vitima dum assassinato ritual supostamente feito por Judeus. 

De acordo com a lenda, escrita em 1583; isto é, 333 anos após o alegado occorido, Domingos era filho de Sancho de Val, notário, e Isabel. Aos sete anos foi sequestrado por um judeu chamado "Albayuceto" (ou "Albay-Huzet", nome que, por "soar hebraico" mas nom ser de facto um nome judaico existente, suspeita-se ter sido inventado polo escritor da lenda) que, com outros companheiros judeus, trataram de repetir a Paixom de Cristo e crucificaram-no numha parede com três cravos, de braços abertos. Após isso decapitaram-no e cortaram-lhe os pés, escondendo o corpo nas margens do Rio Ebro. Uns pescadores, vendo luzes estranhas, avisaram as autoridades, que encontraram o corpo enterrado no local donde saíam as luzes.

Os restos mortais do santo teriam sido levados para a Igreja de São Gil e mais tarde para a catedral, onde hoje existe a Capela de São Domingos de Val, local de veneraçom das relíquias. 

Capela de S. Domingos de Val na sé de Saragoça (Espanha)

Após o Concílio Vaticano II, o seu culto foi suprimido em 1965, e a sua festa removida do calendário litúrgico da Missa Nova, após nom terem sido encontrados vestígios da sua existência.


Novamente, a acusaçom do libelo de sangue ocorre em Trento, Itália, em 1475, às vésperas da Páscoa, quando a criança Simon, de 2 anos, desapareceu. O seu pai afirmou que o filho fora sequestrado e assassinado pola comunidade judaica. Como resultado, aproximadamente 18 homens judeus e cinco mulheres judias foram detidos e executados sob a falsa acusaçom de ritual de assassinato.

Gravura do século XV (1493) retratando o alegado assassinato da criança Simão. Os remendos amarelos redondos são emblemas que os Judeus eram forçados a usar. Nomes de protagonistas como Tobias e Angelus são rotulados.

Nessa altura o caso da Santa Criança de La Guardia conta o caso dum alegado assassinato ritual dumha criança nos finais da década de 1480 na localidade castelhana de La Guardia (Toledo)

Num clima de grande tensom após o assassinato do inquisidor Pedro de Arbués, e intensa atividade da Inquisiçom, em 1490 um grupo de Judeus e conversos foi acusado de sequestrar umha criança em Toledo e submetê-la às torturas sofridas por Cristo na sua Paixom. Pouco depois foram julgados num ato de fé em Ávila que teve grande eco. O caso é umha variaçom casta da acusação de infanticídio ritual, umha vez que nom apenas os Judeus são incriminados, mas também os conversos.

Segundo a lenda elaborada em 1583 polo frei Rodrigo de Yepes, Cristóbal (ou Juan) era um menino de Toledo, filho de Alonso de Pasamonte e Juana la Guindera, estudante dumha igreja. Um grupo de Judeus, após assistir a um auto de fé em Toledo, jurou vingança contra os inquisidores e fez dele vítima dum assassinato ritual. Os Judeus queriam matar todos os cristãos da cidade, entom fizeram um feitiço e precisaram do coraçom dum cristão inocente e dumha hóstia consagrada. Dous deles sequestraram o menino e levaram-no para La Guardia, onde na Sexta-Feira Santa reproduziram nele os martírios da Paixom de Jesus. Depois de o crucificarem, arrancaram-lhe o coraçom e ferveram-no; depois roubaram umha hóstia, mas quando o judeu Benito García ia a Samora para receber ajuda doutros judeus, foi preso em Ávila: a hóstia brilhou e ele foi preso, e entom o coraçom da criança foi encontrado. O judeu foi torturado até confessar o facto e os seus cúmplices.

O Tribunal da Inquisiçom processou os Judeus e conversos presos. Estão preservados alguns documentos do processo e todo o processo contra o arguido José Franco demonstra inúmeras irregularidades e absoluta falta de provas. O processo foi político e teve como objetivo criar um clima antissemita para favorecer o decreto de expulsom dos Judeus de março de 1492.

Nengum corpo foi encontrado e nengumha criança foi dada como desaparecida; os primeiros detidos foram apenas acusados ​​de criptojudaísmo e, a partir dos interrogatórios e torturas, foi forjada a ideia do crime ritual. O primeiro preso, Benito García, em junho de 1490, foi acusado de ser um converso que retornara ao judaísmo, o que reconheceu como verdadeiro. Ele mencionou Yucef Franco, um sapateiro judeu de Tembleque que foi preso e, doente, foi levado na prisom a confessar que umha criança morrera. A partir daí foram presos um total de dous judeus de Tembleque e Samora e seis conversos de La Guardia, acusados ​​de heresia, apostasia e crimes contra a fé. Os acusados ​​apenas confessaram sob tortura e enganos, e no final do julgamento declararam que tudo era falso.

O inquisidor Fernando de San Esteban consultou juristas e teólogos de Salamanca que determinaram, com base nos atos, a culpa dos acusados. Todos os oito acusados ​​foram queimados na fogueira em Ávila a 16 de novembro de 1491. Os bens confiscados dos presos foram utilizados para financiar a construçom do mosteiro de Santo Tomás de Ávila, concluído em agosto de 1493. Lope de Vega inspirar-se-ia na lenda para escrever a comédia "El niño inocente de La Guardia".

Gravura do século XVIII mostrando a lenda do martírio do Santo Niño de La Guardia.

Como no caso de Domingos de Val, após o Concílio Vaticano II, o seu culto foi suprimido, sendo removida a sua festa do calendário litúrgico da Missa Nova, perante a ausência de vestígios da sua existência.


Segundo umha outra tradiçom em 1690 teve lugar o caso de Gabriel de Białystok, umha criança de 6 anos que se tornou num santo da Igreja Ortodoxa, amplamente venerado polas igrejas russa e polaca.

Gabriel Gowdel nasceu no vilarejo de Zwierki, perto de Zabłudów (atual Bielorrússia), na família dos camponeses ortodoxo bielorrussos Piotr e Anastazja Gowdel. Com seis anos de idade, em 3 de maio de 1690 (20 de abril no calendário gregoriano), teria sido  sequestrado e morto em circunstâncias obscuras durante a Pessach (Páscoa Judaica). Schutko, um rico locador judeu de Zwierki, foi acusado de tê-lo trazido a Białystok, exsanguinado e trazido de volta a Zwierki, onde depositou o seu corpo

Após o encontro do corpo e investigações quanto à natureza do crime, o jovem Gabriel foi sepultado numha igreja nas proximidades, onde já começou a ser venerado polos locais, que, durante umha epidemia no início do século XVIII, sepultavam os seus filhos perto do seu túmulo. 

As suas relíquias foram transferidas em 1755 para o Mosteiro da Santa Trindade de Slutsk, a 105 quilômetros de Minsk, e foi canonizado em 1820 por São Gregório V, entom Patriarca Ecumênico de Constantinopla, e o seu culto espalhou-se polo Império Russo. As relíquias ainda foram movidas em 1992 para Białystok, e no ano seguinte para Zabłudów. Em 1995, foi iniciada a construçom dum mosteiro em Zwierki, com a intençom de ser o seu principal local de culto, e o mesmo foi consagrado em 2003, com a translaçom das relíquias do santo em 3 de maio (sua comemoraçom no calendário juliano).

A Igreja Ortodoxa Russa canonizou Gabriel como o santo padroeiro de crianças doentes, sendo festejado no começo de cada maio. Algumhas autoridades judaicas e de direitos humanos acusam o seu culto de ser a continuaçom dum libelo de sangue, instrumentalizado para promover o antissemitismo, pois nunca foi apresentada qualquer evidência para apoiar a acusaçom contra os Judeus. 

Ícone de São Gabriel de Białystok do século XIX.

Após o Holocausto, em 1945, 240 mil Judeus retornaram às cidades e vilas polacas para reconstruir as suas vidas, umha populaçom consideravelmente reduzida em comparaçom com os 3,5 milhões de Judeus que lá viviam em 1939. No mesmo ano, a cidade de Kielce contava com 24 mil residentes Judeus. No entanto, em 1945, apenas 200 judeus retornaram.

Nessa cidade, a acusaçom do 'libelo de sangue' ressurge mais umha vez. Cento e sessenta desses 200 sobreviventes do Holocausto na cidade de Kielce, sem terem onde morar, passaram a residir num prédio cedido por umha instituiçom judaica. Apenas um mês após a instalaçom, surgiu um boato na cidade alegando que os Judeus teriam sequestrado e assassinado umha criança no prédio.

Assim teve início o que ficou conhecido como o "pogrom de Kielce". Nesse episódio trágico, 42 Judeus foram mortos e 80 ficaram feridos. Após o pogrom, muitos Judeus decidiram nom mais buscar reassentamento na Polônia e rumar para Israel.

O pogrom de Kielce, logo depois da Shoah, foi ateado por um libelo de sangue


As atuais acusações de os Judeus serem "assassinos de crianças" nom estão alheias a essa longa história milenar. Na antiguidade, os Judeus foram acusados de matar crianças e utilizar o sangue em rituais religiosos. Essa acusaçom ressurgiu na forma dum mito cristão na Idade Média, foi reutilizada na Rússia czarista e reciclada polo regime nazista. Hoje, esse mito, que atravessou séculos, é atualizado de forma peculiar para a questom israelo-palestiniana.

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