quinta-feira, 2 de outubro de 2014

ANTISSEMITISMO E NACIONAL-SOCIALISMO (Parte I)

Moishe Postone

Neste ensaio vou tentar aproximar-me dumha explicaçom do extermínio da Judiaria europeia através dumha interpretaçom do antissemitismo moderno. A minha intençom nom é explicar porque é que o nazismo e o antissemitismo moderno experimentaram um desenvolvimento notável e se tornaram hegemónicos na Alemanha. Umha tal tentativa acarretaria umha análise da especificidade do desenvolvimento histórico alemão, matéria sobre a que já muito se tem escrito. Porém, este ensaio procura determinar mais de perto aquilo que se desenvolveu, ao sugerir umha análise do antissemitismo moderno que salienta a sua ligaçom intrínseca com o nacional-socialismo. Esta aferiçom é umha pré-condiçom necessária para qualquer análise substantiva das razões para o triunfo do nacional-socialismo na Alemanha. 

O primeiro passo deve ser umha especificaçom do Holocausto e do antissemitismo moderno. O problema nom deve ser colocado quantitativamente, quer em termos do número de pessoas assassinadas ou no grau de sofrimento causado. Existem muitos exemplos históricos de assassinatos de massas e de genocídio (por exemplo, foram mortos muitos mais Russos do que Judeus polos nazistas). A questom é, ao invés, de especificidade qualitativa. Aspectos particulares do extermínio dos Judeus europeus polos nazistas ficam inexplicáveis enquanto o antissemitismo for tratado como um exemplo específico dumha estratégia de "bode expiatório" cujas vítimas poderiam ter sido membros de qualquer outro grupo. 

O Holocausto caracterizou-se por um senso de missom ideológica, por umha relativa falta de emoçom e ódio imediatos (ao contrário dos pogroms, por exemplo) e, o que é mais importante, a sua aparente falta de funcionalidade. A exterminaçom dos Judeus nom parece ter sido um meio para qualquer fim. Eles nom foram exterminados por razões militares ou no decurso dum violento processo de aquisiçom de território (como foi o caso dos Índios Americanos e dos Tasmanianos). Nem a política dos nazis relativamente aos Judeus se pareceu com a sua política relativamente aos Polacos e aos Russos, que procurou erradicar aqueles segmentos da populaçom cuja resistência se poderia cristalizar, de modo a explorar a restante populaçom mais facilmente como hilotas. Com efeito, os Judeus nom foram exterminados devido a qualquer objetivo manifesto "extrínseco". O extermínio dos Judeus deveria ter sido nom apenas total, como constituía o seu próprio objetivo, o extermínio polo extermínio, um objetivo que adquiriu prioridade absoluta (3).

Nengumha explicaçom funcionalista do Holocausto e nengumha teoria do antissemitismo como bode expiatório pode sequer começar a explicar o porque de, nos últimos anos da guerra, quando as forças alemãs estavam a ser esmagadas polo Exército Vermelho, umha proporçom significativa de veículos ter sido desviada do apoio logístico e utilizada para transportar os Judeus para as câmaras de gás. Umha vez reconhecida a especificidade qualitativa do extermínio dos Judeus europeus, torna-se claro que as tentativas de explicaçom ligadas ao capitalismo, ao racismo, à burocracia, à repressom sexual ou à personalidade autoritária permanecem num nível demasiado geral. A especificidade do Holocausto requer umha mediaçom muito mais determinada de forma a aproximarmo-nos do seu entendimento.
Mesmo quando estavam prestes a serem derrotados, os nazistas priorizaram
 o apoio logistico para o transporte dos Judeus para as câmaras de gás
O extermínio dos Judeus europeus está, como é óbvio, relacionado com o antissemitismo. A especificidade do primeiro deve ser relacionada com a do segundo. Para além disso, o antissemitismo moderno deve ser entendido com referencia ao nazismo enquanto um movimento -um movimento que, em termos da sua própria autocompreensom, representou umha revolta.

O antissemitismo moderno, que nom deve ser confundido com um preconceito antijudaico quotidiano, é umha ideologia, uma forma de pensamento, que emergiu na Europa no final do século XIX. O seu surgimento pressupôs formas anteriores de antissemitismo, as quais tinham sido umha parte integrante da civilizaçom cristã ocidental durante séculos. Aquilo que é comum a todas as formas de antissemitismo é o grau de poder atribuído aos Judeus: o poder para matar Deus, para desencadear a Peste Bubónica e, mais recentemente, para introduzir o capitalismo e o socialismo. O pensamento antissemita é fortemente maniqueísta, como os Judeus a desempenharem o papel de filhos das trevas.

E nom apenas o grau, mas também a qualidade do poder atribuído aos Judeus que distingue o antissemitismo de outras formas de racismo. Provavelmente, todas as formas de racismo atribuem um poder potencial ao Outro. Este poder, contodo, é usualmente concreto, material ou sexual. É o potencial do oprimido (enquanto reprimido), dos "Untermeschen" (sub-humanos). O poder atribuído aos Judeus é muito maior e é percebido como real ao invés de potencial. Para além do mais, é um tipo diferente de poder, um nom necessariamente concreto. O que caracteriza o poder imputado aos Judeus no antissemitismo moderno é o facto de ser misteriosamente intangível, abstrato e universal. É considerado como umha forma de poder que nom se manifesta diretamente, mas deve encontrar outro modo de expressom. Procura um suporte concreto, politico, social ou cultural, mediante o qual possa funcionar. Em virtude do poder dos Judeus, tal como é concebido pola imaginaçom antissemita moderna, nom estar limitado concretamente, "enraizado", é presumido como sendo dumha imensidom desconcertante e extremamente difícil de contrariar. Considera-se que está por detrás dos fenómenos, mas nom é idêntico aos mesmos. A sua fonte é portanto considerada oculta -conspiratória. Os Judeus representam umha conspiraçom internacional extremamente poderosa e intangível.

Um exemplo gráfico desta visom é providenciado por um poster nazi que ilustra a Alemanha, representada por um trabalhador forte e honesto, ameaçada a oeste por um John Bull [britânico] gordo e plutocrata, e a Leste por um Comissário Bolchevique brutal e bárbaro. Todavia, estas duas forças hostis som meros fantoches. Elevando-se acima do globo, e a manietá-los, está o judeu. Esta visom nom era de forma algumha um monopólio dos nazis. É característica do antissemitismo moderno que os Judeus sejam considerados a força que se esconde por detrás dos antagonistas "aparentes": o capitalismo plutocrata e o socialismo. O "Judaísmo Internacional" é, para além disso, percebido como estando centrado nas "selvas de asfalto" das megalópoles urbanas emergentes, por detrás da "cultura moderna, vulgar e materialista" e, em geral, de todas as forças que contribuem para o declínio dos grupos sociais, valores e instituições tradicionais. Os Judeus representam umha força estrangeira, perigosa e destrutiva que mina a "saúde" social da naçom. O antissemitismo moderno, portanto, é caracterizado nom apenas polo seu conteúdo secular, mas também polo seu carácter sistemático. A sua pretensom é a de explicar o mundo, um mundo que se tornou rapidamente demasiado complexo e ameaçador para muitas pessoas.
Na propaganda nazi o Judeu é considerado como a força que
se esconde por detrás dos inimigos antagonistas da Alemanha
Esta determinaçom descritiva do antissemitismo moderno, embora necessária para diferenciar essa forma do preconceito ou racismo social, nom é suficiente em si mesma para indicar a ligaçom intrínseca ao nacional-socialismo. Ou seja, o objetivo de ultrapassar a separaçom habitual entre umha análise sócio-histórica do nazismo e um exame do antissemitismo ainda nom está, a este nível, cumprido. Ainda é requerida umha explicaçom que possa mediar ambas. Essa explicaçom deve ser capaz de fundamentar historicamente a forma de antissemitismo descrita anteriormente através das mesmas categorias que poderiam ser utilizadas para explicar o nacional-socialismo. A minha intençom nom é negar as explicações sócio-psicológicas ou psicanalíticas (4), mas antes elucidar um quadro de referência histórico-epistemológico dentro do qual possam ser efectuadas especificações psicológicas mais aprofundadas. Esse quadro de referência deve ser capaz de elucidar o conteúdo específico do antissemitismo moderno e ser histórico, isto é, deve contribuir para um entendimento de porque é que essa ideologia se tornou tam prevalecente num dado momento, desde o final do século XIX. Na ausência de tal quadro de referência, todas as outras tentativas explicativas que se centram numha dimensom subjetiva permanecem historicamente indeterminadas. O que é necessário, portanto, é umha explicaçom em termos dumha epistemologia sócio-histórica.

O desenvolvimento completo da problemática do antissemitismo extravasaria os limites deste ensaio. Deve ser realçado, contodo, que umha análise cuidadosa da visom de mundo proposta polo antissemitismo moderno revela que se trata dumha forma de pensamento na qual o rápido desenvolvimento do capitalismo industrial, com todas as suas ramificações sociais, é personificado com o Judeu. Os Judeus já nom som considerados meramente os possuidores do  dinheiro, como sucedia no antissemitismo tradicional,mas antes responsabilizados polas crises económicas e identificados com o espectro de reestruturaçom e desarticulaçom sociais resultantes dumha rápida industrializaçom: urbanizaçom explosiva, declínio das classes e estratos sociais tradicionais, surgimento dum grande proletariado industrial cada vez mais organizado, e assim por diante. Por outras palavras, a dominaçom abstracta do capital, a qual, particularmente com a rápida industrializaçom, apanhou as pessoas numha rede de forças dinâmicas que nom podiam compreender, passou a ser percebida como o domínio do Judaísmo Internacional.

Isto, todavia, nom corresponde a mais do que umha primeira abordagem. A personificaçom foi descrita, mas nom ainda explicada. Já existiram muitas tentativas de explicaçom mas nengumha delas, na minha opiniom, se revelou completa. O problema com essas teorias, tal como as de Max Horkheimer (5), que se concentram na identificaçom dos Judeus com o dinheiro e a esfera da circulaçom, é que elas nom conseguem explicar a noçom de que os Judeus também constituem o poder por trás da social-democracia e do comunismo. À primeira vista, outras teorias, tais como a de George L. Mosse (6), que interpretam o antissemitismo moderno como umha revolta contra a modernidade, parecem mais satisfatórias. Tanto a plutocracia como os movimentos operários foram concomitantes da modernidade, da massiva reestruturaçom social resultante da industrializaçom capitalista. O problema com estas abordagens, contodo, é que o "moderno" teria de incluir certamente o capital industrial. Ora, como é sabido, o capital industrial nunca foi um objeto dos ataques antissemitas, mesmo num período de rápida industrializaçom. Para além do mais, a atitude do nacional-socialismo relativamente a muitas outras dimensões da modernidade, especialmente no que se refere à tecnologia moderna, foi afirmativa ao invés de crítica. Os aspectos da vida moderna que foram rejeitados e aqueles que foram afirmados polos nacional-socialistas formam um padrom. Esse padrom deve ser intrínseco a umha adequada conceptualizaçom do problema. Dado que esse padrom nom era exclusivo do nacional-socialismo, a problemática possui um significado de longo alcance.

A afirmaçom do capital industrial por parte do antissemitismo moderno indica a necessidade dumha abordagem que consiga distinguir entre aquilo que o capitalismo moderno realmente é e a forma como se manifesta, entre a sua essência e a sua aparência. O termo "moderno" nom possui em si mesmo umha diferenciaçom intrínseca que permita tal distinçom. Gostaria de sugerir que as categorias sociais desenvolvidas por Marx na sua crítica de maturidade, tais como "mercadoria" e "capital", som mais adequadas, na medida em que um conjunto de distinções entre aquilo que é aquilo que parece ser som intrínsecas a essas mesmas categorias. Estas categorias podem servir como ponto de partida para umha análise capaz de diferenciar as várias percepções do "moderno". Essa abordagem tentaria relacionar o padrom da crítica social e a afirmaçom que estamos a considerar com características das próprias relações sociais capitalistas.

(3) A única tentativa recente, na média da Alemanha ocidental, de especificar qualitativamente o extermínio dos Judeus polos nazis foi feita por Jürgen Thorwald no Spiegel a 5 de fevereiro de 1979.

(4) Cf. Norman Cohn, História dum mito. A "conspiraçom" judia e os Protocolos dos Sábios de Siom, Gallimard, 1967.

(5) Max Horkheimer, "Die Juden und Europa", em Zeitschrift für sozialforschung, 8º ano (1939-40), págs. 135-137. Existe umha traduçom deste artigo intitulado "Porque o fascismo?" em Esprit, maio 1978.

(6) George L. Mosse, The Crisis of German Ideology, Nova Iorque, 1964.
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Este ensaio foi publicado por Moishe Postone em 1986 (em "Germans and Jews since the Holocaust: The Changing Situatin in West Germany", edições Holmes&Meier, pp. 302-314).

Pode-se acessar a este ensaio na sua versom original em inglês ou na sua traduçom para o francês. Também se pode aceder à versom em português (traduçom de Nuno Miguel Machado).

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