Esta postagem (a sétima) faz parte do dossier intitulado "O ódio é um espelho" sobre as simpatias do nazismo internacional com Beiras e BNG por terem-se negado a condenar o Holocausto*
João Guisan Seixas, escritor
A coisa então não começa neste ano nem com esta votação. Muito pelo contrário, a atitude hostil de Beiras e BNG à Declaração Institucional em Memória das Vítimas do Holocausto, não representa o início de nenhum processo, mas a consequência de um que vem de muito mais longe.
O nacionalismo galego tem um pecado original. Todos os nacionalismos se reivindicam da idade de pedra, mas na verdade todos eles nascem no romantismo, como consequência do conceito de Estado-Nação que cristaliza na Ilustração (em Rousseau e em Montesquieu, que estes movimentos paradoxalmente tanto odeiam) e que se concretiza pela primeira vez na revolução francesa. O nacionalismo galego, como o espanhol, como o polaco, como o alemão, é um produto do romantismo, e como tal tem um elemento de irracionalidade e mito intrínseco. Goya colocou este lema a um dos seus mais famosos "Caprichos": "Os sonhos da razão produzem monstros". Ora, a racionalização das fantasias não os produz menores.
O nacionalismo galego tem um pecado original. Todos os nacionalismos se reivindicam da idade de pedra, mas na verdade todos eles nascem no romantismo, como consequência do conceito de Estado-Nação que cristaliza na Ilustração (em Rousseau e em Montesquieu, que estes movimentos paradoxalmente tanto odeiam) e que se concretiza pela primeira vez na revolução francesa. O nacionalismo galego, como o espanhol, como o polaco, como o alemão, é um produto do romantismo, e como tal tem um elemento de irracionalidade e mito intrínseco. Goya colocou este lema a um dos seus mais famosos "Caprichos": "Os sonhos da razão produzem monstros". Ora, a racionalização das fantasias não os produz menores.
Sem ir mais longe, a letra do
hino galego, que é cantado de punho erguido pelos nossos
"esquerdistas", foi feita por
um proto-nazi, machista, com um característico complexo de
inferioridade/superioridade, um Alain Soral de Ponteceso e do século XIX,
chamado Eduardo Pondal. Um poeta "wagneriano" sempre imerso numa
atmosfera delirante de exaltação da raça, da força, da virilidade agressiva.
Tem-se discutido às vezes
acerca do significado da expressão "nação de Breogan" que aparece no
hino galego, que se interpreta no sentido político do nacionalismo actual, mas
que choca com outros versos do próprio poema original de que se toma o hino
(mas que não se cantam nele) onde a Galiza é
chamada de "região de Breogan". Mas há uma outra interpretação
concorda muito bem com uma outra passagem do poema original (também não
incluída no hino) em que se invoca a "Grei de Breogan". Breogan, para
Pondal, era o mítico progenitor de todos os galegos, e por isso a interpretação
mais cabal da palavra "nação" nesse contexto seria a etimológica:
"conjunto dos nascidos de...". "Nação" é um cognato de
"nascer". A "nação de Breogan" seria o conjunto dos
nascidos de Breogan, a sua descendência.
Embora a palavra
"nação" seja latina, o conceito é anterior à fundação mesma de Roma.
Séculos antes de que o latim começasse a ser escrito, já se falava na Bíblia
inúmeras vezes da "nação de Israel" (a primeira em Éxodo 40, 38), o
que, como no hino galego, quer dizer "o conjunto dos nascidos de
Jacob". Como se sabe, Israel é a alcunha que ganhou Jacob (o mítico
progenitor dos míticos progenitores das míticas doze tribos) após ter lutado
com um anjo que lhe enviava deus, e quer dizer "aquele que luta contra
Deus", o que já adianta o carácter complexo das futuras relações entre os
judeus e a divindade. Daí que essa expressão às vezes apareça também traduzida
como "povo de Israel", "filhos de Israel" ou "os
israelitas", ou como simplesmente "Israel". O nome da
"nação" funde-se com o deu seu procriador, e surge assim o primeiro
nome de "nação" (não de "povo", nem de Estado) de que há
registo.
O conceito de "nação"
aparece pois como o de "conjunto da descendência de alguma personagem
mítica". O nacionalismo de Pondal é nacionalismo sim, mas não no sentido
político actual. É um nacionalismo etimológico, "bíblico",
"mítico", "religioso". Na verdade todo o nacionalismo tem
bastantes elementos comuns com a crença religiosa. Para começar, o carácter
axiomático e irracional da sua tese fundamental: a existência "per
se" dessa nação ou desse deus.
É claro que a expressão
"nação de Israel" aparece apenas nas versões romances (e cristãs). No
original hebreu a expressão que aparece é "beth Israel", traduzida na
maior parte das versões romances modernas (e em todas as traduções judias, que
nunca tiveram como referência a tradução latina mas a original hebraica) como
"casa de Israel". Ora "beth" aqui não significa
"casa" como edifício, mas no mesmo sentido "dinástico" com
que se usava até há pouco no mundo rural galego, onde todo o mundo sabia de que
"casa" era, que nada tinha a ver normalmente com o edifício que
habitava. O sistema é idêntico ao bíblico, porque a denominação da
"casa" faz-se, não a partir do nome "legal" de um indivíduo
tomado como "patriarca" (chame-se Jacob ou José Pereira), mas da sua
alcunha (seja "Israel" por ter lutado conta deus, seja "da
Raposa" por José Pereira ter passado a ser conhecido como "Pepe da
Raposa" após ter caçado uma). Os teóricos descendentes do primeiro,
durante milénios, serão "da casa de Israel", ou "os de
Israel", ou os "israelitas", e os descendentes reais do segundo,
durante várias gerações mas nem tantas, serão "da casa da Raposa", ou
"os da Raposa". Não existe a denominação "os rapositas",
mas é só por falta de tempo histórico para ela poder coalhar.
Este não foi apenas "o
nascimento de uma nação". Foi o nascimento do conceito de
"nação". Se os nossos nacionalistas pretendessem aderir com coerência
à campanha de boicote aos produtos de Israel, deveriam deixar de o ser, porque
o nacionalismo, como tantas outras coisas que nos fazem a vida mais fácil, é um
invento israelita, ainda que não sei se por este a humanidade deve estar-lhes
realmente muito agradecida. Naturalmente que há outros nacionalismos menos
"românticos", ou menos "essencialistas", como o de muitos
países africanos actuais, que se reconhecem como fruto do acaso histórico de
ter sido colonizados por uma dada potência.
No mundo antigo, por exemplo,
ninguém relacionava fronteiras com línguas ou culturas. Era antes ao contrário:
eram os Estados que conformavam os domínios linguísticos e usos culturais. Os
povos invadidos tinham (e não sem razão) o sentimento apenas de terem mudado de senhor. Pare eles Estados e
fronteiras eram mero fruto de interesses pessoais, de acasos históricos e de
conquista. Concepção, já agora, bastante mais lógica, racional e baseada nos
dados históricos objectivos, do que a crença mítica de que um dado território
pertence desde a origem dos tempos a um dado grupo humano que também existiu
desde a noite dos tempos (Spengler, uma das bases teóricas do nazismo, dizia
que as nacionalidades e culturas nasciam dos lugares, como o musgo nasce da
rocha. E esta concepção inatista subjaz a todos os nacionalismos
românticos).
Até ao século XIX a única
manifestação "nacionalista" na história da humanidade tinha sido a
revolta judia de 66 d.C. Galaicos, Lusitanos, Íberos, Gauleses, Britânicos e
Germânicos, lutaram contra os romanos antes da conquista, fieis aos seus
"senhores naturais". Ora, uma vez que foram conquistados, assumiam
com "fair play" que tinham perdido o jogo, mudavam sem problemas de
"camisola" (quer dizer de armadura) e passavam sem mais a "jogar
como romanos", a fazerem parte entusiasta, por exemplo, das legiões que
iam alargar o império pelo oriente. Os judeus não, porque a particularidade
(realmente extravagante na altura) do seu monoteísmo os impedia de aceitarem o
culto ao Imperador e admitirem qualquer poder acima do seu deus único e
ciumento.
Os nacionalismos nunca se deram
bem com os judeus. Para já porque a sua presença rompe os esquemas dos
nacionalismos modernos, como corpo estranho que desmancha a sua fantasia de
unidade étnica, cultural e linguística, ao longo da história, de um território.
Também porque, já não a sua presença nos territórios que deus, ou a natureza,
tinha dado aos eslavos, aos germanos ou aos celtas, mas a sua mera existência
como povo, punha em causa os princípios mesmos do nacionalismo moderno, que pretende
estabelecer una relação biunívoca entre língua, cultura e território. Diz-se
que o judaísmo, a contrário do Cristianismo ou Islamismo, que santificam uma
porção de espaço (uma igreja, uma mesquita, ou um país inteiro) optou,
expatriado pelos romanos, e destruído o seu único templo pelos mesmos, por
santificar uma porção de tempo: o Shabat. Talvez por isso tenham sobrevivido,
no tempo, a todos os seus inimigos. Porque os judeus não precisavam de ter um
território, nem uma língua comum, nem um Estado, nem bandeira, nem exército,
nem polícia, para manterem teimosamente a sua delgada identidade, a
atravessarem o espaço e a permanecerem do tempo, infiltrados por todas as
partes do mundo e ao longo de todos os séculos da história.
Podemos concluir que os nacionalismos
não se dão bem com o judaísmo por "pura inveja". Todos os movimentos
(neonazis, racistas, islamistas, etc.) que temos visto ao longo deste estudo,
referem-se a si próprios com o eufemismo de "movimentos
identitários". Mais um traço comum com os movimentos
"progressistas", que também consideram fulcral a questão
"identitária". Quando vejo criticar a proibição do véu islâmico como
um ataque à identidade das mulheres islâmicas que querem manifestar
publicamente que são seres de segunda categoria, a deverem sempre submissão a
um homem (pai ou marido), penso: "Que classe de identidade é essa que pode
levar o vento?". A identidade dos judeus pode parecer ainda muito mais
frágil do que um véu, mas uma racha de ar não a consegue levar. Os judeus nunca
basearam a sua identidade nem numa peça de roupa (só os ultra-ortodoxos, mas
esses são uma questão à parte), nem num território, nem numa língua. Baseiam-na
apenas nunca coisa quase que intangível: a memória. A simples memória de serem
"judeus", a consciência de não pertencerem a nenhuma língua, a
nenhuma terra (na sequência da II Guerra Mundial, muitos países, entre eles
Espanha, qualificavam os refugiados judeus que lhes chegavam, como
"apátridas").
Com tão pouca coisa os judeus
conseguiram, porém, sobreviver como povo ao longo de milénios. São o único povo
do mundo antigo (Junto com os chineses! Compare-se!) que se mantém como tal até
aos nossos dias. Os gregos modernos ou os egípcios actuais não podem
considerar-se realmente como uma continuação dos antigos. Outros povos,
como os aborígenes australianos, por
exemplo, mantiveram-se, pelo contrário, excessivamente iguais, quer dizer: não "através
da historia", mas a custo de viverem isolados do mundo e alheios a ela. Só
os judeus conseguiram manter-se como tais sem viverem isolados, mas
participando activamente em todas as mudanças que o mundo experimentou nestes
últimos 2.000 anos. Os judeus foram os únicos que encontraram (provavelmente
com a ajuda dos seus múltiplos e sucessivos perseguidores) a arte de se
manterem como tais "através da história" E isto é uma outra coisa que
nenhum nacionalismo lhes podia perdoar!
Há curiosamente uma traço que o
judeus ultra-ortodoxos compartilham com os anti-semitas (e daí que muitas vezes
apareçam como os seus aliados): o seu ódio contra o judeu apátrida, contra o
"judeu internacional". Os primeiros não lhes perdoam a ruptura entre
a identidade judia e a religião judia. E os segundos não lhes perdoam que a sua
só existência ponha em causa a ideia mesmo do "nacionalismo". Não
lhes perdoam que eles tenham encontrado a maneira de ser eles próprios e estar
no mundo. Do que mais gosto do "estilo de pensamento judeu" é que é
sempre contraditório (e a este traço alguma coisa deve dever-lhe a dialéctica
marxista, tão esquecida pela nossa esquerda monofásica). Assim, os judeus,
apesar de terem inventado o nacionalismo, foram também sem dúvida os primeiros
"cidadãos do mundo" do mundo.
Se dizíamos que duas das
bandeiras que uniam aquela "tripla aliança" de ultra-esquerdistas, islamistas
e ultra-direitistas, eram o ódio a Israel (eufemismo do ódio aos judeus, à
"casa de Israel") e o ódio à mundialização, no ódio ao "judeu
internacional" sintetizam-se ambas.
Há muitas coisas que os
nacionalismos não podem perdoar-lhes aos judeus. E o galego não podia ser,
nisso, uma excepção. É curioso que apresente esta vertente anti-semita tão
acusada, tomando em consideração de que se trata de um "anti-semitismo sem
judeus", dado que, quando o nacionalismo galego começa, havia cinco
séculos que a península ficara (graças a uns curiosos aliados: os Reis
Católicos. O ódio comum cria estas amizades imprevistas) "limpa" de
judeus. Eu penso que a apresenta porque se trata de um "nacionalismo
mimético" (que é o pior que se pode dizer de um nacionalismo). No
nacionalismo alemão os judeus incomodam para eles se poderem sentir "mais
alemães". O nacionalismo galego não é anti-semita para ser "mais
galego" mas para ser "mais nacionalista". Para se sentir mais
integrado nos movimentos "identitários" mundiais, que também o são.
Nos anos trinta o modelo era o nazismo. Na actualidade os movimentos
"alternativos", mas afinal pouco importa. Como vimos ambos
compartilham esta fobia, chamem-lhe uns anti-semita, chamem-lhe outros
anti-israelita.
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