Esta é a oitava e última postagem que completa o dossier intitulado "O ódio é um espelho" sobre as simpatias do nazismo internacional com Beiras e BNG por terem-se negado a condenar o Holocausto*
João Guisan Seixas, escritor
Essa corrente racista, celtista, ou mesmo "barbarista" (face a efeminação da romanização, a primeira "mundialização") do nacionalismo galego, que já vem de Pondal, e chega até aos nossos dias, tem um dos seus máximos exponentes na figura de Vicente Risco, que em 1944 publicaria uma documentada antologia do anti-semitismo intitulada Historia de los Judíos desde la Destrucción del Templo, em que precisamente hostilizava a figura do "judeu internacional", embora fosse "tolerante" com a do "judeu nacional" (o do gueto voluntário, o ultra-ortodoxo).
Na altura Beiras teria os seus sete ou oito anos. Dada a grossura do volume, não é difícil conjecturar que, em grande parte, deveram crescer juntos. Mesmo pode ter acontecido que Vicente Risco tivesse feito "festas" ao menino Beiras com as mãos sujas da tinta do libelo anti-semita. O caso de Beiras é precisamente paradigmático, por isso, em relação a todo este assunto.
As gerações posteriores, aquelas que nos setentas ou oitentas nos podíamos identificar como "nacionalistas galegos de esquerdas", fazíamo-lo numa espécie de revolta edípica contra a geração dos nossos país, que tinha suportado, ou pelo menos consentido, o franquismo. Havia um doloroso processo de ruptura ideológica contra a educação no nacional-catolicismo espanhol que tínhamos recebido.
No caso de Xosé Manuel Beiras, não. Ele nasceu no mesmo ano da guerra civil (1936), no seio da família de um dos vultos do nacionalismo galego da pré e da pós-guerra, Manuel Beiras. Montaigne foi um caso inaudito de uma criança educada pelo pai, em pleno século XVI, com o latim como língua materna, como se fosse um cidadão do antigo Império Romano numa ilha linguística, rodeada de francês, no meio da França. Xosé Manuel Beiras foi também um caso de rapaz criado numa bolha de plástico, educado com o nacionalismo galego como língua materna, como se fosse cidadão da República Independente da Galiza (ou quem sabe se do Antigo Reino da Galiza, ou mesmo da mesmíssima tribo de Breogan, de Breogan...) numa ilha ideológica, rodeada de nacionalismo espanhol, no meio da Espanha franquista.
Ele é o verdadeiro "filho de proveta" do nacionalismo galego. Não teve de fazer revolução edípica alguma para ser nacionalista galego. Ele começou a ver o mundo com esses anteolhos desde que abriu os olhos. O nacionalismo dele é continuidade, e não ruptura. E daí que seja um raro exemplo para podermos ver a continuidade das linhas de pensamento nacionalista.
Bom, sejamos honestos, ainda que seja a custo de sermos complexos: nalguns aspectos ele fez, sim a sua revolução edípica (sem ir mais longe, ao criar a AGE, acabou por fazer precisamente aquilo que repudiava o pai e que o levara a separar-se do Partido Galeguista: coligar-se com a esquerda "espanholista") mas noutros muitos (provavelmente naqueles absorvidos de uma forma mais inconsciente por terem a ver com preconceitos muito mais ancestrais) não, e mesmo fez questão de inserir, já nos últimos anos de vida do pai, o Partido Galeguista de direitas que ele "ressuscitara" na Transição, dentro de um BNG que se pretendia "muito de esquerda", como a marcar simbolicamente esta continuidade com o galeguismo mais tradicional, e mais tradicionalista.
Um ano antes de ele nascer (1935) o pai tinha fundado "Dereita Galeguista", uma cisão da ala direita do Partido Galeguista, desconforme com a coligação deste com partidos da esquerda espanhola na Frente Popular. E fundou-a junto com Risco e Filgueira Valverde. Com os mesmos Risco e Filgueira Valverde que naqueles anos se dedicavam a percorrer as montanhas de Ourense a medirem os crânios dos paisanos (no que eles denominavam de "estudos de etnografia antropométrica") para chegarem à conclusão da pureza indo-europeia da raça galega, muito mais limpa do que o resto dos peninsulares do elemento "semítico", o que constituía um dos nossos elementos "identitários". Os mesmos Risco e Filgueira Valverde cujos estudos de etnografia nas páginas da revista Nós reflectiam as ideias racistas de Frazer, etnólogo britânico que foi outro dos precursores do nazismo e do conceito de "raça ariana". O mesmo Filgueira Valeverde autor de um hino das "Mocidades Galeguistas" que parecia das "Juventudes Hitlerianas". O mesmo Risco que só um ano antes (1934) publicava o livro de memórias Mitteleuropa em que fazia um elogio explícito e entusiasta de Hitler e da Alemanha nazi.
Foi neste ambiente ideológico e cultural que Xosé Manuel Beiras se criou. Eu tenho ouvido Isaac Díaz Pardo (outro "filho" do galeguismo da época, mas, nos seus últimos anos, uma das mentes mais livres deste país) comentar, divertido, que quando via os trisqueles e ouvia os cânticos e as ideias que pululavam nos meios nacionalistas em que o pai tentava inseri-lo, com bom olfacto político abjurava de toda aquela "fascistada". Eu nunca tenho ouvido Xosé Manuel Beiras fazer este "exame de consciência".
Não sei se Risco teve alguma vez o bebé Beiras no colo. Não sei nem se Risco teve alguma vez algum bebé no colo. Talvez o pai dele, a partir do início da guerra, já não lhe falava. Curiosamente, o nacionalismo galego nunca lhe perdoou a Risco a sua adesão ao franquismo, mas nunca lhe censurou a sua anterior adesão ao nazismo. Esse simples dado é suficiente para esclarecer alguma das linhas mais escuras do "pensamento galeguista". Na verdade a ilha nacionalista galega em que se educou o menino Beiras era tão anti-semita como o mar de nacionalismo espanhol que a rodeava. A única diferença entre ele e os meninos do seu tempo, deveu ser que ele não associou estas ideias racistas com a Espanha eterna, mas com a Galiza eterna, e ao contrário daqueles que quando romperam com a educação do nacionalismo espanhol puseram em causa estes preconceitos, ele, que nunca rompeu com a sua educação no nacionalismo galego, nunca os pôs em causa.
Não sei se Risco teve alguma o bebé Beiras no seu colo, mas a sombra das ideias dele sem dúvida flutuavam na atmosfera em que dava os seus primeiros passos e, se não foram o leite que mamou, seriam pelo menos o caldo de cultivo com que ele foi alimentando as próprias.
Não, não, que fique descansado: não tenho foto alguma de Risco com o bebé Beiras. Nem sequer tenho a de um Beiras, mais graúdo, com Risco nalgum iate. Eu tenho apenas uma imagem muito simples. Eu tenho apenas uma linha. Mas essa linha sai do racismo de Pondal, passa por Vicente Risco como por um ponto negro cheio de pensamentos escuros, e acaba no Palácio do Hórreo, sede do Parlamento Galego, o dia em que Beiras e o BNG disseram que se negavam a apoiar uma declaração em memória das vítimas do Holocausto.
Não vou negar aqui e agora as qualidades intelectuais de Beiras. Estão fora de toda a dúvida. Ora, precisamente por elas penso que a sua responsabilidade moral é ainda maior. Se se fala tanto hoje em dia de essa disneylândica "inteligência emocional", também deveria poder falar-se de "burrice emocional", ainda que neste caso seria mais bem "burrice ética ou moral". Beiras é como Camilo José Cela, ainda que possa parecer que nada têm a ver. Um vítima da sua própria personagem.
Ele é um tipo com muito charme para a imprensa, e a imprensa tem muito charme para ele. Mas a adulação nunca foi boa conselheira para ninguém. Ele tem um pacto implícito com os media: eles colocam-no nas manchetes (="titulares") e ele, em troca, oferece-lhes manchetes. É a "política-espectáculo". Nuns tempos de descarada "dialéctica do escândalo", tudo leva a coisas deste género. É assim que se vão alimentando os populismos (E como os judeus sempre foram uma minoria, e como tal uma minoria impopular, todos os populismos são tão marcadamente anti-semitas como os nacionalismos. E então, os nacionalismos populistas são o dobro). É triste que uma pessoa da categoria intelectual de Beiras acabe por ser uma figura do espectáculo informativo não muito diferente do que pode ter sido Ruiz Mateos nos seus dias, por exemplo.
Tenho a convicção de que ele sabia o escândalo que a sua decisão ia provocar, e que a tomou precisamente por isso. Se a declaração tivesse sido aprovada, não teria sido notícia. A negativa dava mais réditos informativos. Mais um "numerito" para a já longa lista deles que a performática AGE tem protagonizado na sua curta carreira no triste mundo do espectáculo mediático. Nesse sentido temos que lhe dar os parabéns. Se queria manchetes, tem tido bastantes manchetes até agora. Em meios diversos, em línguas diferentes e a todo o longo do mundo.
Esta pode ser que tenha sido, com efeito, a notícia protagonizada pelo nacionalismo galego de mais larga repercussão internacional. É triste considerar, porém, em que meios se tem obtido esse eco e esse aplauso. Desde o Ku Klux Klan até ao ultra-nacionalismo russo, passando pelos amigos do Front National francês, do FPO austríaco, e da National Alliance americana. O rosário completo da ultra-direita internacional.
Como Churchill, todos temos que conseguir classificar adequadamente os nossos demónios, e ter muito claro qual o último da lista. Como dizíamos no início, Beiras parece tê-lo feito, e para ele Israel deve estar situado um grau abaixo, pelo menos, que o nazismo. Para não poder servir nem remotamente de instrumento de propaganda de Israel, acabou por servir como instrumento da propaganda da extrema direita internacional. Um breve repasse aos elogios recebidos: "Uma nota de esperança", "Uma coisa que nos anima", "Um raio de luz", "Espanha mostra-nos o caminho", "Guau! Que grande é isto!", "Está a crescer uma enorme vaga que vai limpar da peste judia os nossos países"...
Esta última imagem não é uma brincadeira. A ultra-direita está a crescer por toda a parte. A crise de 29 foi o caldo de cultivo do nazismo e já vimos que o neonazismo vem montado descaradamente no cavalo da "indignação" anti-sistema. Na França o Front National chegou a atingir 30% dos votos nas últimas legislativas. Já foi segunda força numas presidenciais. Na Alemanha alerta-se sobre o incremento do apoio popular aos partidos neonazis. Ocupam já lugares no parlamento grego, no húngaro, e têm representantes eleitos também, como vimos, até na pacifista Suécia. Os ataques anti-semitas em toda a Europa têm aumentado vertiginosamente nestes últimos anos, nomeadamente na França, e na própria Suécia. Considerando a impregnação do "Putinismo" com o ultra-nacionalismo de Dugin, e considerando que entre o Irão que apoia todos estes movimentos e a Venezuela que é apoiada por eles, juntam quase 20% das reservas mundiais de petróleo, o poder do conglomerado ultra-direita-islamismo-esquerda-populista, do anti-semitismo actual, não é nada desdenhável. Eu não gostaria de saber que com alguma decisão minha tinha contribuído nalguma medida para essa maré.
E eles sabem-no. A notícia de alguns dos apoios da ultra-direita referidos neste estudo, já foi publicada parcialmente nalguns dos meios de comunicação galegos. Todo o partido têm um gabinete de imprensa que se dedica a compilar todas as informações que lhes dizem respeito. Não acredito que a notícia não tenha chegado aos seus ouvidos, ou aos seus olhos. E.... nem um comunicado de desculpa. Nem um esclarecimento tão só. Nem sequer um aceno de marcar distâncias, de rejeitar esse aplauso. Como não ignoram os factos, parece que ignoram a gravidade dos factos.
O problema é que esta gente (Beiras, BNG e em geral "esquerdistas" –tipo de pessoas contra as quais já alertou Karl Marx) tem um automatismo ideológico perverso, que é não saber fazer distinção entre direita e ultra-direita. Para eles Churchill e Hitler devem ser a mesma coisa. Para eles toda a direita é ultra-direita. Então, como não conseguem diferençar os extremos, quando superam a direita democrática pela direita, julgam, muito ufanos, que a têm superado pela esquerda.
O ódio é um espelho que nos devolve a nossa imagem invertida. Quando ele é a nossa referência, perdemos todas as referências. Vira-nos do avesso, faz com que sejamos o contrário daquilo que pensamos ser. A esquerda olha-se no turvo espelho do ódio a Israel e vê, comprazida, como a sua mão esquerda se levanta e o braço se vai esticando (ainda mais... ainda mais à esquerda!) a fazer momices de propaganda anti-sionista, mas não repara que é na verdade a mão direita que se agita, e que a sua mão e as suas ideias estão a acariciar realmente o extremo direito do espelho do ódio anti-semita.
Porque a palavra "anti-sionista", reflectida nesse espelho, lê-se "anti-semita", e é sempre deveras difícil poder assegurarmos de que lado do espelho é que nos encontramos (a nossa imagem pode que esteja a pensar o mesmo).
O ódio é um espelho, também, porque faz com que nos comportemos como julgamos que se comporta o objecto do nosso ódio. Neste estudo temos constatado como aqueles que se incham ao dizer, como metáfora, que Israel é o nazi de hoje, acabam por ter ligações muito profundas com o nazismo real dos nossos dias.
Acabemos, portanto, a convidar-vos, e convidá-los, a estilhaçar esse espelho sombrio. Será, porém, como o espelho da madrasta da Branca de Neve que, partido em mil pedaços, não deixava de reflectir a imagem acusadora de um horror multiplicado. Propomo-vos, e propomos-lhes (a Beiras e BNG), uma reflexão final, gráfica e múltipla, nos pedaços desse espelho. Ainda que sei que o não vão fazer, têm um ano inteiro para reflectir nisso, e para deixarem de se reflectir nisso, para pedirem publicamente desculpas e no próximo 17 de Janeiro ressarcirem a memória das vítimas do Holocausto e não darem uma nova vitória a essas turvas aderências. Que olhem, num resumo gráfico, a imagem dos lugares (informáticos e ideológicos) em que andam, e que se perguntem sinceramente o que aconteceu nas suas mentes e nos seu discursos para acabarem metidos no meio dessa merda.
*Texto publicado originalmente na web da associaçom AGAI.
*Texto publicado originalmente na web da associaçom AGAI.
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