quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

A CULTURA JUDAICO-ALEMÃ ENTRE ASSIMILAÇOM E A CATÁSTROFE

Michael Löwy

Europa Central (Mitteleuropa) é ao mesmo tempo uma realidade geográfica e um espaço cultural: é a língua e a cultura germânica que unificam, no início do século XX, a Alemanha e o Império Austro-Húngaro. Durante o período do final do século XIX até a ascensom do nazismo, a comunidade Asquenaze de cultura alemã conheceu um notável florescimento cultural, uma idade de ouro semelhante ao século XII judaico-árabe em Espanha. Esta cultura judaico-alemã, o produto de uma síntese espiritual única, deu ao mundo Albert Einstein e Sigmund Freud, Franz Kafka e Karl Kraus, Arnold Schönberg e Gustav Mahler, Edmund Husserl e Theodor Adorno, Georg Lukács e Hannah Arendt, Ernst Bloch e Walter Benjamin. Parece-nos hoje como um continente submerso pelo mar, um vasto campo de ruínas. Destruída pela barbárie nazista, tem sobrevivido no exilo, espalhada, e os seus últimos representantes, Hans Mayer, Leo Lowenthal, acabam de se apagar, como as últimas centelhas de um enorme incêndio do espírito. No entanto, deixou a sua pegada na cultura do século XX, na qual produziu o mais inovador e rico em literatura, artes, ciência e filosofia.

A emancipaçom dos judeus na Europa Central durante o século XIX foi -em comparaçom com a França ou a Inglaterra- tardia e incompleta. Mesmo aconteceram processos anti-semitas na Hungria e na Tchecoslováquia, na virada do século XX. No entanto, o contraste com a situaçom dos judeus na Europa Oriental -isto é, o Império czarista: sem guetos, sem perseguições ou zonas de exclusom. Deste ponto de vista, a Europa Central ocupa uma posiçom intermediária na geografia do judaísmo no continente, a meio caminho entre emancipaçom e a integraçom efectiva da Europa Ocidental, e as duras discriminações legais (agravadas pelas perseguições mortíferas) da Europa Oriental.

O que distingue imediatamente a cultura judaica da Europa Central do Yiddishland do Leste é, naturalmente, a língua: em Berlim, Viena, Budapeste e Praga, os judeus falam alemom. Eles mesmo som, nas cidades da periferia do Império Austro-Húngaro (onde eles falam húngaro ou tcheco), os representantes por excelência da cultura germânica. Essa diferença é o resultado de um processo de assimilaçom gradual no século XIX, o que levou à maioria dos judeus a adotar a língua e os costumes alemães -incluindo a jaqueta ocidental (Jacke), provável origem do termo, um pouco ironicamente, de Yekke com a qual as designavam os judeus de Varsóvia e Vilna.

Assimilados e marginalizados
A principal característica das comunidades judaicas de cultura alemã é o desejo de assimilaçom. Uma carta escrita em 1916 pelo empresário judeu Walther Rathenau mostra até onde podia chegar essa atitude: "Eu tenho e apenas conheço o sangue alemão, nenhum outro grupo étnico, nom há outro povo que o alemão. Se fosse expulso da minha terra alemá, continuaria a ser alemão, e nada o iria mudar ... Os meus antepassados e eu próprio temo-nos alimentado da terra e do espírito alemã ... e o nosso único pensamento é para a Alemanha e o alemão ...". A corrente assimilacionista mais consequente estava representada na Alemanha pelo Central-Verein deutschen Staatsbürger Jüdischen Glaubens (Associaçom Central dos Cidadãos Alemães de Religiom Judaica). Seria um erro ver nesta sede de aculturaçom uma simples ambiçom: podía também expressar convicções sinceras e verdadeiras. Mesmo um judeu tam profundamente religioso como Franz Rosenzweig escrevia em l923, pouco depois da publicaçom de seu grande trabalho de renovaçom da teologia judaica A Estrela da Redençom: "Acho que o meu retorno ao judaísmo (Verjudung) tornou-me um melhor (e nom um pior) alemão... E eu acho que um dia A Estrela vai ser reconhecida e valorizada como um dom que o espírito alemão deve ao seu enclave judeu".

Em certa medida, esta assimilaçom foi bem-sucedida. No entanto, chocava com uma discriminaçom social e com a exclusom de facto de um número de áreas: administraçom, o exército, a magistratura, a educaçom -e especialmente depois de 1890-, com um crescente sentimento anti-semita. Por todas estas razões, as comunidades judaicas na Europa Central nom foram realmente integradas na sociedade envolvente. Eles compartilham algumas das determinações essenciais de um povo pária, de acordo com a definiçom clássica de Max Weber: um grupo desprovido de organizaçom política autônoma e caracterizado por privilégios negativos, tanto politicamente como socialmente.

Dependendo da sua resposta a essa condiçom de semi-párias, os judeus na Europa Central pertencem a duas categorias, notavelmente realçadas por Hannah Arendt (a partir das intuições deslumbrantes de Bernard Lazare): os novos-ricos e os párias conscientes. Por um lado, a linhagem de judeus ricos, conformistas e cheios de "respeitabilidade" -desde Bleichröder, banqueiro de Bismarck, a Rothschild; por outro lado, a tradiçom "oculta" dos excluídos e perseguidos que se revoltam contra a sociedade: Heinrich Heine, Franz Kafka, Rosa Luxemburgo. O novo-rico típico é um notável da burguesia judaica assimilada, liberal e muitas vezes depreciativo em relaçom aos Ostjuden, imigrantes judeus vindos do Shtetl polaco ou russo. O pária consciente é um marginal que assume a sua marginalidade, um espírito nom conformista, o que torna a sua exclusom social ponto de Arquimedes a uma crítica radical da ordem estabelecida: é uma escolha evidenciada pelos exemplos, entre outros, de Gustav Landauer e Walter Benjamin, e muitas vezes pago com o preço da vida.

Os intelectuais judeus som um exemplo típico da Intelligentz sozialfreischwebende (intelligentsia livremente flutuante”) da que fala Karl Mannheim, polo seu carácter “desclassado”, inestável e sem vínculos sociais específicos. A sua condiçom é muito contraditória: ao mesmo tempo profundamente assimilados e amplamente marginalizados; ligados à cultura alemã e cosmopolitas, sem raízes, em ruptura com o seu ambiente de origem dos negócios e burguês e excluídos do seu meio de acolhida natural (a carreira universitária). Em estado de disponibilidade ideológica, logo serão atraídos pelos dois principais pólos da cultura alemã, o Aufklärung, o racionalismo do Iluminismo e o Romantismo, a crítica cultural da civilizaçom moderna.

Nom é difícil entender porque muitos intelectuais judeus foram seduzidos pelo Iluminismo (Aufklärung), as idéias de Progresso e de Razom Universal. Graças ao Iluminismo que os judeus foram emancipados e podiam encontrar o seu lugar na marcha ascendente da civilizaçom européia, quebrando as barreiras opostas pelos prejuízos anti-semitas retrógrados e obscurantistas. Várias opções políticas e filosóficas eram possíveis a partir desta visom do mundo, do neo-kantismo (Hermann Cohen) e o liberalismo (a ideologia da burguesia judaica em si), até o socialismo (Edward Bernstein), o marxismo (Max Adler, Otto Bauer) e até mesmo o comunismo (Paul Levi, Ruth Fischer, Paul Frölich).

Entretanto, parte da intelectualidade judaica da Europa Central foi atraida por uma outra corrente da cultura alemã: o Romantismo, a crítica cultural da civilizaçom moderna, em nome de certos valores do passado. Esta apropriará-se do Weltanschauung nostálgica e anti-burguesa predominante nos meios universitários, que recusava o desencantamento do mundo, e que se opunha à Gemeinschaft (comunidade) à Gesellschaft (sociedade), ou a Kultur à Zivilisation. Se no pensamento alemão esta cultura romântica teve amiúde um caráter restauracionista ou reacionário (ou na melhor das hipóteses, resignado), entre os intelectuais judeus semi-párias, muitas vezes assume uma forma utópica e/ou revolucionária. Este é o caso dos pensadores sionistas como Martin Buber e Gershom Scholem, de escritores libertários como Gustav Landauer e Ernst Toller, de filósofos marxistas como Georg Lukács e Ernst Bloch e autores próximos á Escola de Frankfurt como Erich Fromm ou Walter Benjamin.

Esta opçom leva o jovem intelectual judeu a rejeitar os negócios paternos e uma revolta contra o ambiente familiar burguês. É a profunda ruptura geracional da que falam tantos autores judeus da Europa Central nas suas autobiografias, a ruptura da juventude antiburguesa entusiasta da Kultur, a espiritualidade, a religiom, a arte e/ou a revoluçom, com seus pais empresários, comerciantes ou banqueiros, liberais moderados, indiferentes à religiom e bons patriotas alemães. A geraçom de proprietários de fábricas de calçado produziu uma raça de escribas, artistas e de sonhadores. A famosa “Carta ao Pai” de Kafka é um dos documentos mais pungentes e reveladores desta ruptura.

Estas duas correntes de pensamento judaico na Europa Central, o racionalista (ou materialista) e o romântico, nom necessariamente contraditórios ou mutuamente exclusivos encontram-se em toda a açom dos movimentos sociais e políticos (Sionismo, Socialismo) e as (efêmeras) tentativas revolucionárias dos anos 1919 como a Revoluçom Espartaquista de Berlim (Rosa Luxemburgo, Leo Jogiches Paul Levy, Paul Frölich), a República Húngara dos Conselhos (Bela Kun, Joseph Reval, George Lukács, Karl Mannheim) ou a República dos Conselhos da Bavária (Kurt Eisner, Gustav Landauer, Ernst Toller e Eugen Levine).

A convergência entre o Iluminismo (Aufklärung) e o Romantismo também forma uma das mais originais manifestações intelectuais da cultura judaico/alemá, na sua dimensom utópica e crítica: a Escola de Frankfurt. O programa definido por Theodor Adorno em Minima Moralia aplica-se à maioria dos pensadores deste movimento: "Uma das tarefas -nom menos importante- perante as quais está o pensamento é colocar todos os argumentos reacionários contra a civilizaçom ocidental no serviço da iluminaçom progressista”.

Franz Kafka
De todas as figuras da cultura judaica da Europa Central, a mais universal é, provavelmente, Franz Kafka. Um espírito anti-autoritário (de inspiraçom libertária) trespassa todos os seus romances, num movimento de universalizaçom e de abstraçom crescente: da autoridade paterna e pessoal (O Veredito, Amérika) à autoridade administrativa e impessoal (O Processo, O Castelo).

A partir desta perspectiva, o grande ponto de viragem na obra de Kafka é o romance, A Colônia Penal, escrito logo depois de Amerika. Há poucos textos na literatura universal que apresentam a autoridade sob uma focagem tam injusta e assassina. Nom é o poder de um indivíduo –os Comandantes (Antigo e Novo) desempenham apenas um papel secundário na história-, mas que um mecanismo impessoal.

A história faz parte do colonialismo francês .... Os oficiais e comandantes da colônia som franceses, enquanto os humildes soldados, trabalhadores portuários, as vítimas a serem executadas som "indígenas", que "nom entendem uma palavra de francês”. Um soldado "indígena" é condenado à morte por oficiais cuja doutrina jurídica resume em poucas palavras a essência da arbitrariedade "a culpa nunca deve ser questionada!”. A sua execuçom deve ser realizada por uma máquina de tortura que escreve lentamente no seu corpo com agulhas que o perfuram: "Honra os teus superiores”.

A personagem central do romance nom é o viajante que observa os acontecimentos com uma muda hostilidade, ou o prisioneiro que nom reage, nem o oficial que preside a execuçom, nem o Comandante da colônia. É a própria máquina. A história toda gira em torno deste sinistro aparelho (Apparat), que parece cada vez mais, durante a explicaçom detalhada que o oficial dá ao viajante, como um fim em si mesmo. O aparelho nom está lá para executar o homem, mas este último está lá para o aparelho fornecer um corpo no qual ele possa escrever sua obra-prima estética, a sua inscriçom sangrenta ilustrada de "muitos enfeites”. O oficial mesmo é um servo da máquina e, finalmente, se sacrifica a si mesmo a este insaciável Moloch [1] Em que "máquina” de poder específica, em que “aparelho de autoridade", em que "sacrifício da vida” pensava Kafka? A Colônia Penal foi escrito em outubro de 1914, três meses após a eclosom da Primeira Guerra Mundial ... O Processo e O Castelo encontra-se a autoridade como um "aparelho" hierárquico, abstrato, impessoal: os burocratas, seja qual for o seu carácter brutal, mesquinho ou sórdido, som apenas a engrenagem deste mecanismo. Tal com observado com acuidade por Walter Benjamin, Kafka escreveu do ponto de vista de "cidadão moderno que se sabe entregue a uma burocracia impenetrável, cuja funçom é controlada por organismos que nom som claros, mesmo para os seus órgãos de execuçom, sem falar aqueles que esta manipula” [2]. Muitos críticos interpretam O Processo como um livro profético: o autor teria antecipado, com a sua imaginaçom visionária, a justiça dos Estados totalitários. No entanto, se quisermos compreender as suas próprias motivações, nom é num futuro imaginário, mas é nos fatos históricos contemporâneos que devemos procurar a sua fonte de inspiraçom.

Entre esses fatos, os grandes processos anti-semitas do seu tempo foram um exemplo flagrante de injustiça do Estado: O processo Tisza (Hungria, 1882), o processo Dreyfus (França, 1894-99), o processo Hilsner (Checoslováquia 1899-1900 ), o processo Beiliss (Rússia, 1912-13). Apesar das diferenças entre as formas de Estado (absolutismo, monarquia constitucional, república), o sistema judicial condenou as vítimas inocentes cujo único crime era ser judeu.

Em O Processo, o herói, Joseph K. sem nacionalidade ou religiom específica é, por excelência, o representante das vítimas da máquina do Estado. Kafka entendeu os processos anti-semitas de seu tempo, nom apenas como um judeu, mas também como um espírito universal anti-autoritário: descobriu na experiência judaica a quintessência da experiência humana nos tempos modernos, e anunciou com espantosa presciência, a condiçom de seres humanos esmagados pelas máquinas anônimas e impessoais da administraçom do Estado.

Kafka morreu antes do surgimento do fascismo. A próxima geraçom de intelectuais judeus da cultura alemã será confrontada com a ascensom do nazismo na década dos anos 30. Achamos nas reações dos intelectuais judeus de cultura alemã face a catástrofe iminente, a combinaçom deslumbrante entre uma lucidez extraordinária e uma grande cegueira. Walter Benjamin e Manès Sperber, judeus assimilados os dous, -mas contrários a abandonar a sua identidade judaica- e próximos da esquerda europeia, ilustram, cada um ao seu jeito, esta contradiçom.


Walter Benjamin
Filósofo e crítico literário, nascido em 1892, amigo de Gershom Scholem e Bertolt Brecht, atraído tanto pelo messianismo judaico como pelo materialismo histórico, Walter Benjamin ocupa um lugar único na brilhante constelaçom de intelectuais judeus na Europa Central da primeira metade do século.

Ele difere da maioria de seus contemporâneos pelo caráter precoce das suas intuições –trata-se de intuições e nom de uma previsom qualquer- do desastre que se está a preparar. Isso aplica-se em especial pelo seu artigo de 1929, "Surrealismo, o último instantâneo da intelectualidade europeia”. Dentre as “iluminações profanas" -o termo é de Benjamin- que integram este ensaio nenhuma é tam surpreendente quanto estranha no senso do unheimlich alemão –pela sua força premonitória que o apelo urgente para “a organizaçom do pessimismo”.

Nada parece mais ridículo aos olhos de Benjamin que o otimismo dos partidos liberais e sociais-democratas, cujo programa político é um “poema ruim de primavera”. Contra este "otimismo sem consciência", este “otimismo dos diletantes”, inspirado pela ideologia do progresso linear, ele descobre no pessimismo a força do surrealismo [3]. Escusado será dizer que este nom é um sentimento contemplativo e fatalista, mas o pessimismo ativo, prático, totalmente virado em direçom ao objetivo de impedir por todos os meios possíveis a vinda do pior. Neste contexto, ele toma do escritor surrealista e marxista dissidente Pierre Naville o lema da organizaçom do pessimismo. Em que consiste o pessimismo dos surrealistas? Benjamin refere-se a certas "profecias" e ao "pressentimento" de algumas "atrocidades" de Apollinaire e Aragon: "assaltarám os editores, lançarám ao fogo as coleções de poemas, matarám os poetas". O que impressiona nessa passagem é nom apenas a previsom precisa de um evento que iria realmente acontecer seis anos depois –o “autodafe” de livros "anti-alemães" pelos nazistas em 1934: basta adicionar as palavras "de escritores judeus" (ou anti-fascistas) depois de "coleções de poemas” - mas, sobretudo, a expressom usada por Benjamin (que nom se acha nem em Aragon nem em Apollinaire) para designar essas "atrocidades": "um pogromo do poetas"... Trata-se de poetas ou de judeus? A menos que possam ser ambos os ameaçados por esse futuro preocupante. Como veremos adiante, nom é o único estranho "pressentimento" deste texto rico em surpresas. Segundo Walter Benjamin, a situaçom da Europa e do mundo exige por parte dos revolucinários uma desconfiança radical: “Pessimismo sobre toda a linha” Sim, de fato, e completamente. Desconfiança em relaçom ao destino da literatura, desconfiança quanto ao destino da liberdade, desconfiança quanto ao destino do homem europeu, mas sobretudo três vezes desconfiança face qualquer acomodo: entre classes, entre povos, entre indivíduos. E acrescenta o seguinte comentário irônico: "E confiança ilimitada somente na IG Farben e no aperfeiçoamento pacífico da Luftwaffe”. [4] A sua visom pessimista/revolucionária permite a Benjamin ver -intuitivamente mas com umha precisom estranha- as catástrofes que esperavam à Europa, perfeitamente resumidas pela frase irônica sobre a "confiança ilimitada". Claro, ele mesmo, o mais pessimista de todos, nom podia prever a devastaçom que a Luftwaffe iria impor sobre as cidades e os civis europeus, e muito menos poderia imaginar que a IG Farben iria produzir -apenas uma dúzia de anos mais tarde-, o gás Zyklon B utilizado para "racionalizar" o genocídio, nem que as suas fábricas iriam empregar, por centenas de milhares, a mão-de-obra dos campos de concentraçom. No entanto, único entre todos os pensadores judeus destes anos, Benjamin teve a premoniçom das monstruosas catástrofes que poderia dar nascimento a civilizaçom industrial/burguesa em crise. Por este parágrafo deste ensaio de 1929 ocupa um lugar especial na literatura crítica ou revolucionária no período de entre as duas guerras.

Exilado em Paris a partir de 1933, Benjamin irá acompanhar com preocupaçom a ascensom do fascismo na Europa. Próximo aos ambientes anti-fascistas de esquerda, ele deu em 1934 uma conferência sobre "O Autor como Produtor" no Instituto para o Estudo do Fascismo (INFA), criado em Paris por Willy Münzenberg, assistido por Arthur Koestler , Manes Sperber e outros intelectuais judeus no exílio. Porém, o nazismo nom ocupa um lugar central nos seus escritos. No seu testamento filosófico, as "Teses sobre o Conceito de História" (1939-40), ele voltará a mostrar uma lucidez surpreendente. Neste momento, quando acaba de eclodir a Segunda Guerra Mundial, aparece nos seus escritos, literalmente, a imagem da corrida para o abismo: "Marx diz que as revoluções som as locomotivas da história. Mas talvez elas som diferentes. Talvez as revoluções som a mão da espécie humana que viaja no comboio e que puxou o travom de emergência "[5]. Neste mesmo texto acha-se a famosa alegoria do Anjo da história: "Sempre que olhamos para nós parecem se espalhar uma série de eventos, há apenas um que se oferece para os seus próprios olhos: uma catástrofe sem modulaçom ou trégua, amontoando os entulhos e projetando-os eternamente diante os seus pés. O Anjo gostaria de abordar esta catástrofe, curar as feridas e ressuscitar os mortos. Mas uma tempestade, vinda do Paraíso, aproximou-se; ela inchou as asas estendidas do Anjo, e já nom as pode fechar. A tempestade leva-o ao futuro no qual o Anjo continua a virar as costas enquanto os entulhos, em frente a ele, ascendem ao céu. Damos o nome do Progresso a esta tempestade [6]”. Benjamin nom podia prever que os anos seguintes iriam ver se adicionar à pilha de escombros uma nova e imensa catástrofe, talvez a mais atroz da história da humanidade: Auschwitz, o genocídio moderno.

Preso pela polícia em agosto de 1940 na fronteira espanhola, ameaçado de ser entregue à Gestapo, Walter Benjamin preferiu cometer suicídio com uma dose de ópio que lhe dera algumas semanas antes o seu amigo -e ex-colaborador do INFA- Arthur Koestler.


Manes Sperber
Outra experiência é a do autor e psicólogista Manes Sperber. Ele é conhecido na França, especialmente a sua trilogia de romances de 1949-52 (Et le buisson devint cendre, Plus profond que l’abîme, La Baie perdue) e pela sua soberba autobiografia de 1974, Ce temps-là, também em três volumes, mas no contexto deste artigo, vamos ocupar a maior parte dos seus escritos dos anos 30.

Nascido em 1905 em Zablotow na Galícia -província polonesa do Império Austro-Húngaro- Manes Sperber foi educado em Viena, onde se aderiu a Hashomer Hatzair, movimento juvenil da esquerda sionista. Nos anos 20 torna-se discípulo do psicologista freudiano dissidente Alfred Adler, -com quem compartilhou um ardente desejo de "destruir a vontade de poder" [7]. Na mesma época aproximou-se do Partido Comunista Alemão (KDP), sem deixar de sonhar com uma “ordem sem autoridade" (Autoritätslose Ordnung). Exilado em Paris após a ascensom de Hitler ao poder, Sperber trabalha em 1934-35, no Instituto para o Estudo do Fascismo (INFA) de Willy Münzenberg. Ele é o principal organizador da importante exposiçom internacional sobre o fascismo organizada pelo INFA em 1934. É possível que nesse tempo tenha conhecido Walter Benjamin, mas nada nas suas respectivas biografias diz explicitamente.

Tal como outros judeus exilados da Europa Central, Manes Sperber quer entender as raízes psicológicas do nazismo. Enquanto Wilhelm Reich tenta explicar a psicologia de massa do fascismo, Erich Fromm o medo da liberdade, Theodor Adorno -com a ajuda de Max Horkheimer e Herbert Marcuse- a personalidade autoritária, Sperber explora as bases psicológicas da tirania .

Redigido em Viena em 1937, quando, desiludido pelos expurgos stalinistas rompe com o Partido Comunista, no ensaio Zur der Tyrannis ele propõe, com base na psicologia adleriana, para compreender a adesom dos indivíduos na Europa aos regimes de vocaçom totalitária -como a Alemanha de Hitler. Rejeitando as teorias psicológicas e inspirado por Gustave Le Bon, que diz respeito às massas como necessariamente condenadas à irracionalidade, Sperber tenta esclarecer os mecanismos que levaram os poderes tirânicos modernos para ganhar amplo apoio popular. O demagogo promete aos átomos egoístas que compõem a massa o regresso à infância através da falta de responsabilidade. Ele também joga com a sua necessidade mágica de um salvador supremo, um deus na terra, especialmente em tempos de crise. Por outro lado, nom é nenhuma coincidência que tiranias modernas foram criadas especialmente em países que tenham atingido a sua unidade nacional tardiamente: os planos de dominaçom do mundo som uma compensaçom para os sentimentos de inferioridade nacional [8].

Pouco depois, em 1938, Sperber juntou-se a Willy Münzenberg, Arthur Koestler e outros amigos para criar uma revista socialista independente, Die Zukunft (O Futuro), que vai ter uma existência efêmera (até 1939). Ele continua em artigos interessantes nesta revista a sua investigaçom sobre as dimensões psicológicas do fascismo. Num texto intitulado "O tempo da humilhaçom" ("Zeit der Erniedrigung") analisa a síndrome da angústia criada pelo terror totalitário, "o efeito da degradaçom", a “depravaçom de caráter a que cada uma pessoas foram submetidas durante o Terceiro Reich” esse “afastamento estranho relativamente a si mesmo é a doença das massas face a tirania”. O terror veio a ser internalizado: “O horror produzido sistematicamente pelos opressores, uma vez liberado, entra na consciência e no inconsciente. Ele cria novas automações, novos comportamentos que permitem os oprimidos se adaptarem à pressom constante. Esse medo torna-se familiar, a ansiedade neurótica das massas” [9].

Walter Benjamin e Manes Sperber tentaram, cada um à sua maneira, lutar com as suas canetas e suas idéias contra o Terceiro Reich. Eles preveram ou analisarom os perigos que representava o nazi-fascismo aos povos europeus. Mas nenhum deles, judeus assimilados da cultura alemã, viu o perigo era que o Terceiro Reich para a própria existência dos judeus na Europa. Foi o ponto cego, o impensável, o impensado desta notável cultura judaica da Europa Central.


PS

Artigo publicado em Plurielles, No. 9 (Les juifs et l’Europe).



Notas

[1] Kafka, "In der Strafkolonie" Erzählung und kleine Prosa, N. York, Schocken Books, 1946, pp. 181-113.

[2] W. Benjamin, "Carta a G. Scholem, 1938, Correspondência, Paris, Aubier, 1980, II, p. 248.

[3] W. Benjamin, "Surrealism, Myth and Violence, Paris, Maurice Nadeau, P. 312.

[4] W. Benjamin, "Surrealismo", p. 312.

[5] W. Benjamin, Gesammelte Schriften, Frankfurt / Main, Suhrkamp Verlag, 1972, I.3, p. 1232 (notas preliminares para as "Teses sobre o Conceito de História").

[6] W. Benjamin, "Sobre o Conceito de História", em Écrits français (apresentada por JM Monnoyer), Paris, Gallimard, 1991 343-344.

[7] M. Sperber, Alfred Adler, Der Mensch und seine Lehre, Munique, JF Bergmann Verlag, 1926, pp. 37-38.

[8] M. Sperber, Essays Die andere Tyrannis und aus der Zeit der Verachtung, Munique, DTV, 1987, pp. 56-58.

[9] "Die Zeit der Erniedrigung", Fevereiro de 1939, em Die Tyrannis Essays und andere, pp. 106-107. Veja também o ensaio de Albrecht Betz, "O trabalho de publicitário de Manès Sperber no final dos anos 30 ", em Présence de Manès Sperber, Publicações do Instituto Alemão de Asnières, 1992.

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