quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

A MEMÓRIA DO HORROR

Simone de Beauvoir

A seguir reproduzem-se as reflexões de Simone de Beuvoir sobre os lugares, as vozes e os rostos que aparecem no filme Shoah, obra-prima de Claude Lanzmann, à que a autora francesa redigiu o seu prefácio.

Nom é fácil falar em Shoah. Há magia neste filme e a magia nom se pode explicar. Após a guerra temos lido muitos testemuhos sobre os guetos, sobre os campos de extermínio e ficamos comovidos. Mas, ao ver hoje o extraordinário filme de Claude Lanzmann, apercebemo-nos de que nom sabíamos nada. Apesar de todos os nossos conhecimentos, a abominável experiência fica afastada de nós. Pola primeira vez vivemo-la na nossa cabeça, no nosso coraçom e na nossa carne. Ela torna-se nossa. Nem fiçom nem documentário, Shoah consegue esta recriaçom do passado com umha economia de meios surpreendente: os lugares, as vozes e os rostos. A grande arte de Claude Lanzmann é fazer falar os lugares, resuscitá-los através das vozes e, para além das palavras, explicar o inexplicável polos rostos.

Os lugares. Umha das grandes preocupações dos nazis foi a de apagar todas as pegadas; mas eles nom puderom suprimir todas as memórias e, sob as camuflagens –de florestas novas, a erva nova- , Claude Lanzmann soube encontrar as horríveis realidades. Nesta pradaria verdescente houve valas em forma de funil onde os camiões descarregavam os Judeus asfixiados durante o trajeto. Nesta ribeira tam bela deitavam as cinzas dos cadáveres calcinados. Eis as quintas pacíficas das quais os camponeses polacos podiam ouvir e mesmo ver o que se passava nos campos. Eis as aldeias com bonitas casas antigas desde as quais foi deportada toda a populaçom judaica.

Claude Lanzmann mostra-nos as estações de Treblinka, de Auschwitz, de Sobibor. Ele põe os seus pés nas “rampas”, hoje cobertas de erva desde as quais centenas de milhares de vítimas eram levadas às câmaras de gás. Para mim, umha destas imagens mais dilacerantes é a que representa umha pilha de malas, umhas modestas, outras mais luxosas, todas com os nomes e os endereços. As mães deixaram cuidadesamente nelas o leite em pó, o talco, a Bledina. Outras, a roupa, os víveres e os medicamentos. E ninguém precisou nada.

As vozes. Elas contam, e durante grande parte do filme, dizem todas a mesma cousa: a chegada dos comboios, a abertura dos vagões dos que se desmoronavam os cadáveres, a sede, a ignorância do medo, o despimento, a “desinfeçom”, a abertura das câmaras de gás. Mas em nengum momento temos a impressom de ser algo repetido. Primeiro de mais por causa da diferença das vozes. Como aquela fria, objetiva –com apenas no princípio algumhas bulidelas de emoçom-, de Franz Suchomel, o SS Unterscharführer de Treblinka, que explica da forma mais precisa e detalhada o extermínio de cada comboio. Há a voz algo confusa de alguns polacos: o condutor da locomotiva que os Alemães mantinham com vodka, mas que apenas suportava os berros das crianças sequiosas, o chefe da estaçom de Sobibor, inquieto polo silência que subitamente tombava no campo cercano.

Mas, muitas vezes, as vozes dos camponeses som indiferentes ou até algo trocista. E logo estám as vozes dalgum sobrevivente judeu. Dous ou três conquistarom umha aparente serenidade. Mas muitos apenas conseguem falar, as suas vozes quebram-se e derretem-se em lágrimas. A concordância das suas histórias nom cansam, ao contrário. Pensemos na repetiçom planeada dum tema musical ou dum leitmotiv. Porque é umha composiçom musical que evoca a subtil construçom de Shoah com os seus momentos onde culmina o horror, as pacíficas paisagens, os seus lamentos, os seus lapsos neutros. E o conjunto segue o ritmo do ruído quase insuportável dos comboios que rolam para os campos.

Rostos. Muitas vezes dizem muito mais do que as palavras. Os camponeses polacos mostram compaixom. Mas a maioria parece indiferente, irônica ou mesmo satisfeita. Os rostos dos judeus concordam com as suas palavras. Os mais curiosos som os rostos alemãos. O de Franz Suchomel fica impassível, salvo quando se acendem os seus olhos ao cantar umha cançom à glória de Treblinka. Mas nos outros a expressom perturbada e traiçoeira desmente os seus protestos de ignorância e de inocência.

Umha das grandes habilidades de Claude Lanzmann foi com efeito a de nos contar o Holocausto do ponto de vista das vítimas, mas também do dos “técnicos” que o fizerom possível e que recusam toda responsabilidade. Um dos mais caraterísticos é o burocrata que organizava os transportes. Os comboios especiais, segundo ele, estavam à disposiçom dos grupos que saiam de excursom ou de férias e que pagavam meia tarifa. Ele nom nega que os comboios dirigidos para os campos fossem também comboios especiais. Mas ele afirma nom ter sabido que os campos significavam o extermínio. Tratava-se, pensava ele, de campos de trabalho onde os mais fracos morriam. A sua fisonomia perturbadora, fugidia, contradi-o quando alega ignorância. Um pouco mais tarde, o historiador Hilberg ensina-nos que os Judeus “transferidos” eram assiilados às pessoas em férias pola agência de viagens e que os Judeus, sem o saber, autofinanciavam a sua deportaçom já que a Gestapo pagava-a com os bens que lhe confiscara.

Outro exemplo surpreendente do desmentido oposto às palavras por um rosto é o dum dos “administradores” do gueto de Varsóvia: ele queria ajudar o gueto a sobreviver, preservá-lo do tifus, segundo ele. Mas às questões de Claude Lanzmann ele responde balbuciando, os seus traços descomponhem-se, a sua olhada foge e está em plena confusom.


A construçom de Claude Lanzmann nom obedece a umha ordem cronológica, eu diria –se se pode utilizar esta palavra a respeito deste tema- que se trata dumha composiçom poética. Era preciso um trabalho mais grande que este para indicar as resonâncias, as simetrias, as harmonias nas que repousa. Isto explica que o gueto de Varsóvia apenas seja descrito ao fim do filme quando já conhecemos o destino implacável dos revoltados. Nisto a história tampouco é unívoca: é umha cantata fúnebre em várias vozes habilmente entrelaçadas. Karski, entom correio do governo polaco no exilo, cede aos pedidos de dous importantes responsáveis judeus e visita o gueto para achegar ao mundo o seu testemunho (aliás, em vao). Ele apenas vê a horrorosa inumanidade deste mundo agonizante. Os poucos sobreviventes da revolta, esmagada polas bombas alemás, falam polo contrário dos esforços feitos para preservar a humanidade desta comunidade condenada. O grande historiador Hilberg discute por muito tempo com Lanzmann sobre o suicídio de Czerniakow, que tentara ajudar os judeus do gueto e que perdeu toda esperança o dia da primeira deportaçom.

O final do filme é, ao meu olhar, admirável. Um dos poucos sobreviventes da revolta acha-se sozinho no meio das ruinas. Ele di que conheceu entom umha espécie de serenidade ao pensar: “Sou o derradeiro dos Judeus e espero aos Alemãos”. E imediatamente vemos rolar um comboio que leva umha nova cárrega para os campos.

Como todos os espetadores, eu misturo o passado e o presente. Disse que é nesta confusom que reside o lado milagroso de Shoah. Eu acrescentaria que nunca teria imaginado umha aliança semelhante de horror e beleza. Com efeito, umha nom mascara a outra, nom se trata de estetismo: ao contrário, descobre-a com tanta intençom e rigor que somos conscientes de contemplar umha grande obra. Umha obra-prima.

Simone de Beauvoir

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