Maria José Ferro Tavares
O criptojudaísmo foi definido como umha heresia polos cristãos e foi rejeitado polos Judeus como um judaísmo. Para os primeiros, o facto de os cristãos novos viverem exteriormente umha prática cristã, enquanto, no interior dos seus lares, a referência religiosa era a tradiçom judaica, levava à justificaçom do Tribunal do Santo Ofício como forma de combater esta heresia do seio da cristandade; para os segundos, a recusa de a minoria cristã nova em abandonar o reino, apesar das perseguições inquisitoriais, para poder regressar a um judaísmo pleno e livre, fazia-os rejeitarem-na como pertencente ao mundo judaico.
Poder-se-ia dizer, muito simplesmente, que os criptojudeus nom se integravam nem na cristandade nem no mosaísmo, pois encontravam-se excluídos, polos seus comportamentos heterodoxos, de ambos os grupos.
No entanto, o criptojudaísmo nom pode ser apenas entendido, como umha questom religiosa. Ele era polas suas ligações às raízes ancestrais do povo hebreu, a razom da sua afirmaçom histórica como naçom distinta da cristã. A alteridade, o seu desejo à diferença, levá-los-ia a declararem-se pertencentes à «casta dos Judeus». Quando muito pouco restava já da transmissom fiel da religiom moisaica, a memória revivida dessa ancestralidade era transmitida polo sangue. Ser judeu era nom ser cristão.
Se a integraçom exterior foi umha realidade, desde cedo, através da onomástica, da frequência da catequese, da missa e dos sacramentos, a assunçom desse ato social e religioso só tardiamente se manifestaria.
De facto, no interior dos lares cristãos novos, a leitura dos Salmos sem a oraçom da Glória ao Pai, no final, era corrente, tal como a bençom ao modo judaico, a rejeiçom dos alimentos proibidos pola Lei, o sabbat, os jejuns ou as Páscoas. Depressa algumhas destas tradições religiosas foram, com o terror imposto pola Inquisiçom, caindo em desuso, sobretudo as mais visíveis, como o descanso sabático, o quipur, as Páscoas, ou os interditos alimentares. No entanto, permaneceriam os thanis ou junçom do sabbat com a festa cristã de dedicaçom do sábado à Virgem Maria.
A transmissom desta tradiçom, feita polo homem ou pola mulher, na frequente ausência daquele, exigiu o hermetismo e a endogamia e foi afirmaçom de alteridade. A designaçom de gente de nação que a maioria cristã lhe conferiu, acabaria por ser o reconhecimento público de que os descendentes dos antigos Judeus, apesar de batizados, preferiram o direito à diferença, nom se integrando na sociedade cristã, a nom ser por exceçom.
Comunidades cripojudaicas
Ainda existem em Portugal pequenas comunidades criptojudaicas quase em vias de extinçom, quer em Trás-os-Montes, quer na Beira interior. De todas, Belmonte é a mais conhecida e mais povoada.
Casos conhecidos de criptojudaísmo em Portugal: Trás os Montes (Bragança), Beira Alta (Guarda), Beira Baixa (Fundão, Penamacor, Monsanto, Idanha-a-Nova, Castelo Branco) e no Alto Alentejo (Castelo de Vide).
Em Belmonte observa-se hoje à penetraçom do judaísmo e ao abandono de todas aquelas tradições religiosas e de costumes, miscigenadas, por vezes, de cristianismo, que fizeram de Belmonte umha comunidade singular. Histórica e etnograficamente seria lamentável que, mais umha vez por hermetismo, desaparecesse algo que é, queira-se ou nom, um documento vivo dum património histórico português e judeu, como esta oraçom do Pai Nosso recopilada por David Agusto Canelo em "Os últimos criptojudeus em Portugal. Belmonte" (1987):
«Senhor que estais nas alturas,
por vossos altos favores,
vos chamam os pecadores,
Pai Nosso.
A vós Senhor como posso,
o vosso nome invocarei,
pois decerto eu bem sei
que estais no céu.
Amparai, Senhor, um réu,
que muito ver vos deseja,
que o vosso nome seja
santificado.
Eternamente sejais louvado
por tais modos,
a uma voz digamos todos;
seja!
Do dizer que ninguém seja,
nem o mais de vos louvar.
Só deve triunfar
o vosso nome.
Matai-nos a nossa fome.
Com o bem da vossa mão,
e do céu, meu Deus,
o pão venha a nós.
Amparai-nos sempre vós,
dando-nos pão e mais pão,
e por fim, em conclusão,
o vosso reino.
Fazei que seja vosso
esse reino da verdade,
sempre a vossa vontade
seja feita.
Quando dermos conta estreita,
convosco meu Deus me veja,
para perdoar-me seja
a vossa vontade.
Dai-nos lá, na eternidade,
a vossa vista um lugar,
já que andamos a peregrinar
assim na terra.
É assim que se desterra
um pesar com tal prazer,
pois melhor lugar não pode haver
como no céu.
Em tempo algum seja réu,
por culpas que não cometi,
a todos dai, como a mim,
o pão nosso.
Eu prometo ser tão vosso,
que por vós morrerei,
sempre vos louvarei
cada dia.
Dai-nos prazer e alegria,
com poderes da vossa mão,
e a todos o perdão
nos dai hoje".
Maria José Pimenta Ferro Tavares (Lisboa, 1945) é umha historiadora e professora portuguesa, especialista na história dos Judeus e dos cristãos novos em Portugal. Em 1998 foi a primeira reitora dumha universidade ou instituiçom de ensino superior em Portugal. As principais obras dela são "Os Judeus em Portugal no século XIV", Lisboa, Guimarães Editores (2000) e "Os Judeus em Portugal no século XV", Universidade Nova de Lisboa (1982-1984).
Fonte: Linhas de Força da História dos Judeus em Portugal UNED
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