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quarta-feira, 30 de abril de 2025

O ANTIJUDAISMO MEDIEVAL EM PORTUGAL

 Maria José Ferro Tavares

O antijudaísmo apresenta-se na história portuguesa como umha manifestaçom tardia e sem representatividade específica, a julgar pola tradiçom, pola documentaçom escrita e pola imagem.

Representaçom do judeu como um cão com barrete na Sé de Evora | Blogue Alcáçovas

A tradiçom refere, para os séculos XIII, três profanaçoes da Sagrada Partícula: duas nas sinagogas de Coimbra e Estremoz que teriam posteriormente dado origem às igrejas da invocaçom do Corpo de Deus, facto comum noutras regiões da cristandade ocidental, e a terceira em Santarém. 

> No que respeita a Coimbra, a tradiçom e a documentaçom escrita nom coincidem totalmente, pois em finais do século XIV existiam a sinagoga velha e a igreja do Corpo de Deus, o que faz interrogar sobre o acontecimento que deu origem à tradiçom oral.


> Em Santarém, a história da profanaçom é transmitida a partir dum texto do século XVIII que fala das sanções que tiveram o judeu profanador e a mulher cristã, a sua colaboradora, além do milagre que ocorreu. 

Na memória destes sacrilégios nom se registou a destruiçom das comunidades judaicas, ocasionada por eventuais levantamentos populares.


Aliás, a mais antiga referência escrita a um tumulto popular antijudaico pertenceu ao reinado de D. Fernando, ou seja, a finais do século XIV e teve lugar em Leiria, durante a Semana Santa. No dia de Quinta Feira Santa, a comuna teve as suas casas apedrejadas por algum popular e rapazes o que levaria o soberano a aconselhar o encerramento das portas da judiaria, durante este período litúrgico cristão, para evitar no futuro maiores danos às pessoas e bens dos Judeus.


Durante a crise política e social de 1383/1385, também o povo miúdo de Lisboa tentou assaltar a Judiaria Grande da cidade e as casas dos ricos judeus cortesãos, partidários da Rainha Regente D. Leonor e do rei de Castela. No entanto, a tentativa foi prontamente evitada com a atuaçom do Mestre de Avis e dalguns fidalgos.


O único levantamento contra os Judeus portugueses com consequências graves para as pessoas e bens destes, ocorreu em Lisboa, polo Natal de 1449, numha altura em que a corte estava ausente. Interpretado como acontecimiento estranho «e nunca visto» em Portugal, as autoridades régia e municipal reagiram castigando duramente os intervenientes neste motim contra os Judeus.


De difícil interpretaçom, pois surgiu como resposta espontânea a umha altercaçom violenta 'entre alguns indivíduos da minoria e uns rapazes cristãos, a verdade é que se pode ver nele o início dos primeiros sinais de rutura na convivência pacífica entre as gentes dos dous credos, sobretudo, na quebra de relacionamento entre o povo miúdo de Lisboa e os membros da respectiva comuna, alguns deles Judeus cortesãos e ricos.


Caberia igualmente interrogar-se se estas mudanças nos comportamentos coletivos teriam algo a ver com o reflexo, em Portugal, dos acontecimientos ocorridos em Castela contra Judeus e conversos.


Como acontecimento espontâneo e único na história dos Judeus portugueses até à sua expulsom, em 1496/1497, ficou este levantamento de Lisboa de 1449. Isto nom significa que, durante a segunda metade do século XV, esta minoria nom tivesse sentido crescer contra si um aumento de agressividade, expressa nas vozes e nas reivindicações dos procuradores nas cortes ou nas palavras mais inflamadas dum pregador. No entanto, o crescimento da rivalidade económica nunca teve qualquer consequência física, a nom ser tornar consciente um sentimento de insegurança e de instabilidade social, que levaria as comunas do reino a pedir a D. Afonso V, a confirmaçom das bulas papais de proteçom às pessoas e bens da minoria, no início da década de Sessenta.


A rivalidade económica no comércio, na banca e no artesanato levava a que aos protestos contra a usura do século XIV, se juntassem na centúria seguinte as queixas contra as sociedades comerciais e financeiras mistas de cristãos e judeus, contra o comércio marítimo internacional praticado por estes últimos, acrescidas da exigência de lhes impor a judiaria como o espaço único de trabalho.


Ao contrário do que sucedeu nos reinos vizinhos da Península e na França, durante a permanência do povo judaico, pouco se sabe sobre a controvérsia religiosa e os escritos originais de apologética. De facto, o que se conhece diz respeito às livrarias dos mosteiros, como o de Alcobaça, onde existia um ou outro manuscrito de polémica religiosa, cópia de obras produzidas na França ou nos reinos peninsulares, durante o século XIII, ou à obra de Álvaro Pais, bispo de Silves.


O único texto escrito por um converso português, ex-rabi de Tavira, mestre António, afilhado de D. João II, intitulava-se "Ajuda da fé" e era, segundo Révah, umha cópia truncada da obra de Jerónimo de Santa Fé, mas sem a agressividade antijudaica desta.


No entanto, seria incorreto afirmar que nom existia antijudaísmo em Portugal. Se este nom estava presente na generalidade das relações quotidianas, ele circulava subrepticiamente no inconsciente coletivo do povo, traduzindo-se por certas atitudes insultuosas contra os membros da minoria. Como tal pode-se ver o apelativo «cão» ou «perro judeu», ou certas festas populares no dia de Sto. Estêvão, como a caça ao «porco pisco», o judeu.


A literatura medieval nom foi antijudaizante em Portugal. Nas cantigas de escárnio o judeu encontrava-se praticamente amisso, com a exceçom da referência a mestre Josepe e aos seus Judeus coletores de impostos. Em Fernão Lopes, ele surgia-nos minorizado em relaçom e, em certos aspetos, na mesma categoria de ser inferior ou excluído que as prostitutas. Seria já no século XVI que o antijudaísmo se manifestaria por meio da palavra escrita na literatura, com Gil Vicente, João de Barros ou mesmo nalgumha poesia cortesã. Inserida no "Cancioneiro Geral" de Garcia de Resende.


Igual ausência da figura do judeu, com as suas características de diferença, se encontra na arte portuguesa. Apenas na sé de Évora, templo de forte marca estilística francesa, surge o rosto dum judeu com as suas longas barbas e a coifa cónica. Outra representaçom posterior —de finais do século xiv—, na pintura em madeira da Colegiada de Santa Maria de Guimarães, apresenta-o vestido de escuro e com um pequeno chapéu redondo na cabeça acompanhado por umha mulher. Ambos eram símbolos do mal para o homem medieval. Nos livros iluminados de Sta. Cruz de Coimbra, a coifa cónica ou o chapéu ponteagudo, à moda da Europa central, retratavam o judeu, de tal modo que é difícil dizer se tais representações nom seriam importadas.


O século XV ofereceu umha caricatura dum indivíduo da minoria com o seu barrete cónico e o nariz adunco, desenhada num dos livros da chancelaria de D. Afonso V, características que se viriam a repetir na pintura dos pintores «primitivos portugueses» e dos do século XVI . De resto, a arte deu a imagem de profetas com o rolo da Lei, com ou sem chapéu cónico. Os símbolos segregacionistas, a roda ou a estrela, nom aparecem representados na arte medieval portuguesa que chegou até nós.


Maria José Pimenta Ferro Tavares (Lisboa, 1945) é umha historiadora e professora portuguesa, especialista na história dos Judeus e dos cristãos novos em Portugal. Em 1998 foi a primeira reitora dumha universidade ou instituiçom de ensino superior em Portugal. As principais obras dela são "Os Judeus em Portugal no século XIV", Lisboa, Guimarães Editores (2000) e "Os Judeus em Portugal no século XV", Universidade Nova de Lisboa  (1982-1984).

Fonte: Linhas de Força da História dos Judeus em Portugal UNED

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