segunda-feira, 1 de abril de 2024

ANTISSEMITISMO E A DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA

 Matheus Alexandre

Ontem, 31 de março de 2024, o Brasil viveu o 60º aniversário do golpe civil-militar.

Sempre que se pensa na relação do regime ditatorial, entre 1964 e 1985, e os judeus brasileiros, há uma equivocada crença de que os judeus perseguidos, presos, torturados ou assassinados o foram somente por serem militantes de grupos políticos de esquerda, e não por serem judeus. Essa perspectiva, no entanto, é uma meia-verdade e não se ancora nos fatos históricos comprovados pela abertura dos arquivos do regime nas últimas décadas.

As recentes pesquisas mostraram que a ditadura civil-militar também possuía um ingrediente especial: o antissemitismo.




O MITO DO COMPLÔ JUDAICO-COMUNISTA


Para entender as nuances do antissemitismo da ditadura civil-militar, no entanto, é preciso, antes, compreender a intersecção entre antissemitismo e anticomunismo, ou melhor: o mito do complô judaico-comunista.

Essa crença, que teve penetração especial em círculos fascistas, nazistas e católicos radicais, criava uma caricatura segundo a qual os judeus seriam agentes do comunismo internacional, agindo secretamente na intenção de destruir a ordem e os valores pátrios e cristãos. Essa ideologia ganhou grande tração na realidade brasileira, especialmente a partir da Era Vargas.




É importante salientar, com a necessária honestidade que esse debate exige, que o antissemitismo não foi uma característica central da ditadura civil-militar.


No entanto, a historiografia brasileira contemporânea sugere que, além da relativa continuidade do mito do complô judaico-comunista em algumas seções das Forças Armadas, o documento do DOI-CODI intitulado “O Judeu e o Comunismo”, de 12 de fevereiro de 1976, quatro meses após o assassinato de Vladimir Herzog, seria uma evidência da existência do antissemitismo nos porões da ditadura.



HEZORG: COMUNISTA DEMAIS PARA SER JUDEU; JUDEU DEMAIS PARA SER COMUNISTA


Com o assassinato de Herzog e a subsequente discussão pública sobre sua identidade judaica devido ao debate sobre seu enterro em um cemitério judaico - já que as Forças Armadas haviam alegado um suicídio -, os órgãos da ditadura se questionaram: como poderia um judeu ser comunista? Herzog seria de fato um militante de esquerda? Sendo judeu, não teriam as Forças Armadas errado o alvo ao assassiná-lo, dado que judeus são normalmente associados a serem capitalistas gananciosos?

O documento do DOI-CODI foi então publicado com a intenção de esclarecer esses questionamentos.



“Reiteradas vezes oficiais do DOI/2º Exército são interpelados por companheiros de farda sobre a presença de judeus nas organizações comunistas. Argumenta-se que os judeus, mundialmente conhecidos como elementos voltados exclusivamente para as finanças, em busca de lucro ávido e incessante, seriam as últimas pessoas a esposar a ideologia marxista, propugnadora da socialização dos bens de capitais e contrárias ao lucro”.


Entre as páginas do documento, era apresentada uma lista de "alguns judeus comunistas", acompanhada de suas respectivas biografias. No entanto, alguns dos mencionados não eram, de fato, judeus.


MITO DO JUDEU DOMINADOR DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO


O documento apresentava uma gramática típica de "Os Protocolos dos Sábios de Sião":


“Acontece que os meios de comunicação do Ocidente estão nas mãos das organizações judaicas, interferindo em todas as comunidades e no processo cultural de cada país, mesmo sendo uma minoria racial e uma sociedade à parte. Ao serem hostilizados, afirmam-se como uma raça privilegiada por Jeová, cujo destino é a liderança do mundo.”



 

O RABINO QUE DESAFIOU A DITADURA


A versão oficial - e mentirosa - das instituições da ditadura civil-militar afirmava que Vladimir Herzog teria se suicidado. Em razão disso, um debate na comunidade judaica sobre como seria o seu enterro foi suscitado, já que, segundo a Lei Judaica (halachah), o suicida deveria ser enterrado em lugar separado dos demais judeus. O rabino Sobel, no entanto, que era integrante da Congregação Israelita Paulista (CIP), não aceitou a versão do regime. Mesmo sofrendo pressões, ele fez com que o enterro ocorresse no Cemitério Israelita do Butantan, denunciando à sociedade que Herzog, na verdade, havia sido assassinado.




Iara Iavelberg, também judia, foi assassinada pelas forças de repressão e acusada de ter se suicidado com um tiro no próprio peito. No início do século XXI, no entanto, a família Iavelberg entra na justiça comum, com o apoio do rabino Sobel, para pedir a exumação do corpo de Iara. A tradição judaica, além das restrições ao suicídio, também proíbe a violação do corpo do falecido após o enterro. Finalmente, em 11 de junho de 2006, com uma cerimônia liderada por Sobel, os restos mortais de Iara foram sepultados na parte comum do Cemitério Israelita.



Pela memória de Vladimir Herzog (1937-75), Iara Iavelberg (1944-71), Mauricio Grabois (1912-73) e André Grabois (1946-73), Ana Rosa Kucinski (1942-74), Chael Schreier (1946-69), Gelson Reicher (1949-72), Pauline Philipe Reischtuhl e tantos outros.

Ditadura nunca mais!



INDICAÇÕES DE LEITURA


Comando II do Exército - Ministério do Exército. (12 de fevereiro de 1976). Informação nº 303. São Paulo, SP


Airton de Farias, J. (2023). Anticomunismo, antissemitismo e atentados de extrema-direita na abertura da ditadura civil-militar. Revista Discente Ofícios De Clio, 7(12), 123-141. 


Kucinski, B. (2016). K - Relato de uma Busca. São Paulo, SP: Editora Companhia das Letras.


Fonte: Matheus Alexandre 

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