quarta-feira, 4 de agosto de 2021

O CONFLITO ISRAELO-PALESTINIANO É UMHA QUESTOM DE ANTROPOLOGIA CULTURAL

Ariana Harwicz

 Georges Bensoussan (Marrocos, 1952) especializou-se em história cultural da Europa dos séculos XIX e XX e do mundo judaico. O seu trabalho é especialmente dedicado ao antissemitismo, à Shoah, ao sionismo e às ligações entre a história e a memória. Ele é editor-chefe da Revue d'Histoire de la Shoah e diretor editorial do Mémorial de la Shoah em Paris. Ao longo da sua pesquisa ele tenta situar a Shoah na história global do mundo e do Ocidente, mostrando que ela é um resultado e nom umha anomalia.

A profunda necessidade de diálogo com ele surge ao observar o maciço trâmite da doxa dominante do jornalismo em vários países, ou seja, a condenaçom de Israel, a demonizaçom dos judeus, junto com a glorificaçom do Hamas e da luta palestina. É sob esses termos que o conflito entre Israel e Palestina é coberto. Repetem-se os anos trinta, terreno fértil preparado para que a opiniom pública aceite, um dia, um novo genocídio. Daí a urgência dessa conversa, a urgência de tentar sair dessa forma de pensar.

Georges Bensoussan

Como explica o conflito atual de uma forma simples?

Esforçar-se para descobrir, para compreender, é ir às origens dum conflito que remonta ao último terço do século XIX. O imediatismo do presente nada nos ensina: nom explorar a gênese desta tragédia é condenar-nos a nada compreender e repetir temas que nos confortam na agradável posiçom de "gente boa".

Por que um conflito de dimensões tam modestas (a distância entre o Mar Mediterrâneo e o Rio Jordám nom ultrapassa 70 km, e a populaçom de Israel tem menos habitantes do que a regiom de Paris) nom foi resolvido em mais de um século?

É um conflito de baixíssima letalidade em comparaçom com os da segunda metade do século XX (Guerra da Coréia, Guerra do Vietnã, tragédias africanas com milhões de mortos, Grande Fome, Revoluçom Cultural na China, etc.). E entom, por que este conflito se fortaleceu apesar das conferências de paz e da assinatura dos Acordos de Oslo de 1993? Porque, além dos seus aspectos políticos e geográficos (a delimitaçom de fronteiras, questões de refugiados, Jerusalém, assentamentos na Cisjordânia, etc.), esse conflito tem como núcleo irredutível umha dimensom antropológica raramente vista. É, para começar, aquele que confronta o Islã com os Judeus contra os quais as suras de Medina do Alcorám (a sua parte mais recente) multiplicam as maldições, aqueles Banu Israel que outrora foram louvados e a quem Deus deu a terra de Eretz Israel . Como poderia esta "cidade fantasma" (a fórmula é de Leon Pinsker), espalhada polo mundo, retornar a esta terra quando, depois de ter traído as suas Escrituras e os seus profetas, Deus retirou a escolha de atribuí-la aos muçulmanos? Se os judeus voltam à terra de Israel, o Alcorám, a palavra de Deus, de que nada e ninguém pode mudar, é posto em dúvida e, de acordo com esse esquema, o Estado de Israel ressoa como um questionamento do texto sagrado.

Em segundo lugar, o Islã nom concebe igualdade entre muçulmanos e nom muçulmanos, apenas relações de subordinaçom. E na cosmovisom muçulmana, Judeus e cristãos som considerados protegidos, isto é, submissos que têm o direito de viver, desde que aceitem a sua condiçom inferior. Que essas submissas se rebelem contra o seu mestre e busquem construir um Estado-naçom (numha terra considerada muçulmana desde a eternidade) constitui umha revolta contra a condiçom judaica na terra do Islã codificada no estatuto de dhimmi. Assim, e este nom é o menor dos paradoxos, o sionismo, aquele movimento europeu pola libertaçom do sujeito que nasceu no Iluminismo, entra em conflito direto com a lei opressora que o Islã impõe aos nom-muçulmanos.

Quem evoca o esquema do colonialismo no sionismo, aquela palavra de ordem que se torna cada vez mais opaca à força de assimilar diferentes situações, confunde colonizaçom e colonialismo. A colonizaçom é a instalaçom dumha populaçom num determinado território. Qualquer movimento migratório pode ser um movimento de colonizaçom, como os Gregos no Mediterrâneo antes da era cristã ou os europeus na América, como as migrações atuais que estám a mudar a face demográfica da Europa no século XXI. Nesse sentido, sim, o sionismo é um movimento de colonizaçom. A história do movimento sionista em Eretz Israel (a palavra Palestina, imposta polos romanos após a revolta judaica, nom existe em hebraico) até a criaçom do Estado em 1948 é marcada pola vontade de construir um Estado autônomo, umha sociedade sem relaçom de dominaçom com nengum mundo existente. Mas nom tem nada a ver com o colonialismo, umha relaçom de poder exercida sobre súditos dominados (por exemplo, o colonialismo francês no Magrebe). O objetivo do sionismo é constituir um estado-naçom judeu (no sentido do povo judeu) ao lado do mundo árabe e em oposiçom ao colonialismo otomano antes de 1918 e ao colonialismo inglês antes de 1948.

Ao contrário do raciocínio comum hoje, perder umha batalha nom significa necessariamente que esteja do lado da justiça...

A vitória nom é necessariamente o triunfo do Mal, a derrota nom é necessariamente o esmagamento do Bem. Caso contrário, em vista de seu sofrimento e ruínas, teríamos que lamentar o destino dos alemães em 1945 e absolver o desastre nazista que os trouxe até lá. É por isso que, por mais estranhas que as minhas palavras soem num contexto tam emocional, a moral aqui está do lado vencedor. Polo menos por um motivo: porque num mundo onde os recursos som tam desigualmente distribuídos, nom se pode, moralmente, disputar migalhas de território contra quem nada tem, quando para si se tem vinte e dous Estados que cobrem vários milhões de quilômetros quadrados. Em 1948, os Judeus som o povo que pretende construir o seu Estado sobre as ruínas da antiga pátria e que nom tem lugar na terra para reclinar a cabeça. Migalhas de território som disputadas quando há um espaço que vai das margens do Atlântico à fronteira árabe-persa. Tratar pessoas desiguais em pé de igualdade também é umha forma perversa de injustiça.

Como explicar que Israel permaneça sistematicamente do "lado mau, o bastardo" e os palestinianos como vítimas? Que dispositivo mental ou político é posto em prática e permite essa grade de leitura ideológica na Europa e noutros lugares?

Ao nom mais raciocinar em termos intelectuais (distinguir o que é verdadeiro do que é falso) para raciocinar em termos de bem e de mal, o sofrimento da vítima torna-se o prisma da verdade. A partir daí, a vítima torna-se aquele ser que está essencialmente sempre certo. E, portanto, novamente, o mais fraco parece ser o mais moral. É assim que os alemães se apresentam em 1945: como vítimas. Isso os isenta de toda responsabilidade e os coloca do lado do bem. A esses clichês é adicionada outra mitologia. Nas sociedades descristianizadas do Ocidente, somos ingênuos ao considerar que a deserçom das igrejas implica no desaparecimento dos paradigmas culturais mais antigos. Este nom é o caso. Tanto para o mundo cristão quanto para o mundo muçulmano, o sinal "judeu ressuscitado" na forma do estado-naçom constitui algo impensável, senom impensável. Para as duas civilizações resultantes do monoteísmo judaico, a restauraçom nacional judaica é difícil de conceber. O antissionismo do Vaticano foi expresso desta forma desde as origens do movimento sionista em 1897, e demorou até quase o quinquagésimo aniversário do Estado de Israel, em 1994, para o Vaticano reconhecer o Estado judeu. O “retorno do espectro” traz à luz “o judeu” como sinal de origem. Umha "origem" que podemos tolerar quando desaparece e tomamos o seu lugar na ordem eleitoral, mas que se torna insuportável quando tenta restaurar a sua soberania e existir em igualdade de condições (o Estado de Israel). É por isso que, antes de 1945, na Europa, o antissionismo era essencialmente de extrema direita, com epicentro no Terceiro Reich de Hitler, que jurara que nunca haveria um Estado judeu.

A destruiçom dos judeus da Europa obviamente nom é o primeiro genocídio da história humana. No entanto, marcou umha cesura: um povo é eliminado da face da terra por umha questom de princípio. Nem por razões econômicas nem territoriais, esse povo condensa em si mesmo, aos olhos de seus assassinos, o princípio do mal. Este crime sem precedentes deixa umha mancha indelével de culpa na consciência ocidental. No entanto, o Estado de Israel nom é um presente que a Europa deu aos Judeus: "em compensaçom" polos crimes cometidos. É apenas o resultado do projeto sionista. Assim, quase todas as instituições israelitas de hoje foram criadas na década de 1920, um quarto de século antes do Holocausto. Da primeira escola secundária hebraica (Herzliya) em Jaffa em 1906, à Universidade Hebraica de Jerusalém em 1925, passando pola criaçom da Segurança Social (Kupat Holim) e do primeiro grande sindicato (Histadrut), em 1920. Finalmente, é necessário lembrar isso e, ao contrário da crença popular, o Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico e o Departamento de Estado dos Estados Unidos fizeram todo o possível para impedir o nascimento do Estado judeu quatro vezes entre 1947 e 1948. Quer falemos sobre isso ou nom, a Shoah constitui um fardo de culpa para as gerações ocidentais nascidas muito depois da guerra. Como Vladimir Jankélévitch escreveu em 1978 quando falou “na invisível má consciência de toda a modernidade [que] pesa como um segredo avassalador sobre todos os nossos contemporâneos, quer eles saibam ou nom [...] É o terrível e indescritível segredo que cada um carrega mais ou menos dentro de si ”. Alimentado desde a década de 1970 polo despertar da memória judaica, esse sentimento de culpa acabou por comprovar esse personagem judeu do filme de Axel Corti que, em 1942, assegurou a um amigo sobre seus contemporâneos nom Judeus: “Eles nunca nos vam perdoar polo mal que eles nos fizeram. "


Esta frase resume a culpa ocidental atual...

Sim, e a sua virada para a agressom quando a fala dos descendentes das vítimas (e às vezes a própria presença) lembra a responsabilidade dos ancestrais. Portanto, é quase umha dádiva de Deus poder "provar" que Israel nom é melhor com os Árabes do que o Reich nazista foi com os Judeus. Se Israel é culpado, nom somos mais culpados, nem com ele, nem com os Judeus em geral. Estamos em paz. Esta é provavelmente a raiz mais profunda que explica a obsessom ocidental em escrutinar o menor "passo em falso" do Estado de Israel, umha economia psíquica que às vezes chega a colocar um sinal de equivalência entre a suástica e a estrela de David como é demonstrado, entre dezenas de outros exemplos, nos protestos pró-Palestina na França em 2014 e 2021.

Desde os Padres da Igreja, a economia psíquica do Cristianismo repousa inteiramente na degradaçom de Israel, como visto em tantas catedrais no Ocidente, a estátua da sinagoga com a venda, a cabeça baixa e a lança quebrada. Um exército judeu vitorioso infligiria umha negaçom contundente à imagem do judeu atormentado e sofredor, doentio e covarde, incapaz de defender a si mesmo ou aos seus e contra o qual todos eram livres para impor a sua superioridade. Um poderoso exército israelita é como um tapa psíquico na cara, tanto para o Ocidente cristão quanto para o Oriente árabe-muçulmano. Essas raízes muitas vezes inconscientes tornam o conflito bastante insolúvel porque as palavras que eles poderiam liberar nom foram ditas com essas forças subterrâneas em mente.

Que papel a desempenham as esquerdas hoje, ou que deriva sofreu a esquerda hoje?

Umha parte da esquerda ocidental lamentou os grandes mitos revolucionários que desabaram um após o outro, do comunismo soviético ao comunismo chinês. Por isso teve que encontrar um proletariado substituto: era o imigrante, o “migrante”, o muçulmano, e no seu centro a imagem do palestiniano derrotado (Nakba), a figura ideal da vítima e, portanto, do Bom. O palestiniano substituiu o anjo caído proletário das sociedades de consumo. Por extensom, o Islã, que governa a vida do indivíduo e pretende um dia governar todo o planeta, é percebido como a religiom dos "dominados". Assim, a figura do palestino hoje assemelha-se, por sucessivos deslocamentos, à de Cristo crucificado e condenado à morte polo mesmo povo, pola segunda vez. E na mesma terra: Jesus, o palestiniano, novamente crucificado polos “fariseus/sionistas”. É assim que os mitos do Cristianismo som reativados, como as mensagens antijudaicas do Alcorão. Os paradigmas mentais desses dous mundos cristalizam-se contra esse retorno de Israel, decretado como umha figura do mal. Essa dimensom antropológica permite-nos entender melhor por que esse conflito continua sem soluçom e desperta tanta paixom no Ocidente. É insolúvel, também porque desperta tanta paixom.

A guerra entre Israel e o Hamas no verão de 2014 causou quase 1200 vítimas. Na França, o eco desse conflito provocou um surto de violência e levou a cenas de pogroms em Paris e os seus subúrbios. Desde 2011, a guerra civil na Síria deixou quase 400.000 mortos, 200.000 desaparecidos e mais de 5 milhões de deslocados. Na França, entretanto, nom houve demonstrações de repúdio em grande escala, muito menos tumultos. Esse duplo padrom na atençom dada à questom da Palestina revela essa dimensom oculta e inconsciente, que é, em última análise, umha questom de antropologia cultural.

Como essa mentalidade ou essa antropologia cultural inconsciente poderiam ser repensadas?

Diante de tais expressões de conviçom (conviçom: aquele inimigo da verdade, dizia Nietzsche) e diante do pouco conhecimento, vale lembrar alguns elementos da história. O sionismo é um movimento de descolonizaçom porque a minoria judaica na Palestina, que nom deixou de existir desde a destruiçom do Templo, desperta nacionalmente em torno do hebraico, que voltou a ser a sua língua de instruçom e língua materna no final do século. XIX. Os Judeus nom vêm de fora como marcianos que vieram para colonizar esta terra. Eles sempre viveram lá, embora tenham estado em minoria por muito tempo. Eles som, eles foram habitados por esta terra como mostra a liturgia judaica quando Jerusalém é invocada três vezes ao dia nas orações, quando todos os casamentos judaicos em qualquer lugar do mundo, e durante séculos, terminam com o vidro quebrado simbolizando a destruiçom de Jerusalém e o recitaçom das palavras do salmo: "Se eu te esquecer, Jerusalém, que a minha destra se esqueça de mim, e a minha língua seque no meu palato ..."

A toponímia desta terra é hebraica porque é a toponímia do texto bíblico...

Sim, a toponímia desta terra é hebraica porque é a toponímia do texto bíblico, posteriormente coberta pola toponímia dos “invasores”. Foi, portanto, um renascimento nacional, nom umha criaçom ex nihilo, e esse movimento de independência está de acordo com a independência grega de 1830 e com o movimento das nacionalidades europeias de meados do século XIX. Diz-se que o Estado de Israel teria sido criado para substituir o Estado Árabe da Palestina. No entanto, este estado nunca existiu, e o próprio nome da Palestina (decretado pelos romanos após o esmagamento das grandes revoltas judaicas dos séculos I e II dC) só foi estabelecido após a década de 1920. Quando em novembro de 1947 a ONU criou dous Estados neste território, um judeu e outro árabe, o Estado árabe nunca viu a luz. Foi absorvido pola Jordânia e pelo Egito em 1949. Por que esse estado, que hoje diz ser Israel, nom foi criado entre 1949 e 1967, quando o estado judeu nom ocupava essas regiões? Quando a naçom judaica forjou sua consciência nacional em torno da língua hebraica, ela foi recebida com umha rejeiçom árabe que nom ofereceu nenguma perspectiva de compromisso. Entre 1918 e 1948, os líderes árabes da Palestina rejeitaram todas as soluções de partiçom, como se os Judeus, como umha tribo esquimó, nom tivessem conexom com este território. O caos atual é resultado deste século de rejeiçom. É o resultado dumha visom de mundo que nom deixa espaço para a alteridade, um padrom semelhante à visom do Islã sobre os nom-muçulmanos. Portanto, a existência do Estado de Israel é vivida como um escândalo permanente e, faça o que fizer, o seu crime é um crime de nascimento, o seu pecado original é o ser; e nada, exceto a sua destruiçom, pode redimi-lo. Israel é um estado de apartheid, a cançom mortal se repete: A minoria árabe de Israel, 160.000 habitantes em 1949 e quase dous milhões hoje, representa cerca de 20% de sua populaçom. Os partidários do “Israel racista” deveriam perguntar-se sobre a presença de juízes árabes na Suprema Corte israelita e de deputados árabes no Knesset, o Parlamento israelita. Quantos parlamentares negros havia na África do Sul durante a era do apartheid? Como devem perguntar-se, num espelho, onde estám as minorias judias nos países árabes? Desapareceram entre 1945 e 1975, ao final dumha limpeza étnica que ainda nom tem nome. Racismo, apartheid, discriminaçom, assédio, exílio forçado, limpeza étnica? Cara onde devemos olhar?

Fonte: LETRAS LIBRES

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