sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

CASAS DE JUDEUS E CONVERSOS


Segundo os historiadores nom existem diferenças relativamente à tipologia da habitaçom dos judeus e cristãos na Idade Média. As suas casas e lares eram semelhantes, já que respondiam a um mesmo modo de vida consoante o nível económico e social do proprietário. Por conseguinte, é difícil estabelecer pola sua configuraçom espacial e funcional que umha dada habitaçom situada num burgo ou numha cidade, esteja ou nom dentro da antiga judiaria/judaria, aljama (em castelhano), ou call (em catalám) ou bairro judeu, tenha pertencido ou foi ocupada por umha família judia.

O modo de vida judaico era muito semelhante ao dos cristãos, salvo no que diz respeito das prescrições alimentares, os costumes religiosos, as festas e o dia de folga semanal. Nom existem, portanto, condições morfológicas únicas que diferenciem a habitaçom dum judeu da habitada por um cristão. O que caracterizava e singularizava externamente a habitaçom dum judeu era a mezuzá: umha pequena caixa ou estojo que continha um rolo ou pergaminho em que som escritos uns determinados versículos de Deuteronômio e que deve ser colocado, aproximadamente na altura do ombro dumha pessoa adulta, no plano interior da ombreira, de preferência a do lado direito da porta de entrada para a casa.

Nalguns casos, dependendo dos territórios, era praticado um pequeno buraco na ombreira da porta para acomodar a mezuzá. Assim sendo, este vão pode ver-se nalgumhas casas medievais que ainda se preservam  nas judarias de Girona e Cáceres. Quando isso acontecer, estamos certamente perante umha casa que foi habitada por judeus, mas conservam-se muito poucos exemplares. Nos casos em que nom existir esse buraco para a mezuzá na ombreira, nada nos diz hoje dum antigo prédio se foi a casa dum judeu ou dum cristão. Há, porém, uma série de características que, embora nom som determinantes, podem ser indícios claros dumha casa que foi habitada noutrora por judeus.

UM ARQUÉTIPO DE CASA JUDIA

Durante a Alta Idade Média a habitaçom mais comum nos burgos e pequenas cidades era de um ou dous andares, construídas de adobe ou de armaçom de madeira e de adobe, e, raramente, devido ao seu custo mais elevado, era construída de pedra. Naqueles lugares onde a pedra é abundante, naturalmente, foi mais utilizada na habitaçom de tipo médio (FOTO 1). A partir do século XIV incrementa-se o número de habitações de dous andares, tornando-se geral este tipo de habitaçom nas áreas urbanas e, quando o proprietário era um pouco mais rico, construiu a sua casa sobre em pedra. 

(1) Bairro medieval e judeu de Sabugal

Devido à baixa durabilidade do adobe e da armaçom hoje conservam-se muito poucas casas feitas com estes materiais, mas ainda se preserva um número considerável de habitações dos séculos XV e XVI, construídas em pedra que nos permitem fazer algumas observações (FOTO 2).


(2) Habitações judaicas dos séculos XIV-XV. Rua da Cadeia,
Castelo Rodrigo

A partir de meados do século XV há um tipo de habitaçom que, embora sem exclusividade, foi muito bem aceite polos judeus relativamente abastados (a chamada classe média de hoje) que viviam nos burgos e nas cidades na época. Ou seja, judeus que exerciam certas profissões, como médicos, notários, escrivãos, comerciantes e ofícios como alfaiates, ferreiros, curtidores, etc.


É uma casa de dous andares: a baixa é usada como espaço de escritório, comércio aberto ao público, ou oficina que se realiza o ofício, enquanto o andar de cima abriga a casa da família. O andar baixo tem normalmente duas portas, umha que costuma ser de maior largura que dá acesso ao local do escritório, comércio, ou oficina; e a outra que leva a uma escada permite aceder à habitaçom do andar de cima, em cuja fachada se abrem umha ou, mais geralmente, duas pequenas janelas situado quase sempre localizadas em relação à vertical das portas. Esta casa para acomodar pessoas relativamente abastadas tem as suas paredes de pedra, o que fez com que muitas tenham sobrevivido até hoje em bom estado de conservaçom em lugares que não tiveram um grande desenvolvimento urbano importante posterio ou que, por estarem protegidas hoje como centros históricos, nom foram demolidas.



Embora essas casas som construções simples e muito funcionais, por vezes isentas de qualquer enfeite, muitas delas soem ter algum elemento estilístico que varia dependendo das pretensões dos sue moradores. É quase umha constante, consoante a arquitetura dessa altura, que tenham as arestas exteriores exteriores dos ocos das suas portas e janelas biseladas. Por vezes, é acrescentado um maior grau de estilo e som decorados os linteis de portas e janelas com um falso arco conopial ou carpanel muito retangular (FOTO 3), costume que na habitaçom judeoconversa vai durar muito além do período manuelino, ou com motivos mais sofisticados de filiação tardogótica ou renascentista. Os moradores de muitas destas casas costumavam usar um pequeno banco exterior ligado num lado da fachada que servia de ajuda para expor mercadorias, para sentar e descansar ou como banco de trabalho. Em muitos casos este banco era substituído por um poio de pedra, como ainda hoje se pode ver nas casas que existem em Penamacor (5), perto das ruinas do castelo (FOTO 4).
(3) Casa do s. XV com lintel manuelino e com cruz, Tui

(4) Arquétipo de habitações judaicas dos séculos XIV-XV,
Penamacor

Outro elemento que pode existir é umha saliência, ao jeito de base (peana) num ou em ambos os lados dumha janela do andar de cima. Peanas que hoje som comumente usadas como suporte para um vaso com umha planta ornamental, mas na minha opinião poderiam ter servido como suporte para o candelabro comemorativo da Hanucá. O candelabro de nove braços das que umha utilizado para manter a chama com a que se devem acender as oito restantes, umha por cada dia que dura a celebraçom. "O candelabro deve ser colocado num local visível, perto dumha janela se viver num piso ou na porta de entrada, para indicar com a sua luz às pessoas que se acham perante um lar judaico". Costume que nalgum caso teria perdurado através dos séculos como referente externo da exibiçom religiosa do convertido e, por isso, com umha funçom de proteçom semelhante à da cruz gravurada nas fachadas, como ainda se pode ver em duas casas do bairro medieval de Monção na que habitaram judeus e hoje som usadas como peana sobre a que se coloca um santinho que se ilumina com lamparinas (FOTO 5). Em prol desta tese está a personalidade dum dos santos: Sam Joám Baptista, nascido judeu, que batizava judeus e batizou o Messias. Com os antecedentes deste santo, pode ser censurado um convertido polos seus antecedentes judaicos anteriores ao seu batismo? Que bom cristão novo ou descendente de cristão novo pode ser reprovado polas suas origens judaicas? Mirem o São João Baptista, mirem a São Pedro, mirem o mesmíssimo Jesus Cristo.



(5) São Jão Baptista sobre peana/base no bairro medieval de
 Monção

Esta parece ter sido a finalidade dos pequenos nichos em forma de arco usados para colocar em cada umha delas a pequena imagem dum santo e que estám situadas aos lados dumha janela, exatamente no mesmo lugar da fachada que corresponderia às peanas e que se podem ver nalgumhas casas de Valença (FOTO 6) construídas numha época bastante posterior à expulsom e que, na minha opiniom, puderam ter sido edificadas por cristãos novos.



(6) Santos em nichos numha casa do s. XVIII, Valença

Como confirmaçom disto pode ser entendido o nicho, que abriga um pequeno santo sobre umha base, coroada por umha "cruz de converso" esculpida entre duas janelas (FOTO 7) sobre a fachada dumha casa do século XVIII, também de Valença, que é contígua com outra da mesma época que tem num lugar análogo da anterior um nicho com um santo.


(7) Nicho e peana com santo, coroada por umha cruz, Valença

A CRUZ DO CONVERSO

Um risco diferenciador, embora nom definitivo, de que podemos estar perante umha casa de conversos e, portanto, de antigos judeus ou descendentes de famílias judaicas som, em opinioim muito partilhada hoje, as cruzes gravuradas nas fachadas das casas. Amiudamente localizam-se perto da porta de entrada e, o que é mais significativo, muitas vezes gravuradas exatamente no local em que um judeu deveria colocar a mezuzá. Quando nos encontrarmos perante umha casa dos séculos XIV, XV e XVI, e mesmo posteriores com estas características, muito provavelmente estamos perante umha casa de conversos ou de famílias de cristãos novos.


A mezuzá proclamava externamente a pertença à fé mosaica da família que habitava a habitaçom, família que era conhecida polos seus vizinhos. O batismo e conversom dos judeus muitas vezes foi efetuado de forma maciça como foi o caso de tantos que sobreviveram aos assaltos às judarias e o assassinato de muitos dos seus moradores que, apavorados entravam nas igrejas a suplicar batismo. Isto foi o que aconteceu depois do assalto à judaria de Sevilha em 1391, que foi o início dos assaltos e assassinatos que se produziram noutras judarias de Castela e Aragom.



Os conversos ou os seus descendentes umha vez batizados foram incomodados, e de facto foram-no muitos deles, como suspeitos de judaizar e, portanto, de cometer heresia e cair em mãos do temível Santo Ofício da Inquisiçom. Perante vagas de intransigência posteriores ao seu batismo resulta muito lógico que para se proteger proclamassem externamente perante a sua vizinhança e agentes e familiares da Inquisiçom a sua nova fé, a sua aceitaçom de que Cristo é o Messias, gravurando na fachada das suas casas, em muitos casos exatamente no local que antes ocupara a mezuzá, umha cruz: "A cruz do converso" (FOTO 8).


(8) Casa do s. XVIII com "cruz de converso" no lugar da mezuzá,
 Guarda

Esta cruz que proclama externamente a fé cristã de quem habita umha habitaçom nom fazia qualquer sentido que se gravasse na fachada da casa dum ranço cristão, cuja fé é induvitável e manifesta para a vizinhança. Dalgumha maneira a cruz gravurada na fachada está a dizer: "sim, cá mora um judeu ou um descendente de antigos judeus mas isso era antes, agora somos uns devotos cristãos". Deste ponto de vista é que apenas pode ser entendido o facto de nesse momento histórico gravurar umha cruz na fachada, perto da porta, na habitaçom dalguém cujas convições cristãs podiam oferecer dúvidas aos seus convizinhos: o converso ou descendente de conversos.


Durante as perseguições da Inquisiçom aos cristãos novos que eram suspeitos de judaizar ocultamente, os despetivamente chamados de marranos, as cruzes gravuradas nas imediações da porta de entrada às habitações representavam para os seus moradores, para além de proteçom, umha espécie de "sambenito", já que eram nalgumha maneira umha proclamaçom da sua falta de limpeza de sangue. Quem sem dúvida era um notório cristão velho nom precisava de o proclamar na porta da sua casa.


Esta é a explicaçom da existência de tantas inscrições deste tipo em prédios medievais e noutras mais modernas situadas em locais onde houve judarias ou populaçom judaica (a existência destas cruzes é praticamente nula onde nom houve judeus). As cruzes deste tipo som abundantes em casas do século XV e XVI, embora as inscriões puderam ter sido realizadas em época posterior à da sua construçom, e o momento da sua execuçom viria determinado polo maior grau de assédio vizinhal ou inquisitorial ao que se veriam submetidos os seus moradores. Nalgumha destas habitações som várias as cruzes gravuradas na fachada (FOTO 9), quase sempre umha ao lado da outra, o qual poderia ser explicado, quer cada membro de distintas gerações dumha mesma família de conversos acede à responsabilidade de governar a casa, quer os seus sucessivos ocupantes também conversos, manifestam a sua fe acrescentando umha nova cruz: confirmam que eles, ao igual que os seus predecessores, som bons cristãos.


(9) Várias cruzes gravuradas entre duas portas,
Guard
a
A cruz que se grava nas fachadas algumhas vezes consiste simplesmente em dous traços cruzados, mas em muitas ocasiões é umha cruz que se representa esquematicamente assentada sobre um suporte que nalgumhas vezes é um triângulo, em cujo caso parece-se muito com a cruz do Santo Ofício, e noutras assenta sobre um traço curvo que cruza o pé. Estes som os arquétipos da que eu chamo de "cruz do converso" ou "cruz de sobremesa".

Para um judeu o símbolo religioso fundamental é o candelabro de sete braços, a menorá, que é representado muito profusamente dumha maneira esquemática como umha linha vertical assentada sobre  um triângulo ou sobre um traço curvo e cruzada por três linhas curvas apontadas para cima. Quando se tornar cristão, em muitos casos forçado e sem ter recebido previamente umha instruçom religiosa na nova crença, remove com toda facilidade (e de forma lógica e automática) este símbolo que opera tam profundamente no seu inconsciente simplesmente "apagando" quatro braços e endireitando os dous transversais restantes. Esta é a "cruz do converso": "umha "cruz de sobremesa", umha cruz que se sustenta sobre umha basse do mesmo modo como o faz a menorá. Umha espécie de candelabro de três braços. É por isto umha cruz que resultava umha imagem familitar, e que precisamente por coincidir com a do Santo Ofício, representava em esquema a que talvez em muitos interrogatórios estava sobre a mesa do inquisidor e teria para o coitado cristão novo acusado de judaizar um efeito lenitivo, dalgum jeito quase mágico, de salvaçom. Sob este ponto de vista, embora este cruz dque eu chamo de converso nom é exclusivo deste e era usado já com anterioridade, nom me cabe dúvida qualquer de que a generalizaçom do seu uso polos judeuconversos deve pôr-se em relaçom com estes pressupostos. Cabe referir em reforço desta opiniom que em muitos casos esta base é representada como um traço curvo transversal que cruza o pé da cruz de maneira igual a umha representaçom esquemática típica da base da menorá.


(10) Casa do s. XV-XVI  com "cruz de converso" tipo menora,
Caminha
Casas com cruzes gravuradas dos tipos descritos tenho-as documentado no norte de Portugal (Guarda, Sabugal, Castelo Rodrigo, Almendra, Pinhel, Caminha, Valença, Monção, Vila Nova da Cerveira, Chaves, Ponte da Lima, Montalegre) e na Galiza (Alhariz, Videferre, Mesquita, Tui e Santiago).

Este uso do converso de gravurar cruzes em substituiçom da mezuzá, ou nas imediações da porta, tem um significado ambíguo: por um lado, de proteçom da óptica dum judeu converso e, por outro, de falta de limpeza de sangue (um marrano pode ser o morador dumha dada casa) da óptica dum cristão velho. Este costume perdurou até bem entrado o século XVIII, mesmo em casas de nova construçom. Som significativos os casos de La Alberca ou Candelario, em Salamanca, onde abundava a populaçom conversa que prospera economicamente, que já se sente profundamente cristã e, em consequência do seu progresso económico ergue durante os séculos XVII e XVIII novas habitações em substituiçom das antigas nas que coloca, agora orgulhosamente, umha cruz, a "cruz do converso", no centro do lintel da porta de entrada (Foto 13).




Muitas casas medievais situadas em antigas judarias possuem um pequeno rebaixamento ou fenda na ombreira da porta. A presença deste elemento permite deduzir que possa estar ligado dalgum jeito com a habitaçom judaica medieval. Ora bem, qual ligaçom e o que significam?


A resposta pode-se conferir no interessante artigo elaborado por D. Emilio Fonseca Moretón e publicado no "Anuario Brigantino de Betanzos" achega umha teoria sobre o significado e carácter judaico deste elemento presente nas portas das muralhas de Melgaço, Ribadávia ou Betanços.


Para quem quiser saber mais sobre este assunto, aconselho a leitura do excelente artigo intitulado "Viviendas de judíos y conversos en Galicia y el Norte de Portugal" (em espanhol) do antedito D. Emilio Fonseca Moretón, publicado no nº 27 do ANUARIO BRIGANTINO DE BETANZOS (2004).

D. Emilio Fonseca Moretón é arquiteto pola Escola Superior de Arquitetura de Madrid e arquiteto da Deputaçom de Ourense. Autor de vários trabalhos sobre a conservaçom do património e de investigaçom sobre a cidade de Ourense.

Este post foi redigido com base no texto e fotografias do antedito artigo, sendo traduzido por CAEIRO.

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