Maria José Ferro Tavares
Com o batismo forçado da minoria judaica e a expulsom dos mouros, deu-se a unificaçom religiosa do reino, segundo os princípios que viriam a vigorar no estado moderno: a religiom do príncipe é a religiom do reino.
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Após a expulsom dos Judeus os espaços ocupados pelas judiarias foram designados como Rua Nova na área galego-portuguesa 📷 Alhariz |
Os recém-batizados eram agora designados por «cristãos novos», apesar de a carta de 30 de maio ter proibido que fossem tratados «como gente distinta». Na nova realidade social encontrava-se ausente a onomástica judaica, substituída pola cristã, tal como desaparecera o espaço fechado da judiaria, agora designado por «Rua Nova» ou «Vila Nova».
Resignados exteriormente, os neófitos regressaram às suas antigas casas, aos seus bens e à sua profissom, avizinhando no espaço que, antes, fora exclusivamente judaico, com os cristãos velhos, novos moradores das casas abandonadas dos que conseguiram partir.
A vizinhança próxima era umha forma de compulsom à integraçom. Pretendia-se com ela umha mais rápida conversom dos antigos Judeus, mas também umha vigilância que lhes impedisse, no interior do lar, continuar a viver no judaísmo. Aqui os olhos atentos eram os dos criados, amas e serviçais cristão velhos, ou os escravos batizados. Alguns, cujo número é impossível determinar, com um anterior passado cortesão ou de pertença a umha distinta família judaica, polo facto de se terem convertido de livre vontade, foram nobilitados, outorgando-lhes antes D. Manuel umha carta de limpeza da mancha do nascimento. A nobilitaçom continuaria a ser concedida, ao longo do século XVI, quer como recompensa por feitos praticados na guerra de África ou na Índia, sendo umha das vias de entrada a concessom do título de cavaleiro numha das ordens militares. A estes, aos fidalgos de solar, aos cavaleiros e escudeiros da casa real nom lhes era aplicada, nem à sua família, a designaçom de cristãos novos.
Com a mesma preocupaçom de integraçom, surgiu a lei manuelina que proibia os antigos Judeus de se casarem entre si. Esta medida, que nom viria a resultar numha parte substancial da populaçom cristã nova, procurava promover o cruzamento de pessoas e bens dos dous grupos cristãos, de modo a caminhar para umha futura fusom dos dous corpos da sociedade e a umha maior assimilaçom do catolicismo, por parte do cônjuge ex-judeu, e a umha educaçom cristã dos descendentes, através da vigilância permanente da família cristã velha.
No entanto, durante o século XVI, este cruzamento só se veio a efetuar nos estratos sociais mais elevados que, por nobilitaçom efetiva e o esquecimento do seu passado judaico. Os estratos sociais médio e baixo da minoria cristã nova evitavam cruzar-se com os cristãos velhos, preferindo um isolacionismo, afirmativo do direito à diferença histórica.
Aos recém-batizados abriam-se-lhes, agora, os cargos municipais, o ensino universitário, as funções no aparelho da administraçom central ou nos tribunais, a carreira eclesiástica, além da já referida carreira das armas, no norte de África ou na Índia. Por isso, encontram-se como sacerdotes, cónegos das sés, monges e freiras. Frequentavam as universidades, como a de Coimbra ou a de Évora, a de Salamanca ou a de Lovaina, onde se bacharelavam, licenciavam e doutoravam em direito, teologia, medicina. No século XVII, a universidade de Coimbra era tida como um centro forte da docência cristã nova, tal como no século XVI suspeita semelhante caíra sobre a de Salamanca, no reino vizinho. O mesmo sucedeu com o exercício da medicina, umha vez que o corpo médico era, na generalidade, constituído por descendentes dos antigos Judeus.
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A assimilaçom dos cristãos novos foi umha teima após a conversom forçada |
A nível económico, os cristãos novos mantiveram-se nas tradicionais profissões: artesanato e comércio. A grande maioria pertencia ao grupo dos artesãos e dos pequenos e médios mercadores. Os mais ricos continuavam ligados à alta finança e ao trato internacional, com a Europa e os novos mundos, além de lhes continuar a pertenecer o crédito aos monarcas portugueses e espanhóis. Estavam, neste caso, os Mendes que, desde o início do século XVI, apareciam fortemente ligados a Antuérpia e à compra de mercadorias diversas, entre as quais, a prata para a Casa da Moeda de Lisboa.
É nesta conjuntura económica, alterada internamente polo estabelecimento do Tribunal do Santo Ofício que deve ser entendido o fenómeno da diáspora dos cristãos novos portugueses. De facto, a grande mobilidade destes, quer para o velho continente, quer para os novos mundos do Atlântico e do Índico, deve ser entendida, sob duas vertentes: o desejo, para uns, de voltar à fé ancestral e, para outros, o apelo dos interesses económicos que os fazia olhar para certas regiões da Europa e para os novos mundos, provenientes das descobertas, como lugares onde livremente podiam ser Judeus e enriquecer.
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As perseguições da Inquisiçom provocaram o êxodo dos cristãos novos |
Por isso, na Europa, os seus interesses viraram-se para Antuérpia onde D. Manuel criara uma feitoria, e para as cidades italianas, centros importantes do comércio mediterrânico central e oriental. No final de Quinhentos, perante a decadência daquela, o polo de interesse mudava-se para Amesterdão e também para Hamburgo. Neste interland de rotas comerciais terrestres e marítimas europeias ficavam as cidades francesas, como Lyon, Bordéus, ou, nos finais de Quinhentos e inícios de Seiscentos, La Rochelle e Baiona, como S. João da Luz.
A América, quer espanhola, quer portuguesa, desde cedo os interessou: os metais preciosos na primeira, as plantações e engenhos de açúcar na segunda a que nom foi estranho, neste caso, o resgate de escravos de Angola para o Brasil, praticado por sociedades comerciais familiares com assento em Lisboa e sucursais em S. Tomé e no Brasil.
O Oriente exerceu também umha grande e dupla atraçom sobre as famílias cristãs novas que, cedo, se instalaram na Índia, comerciando e defendendo o império português no Índico. No Industão, aos interesses económicos juntou-se a franca passagem para a ajuraçom, via Ormuz ou Golfo Pérsico, além da possibilidade de, longe, poder regressar ao convívio dos antigos familiares judeus, radicados em terras do Turco e à sua antiga religiom, dumha forma velada mas mais segura de que no reino. Noutros, a atraçom do Oriente levou-os a Malaca, à China e ao Japom.
Maria José Pimenta Ferro Tavares (Lisboa, 1945) é umha historiadora e professora portuguesa, especialista na história dos Judeus e dos cristãos novos em Portugal. Em 1998 foi a primeira reitora dumha universidade ou instituiçom de ensino superior em Portugal. As principais obras dela são "Os Judeus em Portugal no século XIV", Lisboa, Guimarães Editores (2000) e "Os Judeus em Portugal no século XV", Universidade Nova de Lisboa (1982-1984).
Fonte: Linhas de Força da História dos Judeus em Portugal UNED
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