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domingo, 20 de agosto de 2023

O PROCESSO DO CLÉRIGO GALEGO QUE QUIS TORNAR-SE JUDEU: JACINTO VASQUES ARAÚJO

O filme Amen de Costa Gavras (2002) examina a conexom entre o Vaticano e a Alemanha nazista, especialmente no que diz respeito ao extermínio dos Judeus. O protagonista K. Gerstein está horrorizado com a falta de resposta da hierarquia católica perante os avisos sobre as câmaras de gás. Apenas umha pessoa ouviu os seus alertas, o padre Riccardo Fontana (personagem fictício), um jovem padre jesuíta cujas iniciativas para tentar impedir a Shoah nom encontram eco nas altas autoridades estrangeiras ou religiosas. Desesperado, e em sinal de revolta contra a passividade da hierarquia católica, Riccardo Fontana parte para Auschwitz, onde encontra a morte na sequência da deportaçom dos Judeus de Roma. 

Padre Riccardo Fontana | Di Pèter

Nesta postagem da QJ abordamos o caso verdadeiramente bizarro do julgamento inquisitorial de Dom Jacinto Vasques Araújo, um clérigo galego que no século XVII quis tornar-se judeu em solidariedade com as vítimas judias da Inquisiçom espanhola.

Primeiros anos

Jacinto Vázquez Araújo nasceu por volta de 1650 em Santa Comba de Gargantós, freguesia do concelho de São Cibrão das Vinhas a 10 km da cidade de Ourense. Ele era filho do padre local, Domingo Vasques Araújo, e dumha rapariga solteira chamada Dominga Rodrigues. Nessa altura era frequente nom apenas os pais nom serem casados, mas que o progenitor dele fosse crego.

Jacinto era filho do licenciado Domingo Vasques Araújo, residente em Barbadás, filho pola sua vez de Gonçalo Vasques de Araújo, membro do Santo Ofício, e de Dominga Rodrigues, nascida em Arbo e vizinha da paróquia de Bentrazes (concelho de Barbadás) e nasceu antes de o seu pai ter sido ordenado sacerdote. A mãe dele foi casada com Tomé Seoane, com quem teve um outro filho, António Seoane.

Jacinto Vasques viveu os primeiros três anos com o pai en Santa Comba de Gargantós. Em 1653 foi enviado para ser criado polos avós maternos.

Aos quatorze anos voltou para a casa do pai e viveu com ele até os 24 ou 25 anos. Durante este tempo estudou gramática em Monforte de Lemos e, como tinha boa voz, também foi enviado a Santiago de Compostela para estudar música. 

Carreira religiosa em Espanha

Em 1674/1675 foi para a Andaluzia, onde começou a ganhar a vida cantando como contralto na igreja matriz de Écija (Sevilha) e como professor dos filhos de um advogado do Conselho Real, Melchor de Ayala y Córdova, que seguiu quando se mudou para Córdova. Nesta cidade foi ordenado sacerdote e tornou-se capelão da igreja de Santa Cruz. Logo a seguir foi para Sevilha a trabalhar como confessor do arcebispo Spínola, quem o destinou como padre de El Ronquillo (Sevilha). Depois foi destinado a Almadén de la Plata, onde esteve três anos, regressando a Écija, onde exerceu de pároco das freguesias de Santa Bárbara e da igreja matriz. Com este destino deu cabo da sua estada na Andaluzia, indo despois um tempo para Madrid e Alcalá de Henares.

Perseguições e antissemitismo

Nessa altura a perseguiçom da Inquisiçom era implacável contra os cristãos novos, tornando-se menos frequente a prática secreta do judaismo entre os descendentes daqueles judeus conversos que decidiram ficar. Além disso, grassava umha vaga de antissemitismo popular graças à obra e pregações de frades católicos.

Assim sendo, em 1674 popularizava-se 'Sentinela contra os Judeus', umha obra antissemita escrita polo frade Francisco de Torrejoncillo, na qual se enumeravam todas as acusações clássicas e os estereótipos cristãos contra os Judeus do antissemitismo popular tomados de livros anteriores. O autor afirmava a necessidade de manter os estatutos de "pureza de sangue" para impedir que os descendentes de judeus tivessem acesso à igrejas ou repartições públicas e fossem separados os cristãos novos dos cristãos velhos. Os conversos som qualificados de falsos cristãos porque o ódio ao cristianismo nom é apagado polo batismo, mas que se transmite pola linhagem. Torrejoncillo mesmo chega a sustentar a crença popular de os judeus terem 'caudas'.

Regresso à Galiza e confissom

Em 1686, aos 36 anos e logo do seu périplo por Espanha, Jacinto Vasques Araújo regressou à Galiza, onde foi nomeado cónego da catedral de Ourense graças a boas recomendações, atingindo umha posiçom proeminente no seio do clero local. Porém, qualquer cousa assombrava o espírito de Dom Jacinto Vasques Araújo quem decidira inesperadamente, numha altura indeterminada, converter-se ao judaismo.

Vasques Araújo incorporou-se em 1686 ao seu trabalho na Catedral de Ourense

No final de abril de 1687, durante umha visita aos altares depois das orações do entardecer, Jacinto Vasques achegou-se doutro colega catedralício, Jacinto André Filipes de Vilar, com o intuito de lhe comunicar questões de consciência. Todavia, Filipes disse-lhe que esperasse outra ocasiom e, na tarde de 5 de maio, foi ter com ele, ficando muito espantado pola confissom secreta do seu colega Vasques Araújo: que já nom acreditava na lei de Jesus Cristo e sim na de Moisés. No dia seguinte prosseguiram as suas confidências, entre as quais, que tinha 'solicitado' umha mulher. No dia 7 de maio o confidente soube que Vasques Araújo nom estava em Ourense e foi consultar o caso com o bispo, Diego Ros de Medrano, sem desvendar a identidade do seu colega.

Em 13 de maio Filipes de Vilar faz a denúncia escrita "com umha letra preciosa e com bastante clareza de expressom" acompanhada por alguns complementos e aclarações. No escrito Vasques Araújo é descrito como de trinta e oito anos, mais bem alto, magro, esbranquejado, com cara que parece de santo, "nariz longo e um pouco levantado", vestido com limpeza e com fasquia de grande humildade no seu porte. Nos acréscimos à denúncia refere que Jacinto Vasques andava quase sempre sozinho, se abstraia nas conversações, nom ligava ao que lhe diziam e que costumava “ficar muito tempo olhando a correnteza das águas do rio”. Na sua acusaçom, o denunciante insinua a alegada origem judaica de Jacinto por linha materna.

Com certeza, temendo as consequências das suas confidências e sentindo-se seguido de perto pola Inquisiçom, Jacinto Vasques Araújo decidiu fugir. Logo de estar em Barbadás, rumou para Madrid sozinho a pé, passando por locais da Galiza (nomeadamente Seixalvo, Alhariz, Ginço de Límia, Verim e Godinha), Reino de Leom (Póvoa de Seabra e Benavente) e Castela (Villardefrades, Tordesillas, Rueda, Medina, San Esteban, Labajos, Villacastín, El Espinar e El Escorial) até chegar a Carabanchel Alto, onde morava o seu meio irmão. Na cidade de Madrid hospedou-se no 'Mesón dos Segovianos' na rua do Carmen, ajudado polo referido irmão e outro parente.

O processo por judaizante

A 20 de junho de 1687 Jacinto Vasques Araújo, sob a acusaçom de judaizar e tentar aliciar "freguesas de bom ver", é detido por forças da Inquisiçom às 11h na paróquia do Bom Sucesso de Madrid. Dez dias depois, a 30 de junho, é levado perante os inquisidores do Tribunal de Toledo para celebrar a primeira audiência em que refere todos os dados sobre a sua vida e ascendência. Logo a seguir, a partir da denúncia de Filipes de Vilar, o fiscal redigiu a acusaçom.

No centro, a igreja do Bom Sucesso na Porta do Sol de Madrid

A 29 de julho de 1687 Jacinto Vasques realiza um depoimento voluntário perante o tribunal acusador em que declara ser praticante do judaísmo embora lhe custasse a vida. Como explicaçom, disse ter lido o referido livro 'Sentinela contra os Judeus', que lhe foi emprestado polo licenciado Ribera, um presbítero e capelão da catedral de Ourense. Vázquez Araújo usara-o para descobrir e praticar os ritos judaicos, pois mostrava um fraco conhecimento do judaismo. Os principais argumentos para apostatar alicerçavam-se nas dúvidas relativamente ao sacramento da eucaristia, a morte de Jesus Cristo e a vigência constante do decálogo cristão.

Além disso, alegou como prova "que em defesa desta lei de Moisés sacrificaram-se muitos homens queimados polo Santo Ofício da Inquisiçom e mulheres que por serem do sexo fraco e pusilânimes foram jogadas às chamas". Noutro trecho do depoimento declarou que, embora houvesse velhos cristãos na família dele, "este confidente quer ser um novo judeu". 

Os inquisidores lançaram investigações sobre os seus antecedentes familiares na procura de elementos judaizantes sem encontrar qualquer evidência da existência de conversos entre a sua ascendência. Polo contrario, depararam-se com que Jacinto era neto dum agente da Inquisiçom.

Estando preso em Toledo sofreu umha queda no cárcere, adoecendo gravemente. O frade enviado para o auxiliar, Lucas Álvarez de Toledo, julgou "um homem de imaginação sujeito a várias elucubrações". Perante este frade Jacinto Vasques mostrou arrependimento do declarado e a 13 de setembro de 1687 retratou-se do seu judaísmo.

A teor das contradições mostradas em várias audiências posteriores os juízes inquisidores duvidaram da sanidade do acusado e decidiram que fosse submetido a umha visita médica, certificando a sua eloquência tanto o doutor Bartolomé Díaz quanto o cirurgião Francisco de Guerrero. 

Para agravar mais a sua situaçom foram apresentadas denúncias do seu companheiro de cela, Luis Antonio de Vedmar, quem relatou que Jacinto observava o descanso sabático, dedicava jejuns judaicos aos mártires da Inquisiçom e pedia nas suas orações liberdade e piedade para o povo de Israel "espalhado por várias partes do mundo e perseguido dos cristãos e outras nações".

A 8 de outubro de 1688 foi submetido a tortura. Quando estava pronta umha sentença de condenaçom por adjuramento em forma de prisom perpétua logo de se ter novamente retratado, o guarda da prisom testemunhou que no cárcere ele começou a gritar que queria morrer consoante a Lei de Moisés, como ovelha sacrificada polos lobos. 

"Cena de tortura inquisitorial", de A. Magnasco, 1710. Kunsthistorisches Museum, Viena

Os dados registados na última publicaçom de testemunhas relativamente à conduta de Jacinto no cárcere até finais de 1688 mostram o seu estado de desespero.

Após umha contriçom final, os juizes decretaram a sentença do crego galego. Quando chegou a hora, desde que reconciliado, colocaram um sambenito (túnica penitencial) sobre ele e leram publicamente perante doze padres (seis seculares e seis religiosos) a sentença com a qual foi revogada a sua ordenaçom sacerdotal, os seus bens foram confiscados e ele foi condenado a prisom perpétua, além de cinco anos de galeras sem ordenado. O sambenito devia ser removido ao ser entregue às autoridades do cárcere real.

O processo chegava ao fim a 4 de dezembro de 1688, altura em que se produz o abjuramento assinado polo condenado.

Finalmente, o tribunal da Inquisiçom de Toledo ordenou que outro padre repetisse cada um dos mais de três mil batismos dados por Vázquez na sua vida logo de terem sido invalidados. 


A triste história de Jacinto Vasquez Araujo ficou registada na transcriçom do julgamento que foi trancada nos arquivos secretos da inquisiçom espanhola. No século XX o caso foi recolhido por Julio Caro Baroja em 'Los judíos en la España moderna y contemporánea' (1978) e por José Ramón Onega em 'Los Judíos en el Reino de Galicia' (1981). Embora nestas obras seja representado como o caso dum endoidecido, as teorias da conspiraçom antissemitas identificam Jacinto Vasques como um agente da infiltraçom judaica no seio da igreja católica. Porém, para o historiador Carlos Barros, professor da USC, o caso de Jacinto Vasques, bem como a personagem fictícia de Ricardo Fontana criada por Costa Gavras, é "um personagem extraordinario digno da nossa memória colectiva".

O processo pode-se consultar em PARES com o número de referência INQUISICIÓN, 187, Exp.4. (1687/1688).

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