António Manuel Ramos Pimenta de Castro*
Dedico este artigo à Tia Olívia Tabaco, possivelmente a última rezadeira judaica de Vilarinho dos Galegos (Mogadouro, Portugal), a quem vi acender as “candeias do Senhor”, às sextas-feiras à noite, com torcidas “rezadas”, na velha cozinha da sua modesta casa, “pintada” com as negras cores de muitos rigorosos invernos nordestinos e que me ensinou muitas tradições do seu povo e rezas ao seu Adonai. Dentro de pouco tempo, assim espero, penso publicar muito do que recolhi sobre as tradições e costumes deste nobre povo, para que nom desapareça, esta parte tam importante da nossa cultura, com o cerrar dos olhos da última rezadeira de Mogadouro. Tenho pola tia Olívia Tabaco um carinho muito especial, na verdade ela partilhou comigo aquilo que tinha de mais precioso, a memória do Seu Povo, a Tradiçom...Vi comovido, as lágrimas de saudade a escorrerem pola sua face quando me falava do seu tempo de mocidade, do tempo dos velhos marranos, rosto curtido por muitos invernos, mais parecia um velho pergaminho... Que Adonai esteja sempre contigo tia Olívia e quando fizeres a última viagem, finalmente para junto do resto do teu povo, do povo de Moisés, que acompanhem tantas luzes como aquelas que tu acendestes a ELE todas sextas-feiras à noite nas velhas candeias de azeite puro e com as torcidas rezadas, como quem desfia um rosário...
É com a maior alegria que registo um interesse crescente dos descendentes dos cristãos-novos de Trás-os-Montes pela procura e estudo das suas raizes familiares e históricas. Que diferença de há uns dez anos atrás! Há uma dezena de anos, aqui, poucos se assumiam como descendentes de judeus e a palavra “judeu” era interpretada como um insulto. Lembro-me do já longínquo ano de 1981 em que fui pola primeira vez, na companhia do meu saudoso tio Mário Augusto de Oliveira (também ele descendente de judeus e de Vilarinho dos Galegos), a Vilarinho para começar a recolher orações e outras tradições dos marranos. Apesar do meu tio ser de Vilarinho e ser conhecida a sua ascendência judaica, que dificuldade para as pessoas começarem a falar...Parecia que a horrenda Inquisiçom ainda estava viva e que os seus esbirros andavam à cata de vítimas para autos-de-fé! Foi preciso ir lá dezenas de vezes e ganhar muita confiança para começarem a falar. Depois de ganharem toda a confiança em mim, devo dizer que enchi quatro ou cinco cassetes que guardo religiosamente e que serám, a par com outras recolhas, a base do meu futuro trabalho.
Percorri a aldeia, mostraram-me onde se reuniam as rezadeiras, como colocavam as toalhas sobre a cabeça enquanto diziam as orações, que orações eram ditas ao benzer das torcidas para as “candeias do Senhor”, como era feito o pão ázimo (cozido entre duas telhas novas), como se benziam, os jejuns e as festas, a zona onde viviam os judeus, enfim abriram-me a sua alma...Mas não se pense que foi fácil...
Lembro-me, a título de exemplo, de dous episódios que registei: Estando a tia Olívia Tabaco (todos em Vilarinho dos Galegos têm alcunhas) a ensinar-me algumas das suas tradições, eis que aparece, ao cimo da canelha, um homem que vinha do amanho das terras, entom a tia Olívia colocou o dedo na boca, em sinal de silêncio, e começou a falar das suas doenças. Quando o homem desapareceu ela disse-me —“Este nom é da nossa raça, é “chuço”(1).
O outro episódio foi o seguinte: Tendo eu ido visitar uma senhora encamada (Dona Luisinha, na imagem) que me disseram saber muitas orações, a sua empregada (Dona Maria), que estava acompanhada de outra senhora, desatou a fazer-me sinais dizendo-me: “Agora já ninguém sabe nada, morreu tudo. As que sabiam morreram, a Patata e outras antigas é que sabiam, mas já morreram todas, agora ninguém sabe nada”. No final da conversa com a senhora encamada, que nada me disse, a empregada, sozinha, acompanhou-me até a porta e disse-me: “Apareça daqui a meia hora na casa da tia Olívia que eu digo-lhe algumas orações”. Assim foi: a dita senhora disse-me uma boa dúzia de orações e muito me contou dos rituais e tradições do seu povo.
Hoje, as pessoas já estám mais abertas, muitas já nom têm vergonha de afirmarem publicamente que som descendentes de judeus. Já começam a ter orgulho de afirmarem publicamente que som descendentes de judeus. Penso, com algumha vaidade, que o meu livro “Os Judeus na Obra de Trindade Coelho” contribuiu muito para isto. O seu lançamento público excedeu as melhores expectativas, o salom nobre da Câmara Municipal de Mogadouro foi pequeno para tanta gente e largas dezenas tiveram mesmo de ficar no corredor. Em poucos meses, o livro esgotou. No seu lançamento os oradores (António Júlio Andrade, Dr. Álvaro Leonardo Teixeira, Professora Maria de Jesus Sanches e Dr. João Guerra) foram brilhantes, cativaram a atenta assistência. Contodo gostaria de destacar duas pessoas que se encontravam presentes e que impressionaram a assistência pelos seus testemunhos pessoais: os meus amigos Dr. João Guerra e o Elias Nunes. O Dr. João Guerra porque é transmontano, de Freixo de Espada-à-Cinta, descendente de judeus, voltou novamente à religiom e tradições de seus avoengos. Retomou novamente o fio que a horrível Inquisiçom tentou, em vão, cortar. Nom teve complexos, magistrado, nom hesitou em responder o chamamento do sangue. O Elias Nunes, comerciante, de Belmonte (atualmente presidente da Comunidade Judaica de Belmonte), era o representante vivo, felizmente muito vivo, dum povo mártir, que sofreu na pele os horrores da Inquisiçom e a discriminaçom da estupidez, da intolerância e da xenofobia mas que a tudo isso resistiu e que contra tudo e contra quase todos manteve a tradiçom, a integridade e a fé do seu povo. As pessoas viram alí, bem diante dos seus olhos, um jovem, com a sua esposa, que se afirmava Judeu, que nom tinha vergonha, antes orgulho, de nas suas veias correr o sangue de cristãos-novos, de marranos que muito sofreram mas que continuava vivo, de cabeça bem levantada. As pessoas estavam habituadas a verem só estudos sobre marranos como cousa do passado. Tudo estaria perdido...Tudo estaria já encoberto pola poeira do tempo...Só uma vaga recordaçom dum passado já longínquo...
De repente viram que nom, que ali estava nom um papel amarelecido polo tempo, mas o representante vivo dumha comunidade viva, como o foram outrora as de Azinhoso, Vilarinho dos Galegos, Argozelo, Carção, Mogadouro... Isso mexeu com eles, tocou-lhes fundo da alma, mexeu na sua memória colectiva... De repente, viram que aquilo que as suas avós e seus pais lhes ensinaram tinha sentido, correspondia a uma cultura, estava-lhes no sangue... Entom comecei a receber cartas, muitas cartas, de Argozelo, de Carção, de Macedo de Cavaleiros, de todo o nordeste...De repente as pessoas procuravam-me na rua, em minha casa... Lembro-me assim de repente de duas pessoas que me procuraram e me disseram o seguinte: “Sabe, o meu tio que tinha um sóto em Mogadouro dizia-me que nunca se devia varrer o sóto no Sábado, dava azar..., sempre achei que ele “não batia bem da bola”, agora sei porque é que ele, que era de Argozelo, me dizia isso..”, ou aquele habitante do Azinhoso que fez questom em me mostrar onde eram os “pelames” no Azinhoso... Tinham a necessidade de me dar o seu testemunho, de me dizer que também eles tinham sangue...judeu! Sei que procuram as suas raízes, a sua memória.
(1) “chuço” é, em Vilarinho dos Galegos um cristão-velho, que não é descendente de judeus.
*António Manuel Ramos Pimenta de Castro é professor, historiador, autor do livro “Os Judeus na Obra de Trindade Coelho” (Mogadouro, 1998)
Texto tirado de GERAÇÕES/BRASIL, o Boletim da Sociedade Genealógica Judaica do Brasil. Volume 9. Maio 2000.
Creio que a fotografia com o meu nome foi publicada sem autorização. A fotografia não é minha, mas sim do fotógrafo Frederic Brenner, que retem os direitos de autor. Foi publicada por mim com a sua autorização.
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