No espaço intra-muros de muitas cidades galegas e portuguesas impera a simbologia cruciforme, fazendo-se acompanhar, por vezes, de datas e anagramas religiosos que merecem especial referência polo seu valor patrimonial e estético.
Sem avançar com umha explicaçom única para a existência deste património, apontam-se alguns factos históricos que podem conduzir à sua compreensom.
Sabe-se que muitas vilas e cidades galego-portuguesas acolheram comunidades judaicas durante toda a Idade Média. Estabelecida a Santa Inquisiçom durante o século XVI, cedo se iniciaram as perseguições sistemáticas que visavam libertar esses territórios dos Judeus e das suas crenças e práticas. Foi neste contexto de perseguições que os praticantes da Lei Velha ou judaismo foram forçados à conversom ou à fuga.
Aos convertidos ou conversos é atribuído, por vezes, o nome de cristãos-novos, os quais, para demonstrar a sua adesom ao novo credo podem ter marcado nas ombreiras das suas casas símbolos cruciformes. Outros, recusando-se à conversom, optaram pola fuga, abandonando as suas casas, posteriormente, ocupadas por famílias cristãs que, através da marcaçom de cruciformes, podem ter procurado a purificaçom e a sacralizaçom dum espaço, anteriormente, habitado por Judeus. Refira-se ainda que a Idade Moderna foi um período de exacerbaçom da fé católica, o que poderá ter conduzido os crentes a exteriorizar a sua fé através da gravaçom da cruz entendida como expressom paradigmática da crença Deus único, Cristo crucificado.
Trata-se de marcas abertas na pedra que, tal como os cruciformes, possuem umha poderosa carga simbólica. Referimo-nos agora aos rasgos longitudinais e à marca na Mezuzah, a qual releva, exclusivamente das práticas religiosas hebraico/judaicas, cumprindo a obrigaçom religiosa de marcar nas portas e portões das casas o testemunho simbólico da adesom à religiom judaica.
Nestas cidades a dureza do granito foi transformada em obras de arte polas mãos experientes daqueles que souberam perpetuar a História e as Estórias que hoje em dia som memória em pedra viva.
OS CRUCIFORMES
A cruz é um símbolo mágico/religioso cuja emergência no tempo é difícil de apontar com rigor mas que, foi apropriada por diversas religiões nom monoteístas e monoteístas. O seu uso é anterior a Jesus Cristo e possui, portanto, um significado que ultrapassa a religiom cristã. Ainda assim, parece nom haver dúvida de que foi o Cristianismo (após o século IV e devido ao sonho premonitório do Imperador romano Constantino), que se apoderou da Cruz como símbolo identificador da morte de Cristo crucificado. Mas, mais do que um símbolo representativo do ponto de vista religioso e católico, a marcaçom dumha cruz possui foros de prática quase mágica, granjeando para pessoas, espaços e artefactos, a proteçom do mundo sobrenatural.
Caminha. Casa do séc. XV e XVI com "cruz de converso" tipo Menorah. |
É possível encontrar este tipo de marcas tanto em espaços rurais, como urbanos, em imóveis de arquitetura civil (de uso habitacional e artesanal), religiosa e militar.
Tui. Cruciformes numha casa do século XV-XVI. |
Ainda que, registando-se estas marcas fora dos espaços urbanos, a existência de cruciformes gravados em ombreiras de porta e fachadas de edifícios parece ser um fenómeno, maioritariamente, urbano. Regista-se aqui, preferencialmente, nas zonas mais antigas e de tradiçom medieval das povoações. Contodo, o fenómeno nom é característica exclusiva de imóveis datáveis de época medieval, identificando-se também cruzes gravadas em ombreiras de porta em edifícios cuja traça arquitetónica remete a sua construçom para os séculos XVI, XVII e XVIII ou até para o século XIX. Neste contexto a gravaçom dumha cruz pode ser entendida na perspectiva vasta e genérica de ato de sacralizaçom dum espaço tido como herético, em consequência dumha ocupaçom anterior por membros dum credo religioso minoritário, como foram os judeus. Pode também ser interpretada como resultando da vontade ou da necessidade de mostrar objetivamente a adesom a um credo religioso.
MARCAS NA MEZUZAH
O texto do Shemá Israel é umha das orações fundamentais do povo judaico. Constitui umha afirmaçom do culto monoteísta, que manda recordá-lo a cada momento da vida e procura evitar o seu esquecimento por diversas formas, nomeadamente, polo dever do crente em escrevê-lo nas ombreiras das portas da sua casa. A obrigaçom de marcar na Mezuzah, palavra hebraica para ombreira de porta, a adesom ao culto monoteísta judaico, pode explicar a identificaçom de concavidades de cerca de 10 cm de altura e cerca de 2 cm de largura e outros tantos de profundidade nas ombreiras das portas, geralmente, na jamba direita a cerca de 2/3 de altura a partir da soleira da porta. Estas concavidades destinavam-se a abrigar, completamente ou nom, um estojo que continha no seu interior um pequeno rolo de pergaminho em que se escreviam de forma ritual, as palavras de Dt 6, 4-9; 11, 13-21, excertos de dous livros do Antigo Testamento. Para denominar este artefacto religioso, utiliza-se comummente a designaçom de Mezuzah.
Guarda. Casa do séc. XVIII com "cruz de converso" no lugar da Mezuzah |
A Mezuzah continua hoje a apresentar-se, entre outros artefactos, como um poderoso símbolo identificativo e muito comum numha casa judaica, manifestando-se nom só, como o elemento material que lembra a cada família as características do seu Deus mas, simbolizando também a proteçom divida dispensada por deus à família e casa judaica.
Ribadávia. Concavidade polida na Porta Nova da muralha. |
OS RASGOS LONGITUDINAIS
Este género de marcas é constituído por rasgos abertos na pedra, com umha orientaçom, tendencialmente vertical, podendo atingir umha profundidade de 5 cm e um comprimento que pode oscilar entre os 10 e os 50 cm. Apresentam-se isoladamente (um único rasgo), ou num conjunto de vários rasgos. Quando se registam nas ombreiras das portas parece nom existir preferência pola direita ou pola esquerda, sendo o mais comum registarem-se em ambas. Verifica-se ainda que som identificáveis tanto em imóveis que tiveram um uso habitacional e artesanal, como em edifícios de arquitetura religiosa e militar.
Alhariz. Antiga porta com "cruz de converso" na esquerda e inscriçom no lintel. |
Para a explicaçom deste fenómeno tem sido levantada a hipótese das necessidades do trabalho artesanal e nalgumhas povoações som interpretados polos habitantes como resultando da necessidade dos sapateiros afiarem as suas sovelas. Noutras localidades, som explicados como consequência do afiar das espadas dos soldados. Contodo, outras abordagens devem ser tidas em linha de conta, dado o tipo de imóveis em que estes se podem identificar. Assim sendo, por detrás desta prática pode estar um ritual de carácter mágico/religioso continuador da velha prática hebraico/judaica de marcar nas ombreiras das portas a adesom a um culto e de, paralelamente, recolher para o interior do espaço construído algumha forma de proteçom divina.
URBANISMO E A ARQUITETURA NO CONTEXTO JUDAICO
Embora as judiarias nom apresentem grandes diferenças de traçado urbano relativamente ao restante núcleo medieval e espaço intra-muralhas, encontra-se, no entanto, características que o identificam e o individualizam das restantes áreas dos centros históricos.
A implantaçom dos edifícios e o traçado dos arruamentos apresentam-se com umha estrutura irregular e descontínua ladeada por umha malha medieval com um traçado mais ortogonal e racionalista.
Verifica-se umha grande compactaçom urbana, com construçom em banda. As ruas ganham um traçado irregular, sem grandes pontos de vista onde as fachadas dos imóveis criam movimento e ondulaçom entre os seus planos.
No campo da arquitetura, pode-se constatar que os imóveis possuem umha planta de base trapezoidal onde impera a sobriedade, a robustez, a escala modesta, o recorte das portas e janelas por molduras rectilíneas e o predomínio das paredes em prol dos vãos, entre os quais nom existe relaçom. Som na maioria dum ou dous pisos, em alvenaria de granito e vãos assimétricos que transmitem maior dinamismo. A sua ocupaçom interior distribui-se: habitaçom no andar superior e comércio no rés de chão.
A maioria das casas possui portas com ombreiras e tosas biseladas de configuraçom retilínea ou em abóbodas de berço. No respeitante aos vãos das janelas estes assumem umha dimensom pequena ou média e apresentam na maioria das vezes entre si decorações diferentes, com irregularidades, sem repetitividade e sem alinhamentos na sua distribuiçom, em termos de fachada.
Sabugal. Porta biselada com concavidade numha casa do séc. XV. |
Estes imóveis possuem umha arquitetura orgânica onde a assimetria, a dissonância e a tridimensionalidade antiperspetiva é preponderante e indiscutível.
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