segunda-feira, 12 de agosto de 2013

O BURRINHO DO MESSIAS

Por Uri Avnery



Se é para vivermos juntos em um único Estado, nom faz sentido lutar contra os assentamentos.


 “A soluçom de dous estados está morta!”




Este mantra é tam repetido ultimamente, e por tantos comentaristas com autoridade, que virou umha moda intelectual. Parece ser verdadeiro, mas nom é. Ele faz-me lembrar umha das frases mais citadas de Mark Twain: “A notícia da minha morte foi um exagero.”

Hoje, defender a soluçom dos dous estados, um israelita, outro, palestiniano, significa que o senhor é antiquado, fora de moda, cheira a mofo, é quase um fóssil.  Erguer a bandeira da “soluçom dum único Estado” quer dizer que o senhor é jovem, olha para a frente, é maneiro.

Isso apenas prova que as ideias se movem em círculos. Quando declaramos, logo no início de 1949, assim que terminou a primeira guerra contra os países árabes, que a única saída para a nova situaçom era o estabelecimento dum Estado palestiniano lado a lado com Israel, a “soluçom dum  Estado único”  já estava caduca.

A ideia dum “Estado binacional” andou em voga nos anos 1930. Os seus principais defensores eram intelectuais bem intencionados, muitos deles luminares da nova Universidade Hebraica, como Judah Leon Magnes e Martin Buber. Recebiam apoio do movimento kibutziano Hashomer Hatzair, o qual mais tarde virou o partido Mapam.

Mas, na verdade, jamais ganhou força. Os árabes a consideravam uma artimanha dos judeus. O binacionalismo apoiava-se no princípio da paridade entre as duas populações na Palestina –metade judia, metade árabe.  Mas, como naquele tempo os judeus eram muito  menos do que 50% da populaçom, havia razom nas suspeitas dos árabes.

Do lado dos judeus, a proposta soava ridícula. A essência mesma do sionismo era  criar um Estado no qual os judeus fossem senhores de seu destino, preferencialmente em toda a Palestina. Na época, nom se chamava “soluçom dum Estado” porque já havia um Estado único ‒o Estado da Palestina, regido polo Mandato britânico. A “soluçom” foi chamada de  “Estado binacional” e morreu, sem choro nem vela,  na guerra de 1948.

Entom, o que causou a milagrosa ressurreiçom desta ideia?

Critério


Nom foi o aparecimento de nengum novo amor entre os dous povos. Isso seria maravilhoso e até mesmo um milagre. Se israelitas e palestinianos houvessem descoberto os seus valores comuns, as raízes comuns das suas histórias e línguas, o seu amor comum por este país, claro que seria absolutamente esplêndido!

No entanto, infelizmente, a renovada “soluçom dum Estado único” nom nasceu dumha concepçom imaculada. O seu pai é a ocupaçom, a sua mãe, o desespero.

A ocupaçom já criou um Estado único de facto –um Estado perverso de opressom e brutalidade, no qual metade da populaçom, ou um pouco menos,  priva a outra metade de quase todos os seus direitos– humanos, económicos e políticos.  Proliferam os assentamentos judaicos, e a cada dia sobrevêm novas narrativas de desgraças.

Gente boa de ambos os lados perdeu a esperança.  Mas a desesperança nom conduz à açom. Ao invés, estimula a resignaçom. Voltemos ao ponto de partida: “A soluçom de dous estados está morta!”  Como pode? Quem disse? E qual critério científico serviu para atestar o óbito?

Dum modo geral, a expansom dos assentamentos é apontada como o sinal da morte. Nos anos 1980, o respeitado historiador israelita Meron Benvenisti declarou que a situaçom tornara-se “irreversível”.  Na época, nom chegavam a 100 mil os colonos nos territórios ocupados (tirando Jerusalém Oriental, que é comumente considerada umha questom à parte).  Agora, dizem que som 300 mil, mas quem os está contando?  Quantos colonos marcam a irreversibilidade? Cem, trezentos, quinhentos, oitocentos mil?

A história do mundo é um poço de reversibilidades. Impérios crescem e decaem.  Culturas desenvolvem-se e fenecem.  O mesmo se dá com os modelos económicos e sociais. Somente a morte é irreversível.

Podemos imaginar umha dezena de fórmulas diferentes para resolver o problema dos assentamentos, desde a remoçom forçada à troca de territórios e à cidadania palestina. Quem poderia imaginar que os assentamentos no norte do Sinai seriam removidos com facilidade? Ou que o mesmo acabaria por se dar com os da Faixa de Gaza?

Ao final, haverá provavelmente uma mistura de fórmulas, de acordo com as circunstâncias. Todas as questões hercúleas do conflito podem ser resolvidas. O problema verdadeiro é a vontade política.

África do Sul


Os defensores da fórmula dum único Estado gostam de se basear na experiência sul-africana.  Para eles, Israel é um Estado do apartheid, tal qual a antiga África do Sul.  Daí, buscam uma soluçom assemelhada.

A situaçom nos territórios ocupados e, em parte, em Israel mesmo, de fato guarda uma forte semelhança com o regime do apartheid. Dá para citar o exemplo do apartheid no debate político, mas, na realidade, entre os dous países as diferenças som muito grandes.

David Ben-Gurion deu, certa vez, aos líderes sul-africanos um conselho: recorram à partilha.  Concentrem a populaçom branca no sul, na regiom do Cabo, e cedam aos negros o resto do país.  Ambas as partes  rejeitaram furiosamente a ideia, porque acreditavam –ambas– num país único e unido. Dum modo geral, falavam as mesmas línguas, seguiam a mesma religiom, estavam integrados na mesma economia. A briga devia-se à relaçom senhor-escravo, com umha pequena minoria dominando uma maciça maioria.

Nada comparável ao que ocorre em nosso país. Aqui temos duas nações diferentes, duas populações de tamanhos praticamente iguais, duas línguas, duas religiões (ou melhor, três), duas culturas, duas economias totalmente diversas.

Uma proposiçom falsa leva a falsas conclusões.  Umha é que Israel, à semelhança da África do Sul do apartheid, pode ser posto de joelhos por um boicote internacional.  Mesmo no caso da África do Sul, isso é umha arrogante ilusom imperialista. Nom foi o boicote, apesar de moral e importante, que fez o serviço.  Foram os próprios africanos, com o apoio de alguns idealistas brancos locais, que mudaram o regime com seus corajosos levantes e greves. Sou um otimista e espero que, no fim do túnel, israelitas judeus e árabes palestinianos constituam nações irmãs, umha ao lado da outra, vivendo em harmonia.  Mas, para tanto, deverá haver um período de vida pacífica em dous estados vizinhos, com a expectativa de fronteiras abertas.

A única soluçom


As pessoas que hoje falam na “soluçom dum Estado único” som idealistas. Mas causam um grande dano. E nom apenas porque elas afastam a si e as outras da luta pola única soluçom que se mostra realista. Se é para vivermos juntos num único Estado, nom faz sentido lutar contra os assentamentos. Se Haifa e Ramala ficarem num mesmo Estado, que diferença faz um assentamento próximo a Haifa ou um próximo a Ramala? No entanto, a luta contra os assentamentos é absolutamente essencial, é o principal campo de batalha na luta pola paz.

Com efeito, a soluçom dum único Estado tornou-se o objetivo comum tanto da extrema direita sionista como da extrema esquerda antissionista. E como a direita é incomparavelmente mais forte, a esquerda é que está ajudando a direita, e nom o contrário.

Em teoria, é assim que funciona. Os direitistas partidários do Estado único acreditam que  estám somente preparando o terreno para o seu futuro paraíso. A direita está unificando o país e pondo um fim à possibilidade de se criar um Estado palestiniano independente. Vam submeter os palestinos a todos os horrores do apartheid e mais alguns -lembremos que os racistas sul-africanos nom tinham a intençom de deslocar e tomar o lugar dos negros, mas, sim, a de segregá-los. Até o momento, talvez em poucas décadas ou meio século, em que o mundo obrigará o Grande Israel a conceder plenos direitos aos palestinianos, e Israel tornar-se-á a Palestina.

De acordo com essa teoria ultraesquerdista, a direita, que está criando o Estado único, racista, é, na realidade, o burrinho do Messias, o lendário animal em cujo lombo o Messias chegará triunfante. 

Uma bela teoria. Mas quem garante que isso efetivamente acontecerá?  E antes que se chegue ao estágio final, o que se vai passar com o povo palestiniano? Quem é que vai obrigar os dirigentes do Grande Israel a aceitar os ditames da opiniom pública mundial? 

Se hoje Israel se recusa a se curvar perante a opiniom do mundo inteiro e a permitir que os palestinianos tenham o seu próprio Estado em 28% da Palestina histórica, por que cederia no futuro e desmontaria definitivamente a sua  estrutura?

Quem ousaria ter certezas sobre um processo que durará uns cinquenta anos (ou talvez mais)? Quais mudanças ocorrerám no mundo nesse meio tempo?  Que  guerras e outras catástrofes desviarám as mentes do mundo da “questom palestiniana”?

Dá para jogar com  o destino dumha naçom baseado numha teoria tam forçada quanto esta?

Supondo-se, por um momento, que a soluçom dum único Estado realmente venha a se apresentar, como é que funcionaria?

Judeus israelitas e árabes palestinianos servirám no mesmo exército, pagarám os mesmos impostos, obedecerám às mesmas leis, militarám lado a lado nos mesmos partidos políticos?  Haverá relações sociais entre eles?  Ou o Estado se afundará numha guerra civil interminável?

Outros povos descobriram ser impossível conviver num mesmo Estado. Tomemos vários exemplos: Uniom Soviética, Jugoslávia, Sérvia, Tchecoslováquia, Chipre, Sudám.  Os escoceses querem separar-se do Reino Unido; bascos e catalães, da Espanha. Os franceses no Canadá e os flamengos na Bélgica sentem-se desconfortáveis. Até onde sei, em nengumha parte mundo dous povos diferentes concordaram em manter um Estado unificado por décadas.

Nom. A soluçom de dous estados nom está morta. Nom pode morrer, porque é a única que existe.

O desespero pode ser conveniente e tentador. Mas nom é umha soluçom.

* Traduzido do site do Gush Shalom por Renato Mayer.

Documento tirado da ASA (Associação Scholem Aleichem)

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