Primeira noite de Rosh Hashanah num ano em que todos os dias são 7 de Outubro. O rabi fez uma anedota acerca de um padre. Gostava de a recordar, sei que ri como todos, mas a piada diluiu-se nos meus pensamentos num salão cheio e mergulhado numa sinfonia de sons entre as orações e canções do rabi, as conversas ao meu lado entre quem não se via há muito, os gritinhos das crianças a rodopiarem por entre os nossos joelhos, as mãos a segurar os livros, os olhos de um homem que passou por mim, duas pessoas de mão dada durante toda a cerimónia, a rapariga belíssima de ar grave com o cabelo a escorrer em cascata negra.
Os nossos passos levam-nos até Habima Square onde paramos para jantar. O calor envolve-nos na esplanada rodeada pelos edifícios do Teatro Nacional e da Orquestra Filarmónica de Israel. Enquanto bebemos um vinho branco e aguardamos a refeição, pessoas a carregar bandeiras passam pela praça a caminho da manifestação, crianças correm à volta da fonte, ouvem-se grilos. Conto a N. a minha viagem ao sul, ao pinhal do massacre, ao cemitério dos carros, a noite passada no kibbutz. Sa'ar é uma comunidade religiosa, sobreviveu. Todos os kibbutzim religiosos sobreviveram, os seculares foram arrasados. Há quem veja neste evento um sinal, outros dizem que se deve apenas à questão das comunidades religiosas serem fechadas, portões e guardas, segurança mais apertada. A única certeza é que foi assim que aconteceu.
Si vis pacem, para bellum. Se queres a paz, prepara-te a guerra. Frase de Flavio Vegecio, escritor do Império Romano no século IV e figura próxima do Imperador, que expressa a ideia que só uma sociedade forte encontra-se menos susceptível de ser atacada pelos seus inimigos. A frase de Vegecio provem da sua obra Epitoma Rei Militaris, Compêndio Militar, um texto que sobreviveu na sua versão integral até aos nossos tempos, e assim ainda podemos ler – 'A vitória na guerra não depende completamente do número ou do simples valor; somente a destreza e a disciplina a assegurarão. Podemos confirmar que os romanos deveram a conquista do mundo a nenhuma outra causa do que o contínuo treino militar, a exacta observância da disciplina nos seus acampamentos e o perseverante cultivo das outras artes da guerra'.
N., que cresceu na comunidade ortodoxa, entre a Europa e Israel, que estudou e foi preparada para casar com um rabi, acabou por sair da comunidade e viver uma década enquanto secular. Agora prepara o regresso. Diz-me que tudo estava escrito e todos o esperavam – um tempo que divide, os muitos destinados a morrer, os que vão partir e os outros na vasta diáspora pela terra que vão sentir a urgência de regressar. Regressar a casa mesmo que pisem a terra pela primeira vez. O meu tempo parou, embora tudo ao redor continuasse a fluir, a terra continuou o seu movimento, o empregado passou com uma bandeja com vinho e copos, e pensei nas dezenas, centenas de pessoas, serão milhares, que conheci e soube no último ano que venderam tudo, largaram empregos e projectos de vida, meteram tudo em malas, as crianças às cavalitas, e regressaram a casa, a casa em guerra. Que estou também eu a fazer nesta praça e nesta cidade que já chamo de casa depois de todas as guerras que travei?
Entramos na segunda noite de Rosh Hashanah no ano judaico 5785, a comunidade muçulmana vive o ano 1446. Cada povo comporta-se de acordo, um galgou séculos em 80 anos, o outro continua a batalhar nas trevas. Em Rosh Hashanah, onde está escrito e em Yom Kippur será selado, quantos passarão da terra e quantos serão criados. Quem viverá e quem morrerá. Quem morrerá no tempo predestinado e quem morrerá antes do tempo. Quem pela água e quem pelo fogo, quem pela espada, quem pela fera, quem pela fome, quem pela sede, quem pela tempestade, quem pela peste, quem pelo estrangulamento e quem pelo apedrejamento. Quem descansará e quem vagueará. Quem viverá em harmonia e quem será atormentado. Quem desfrutará de tranquilidade e quem sofrerá. Quem será empobrecido e quem será enriquecido. Quem será degradado e quem será exaltado.
E quem regressará, por fim, a casa.
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