sexta-feira, 30 de maio de 2014

JUDEUS E JUDAIZANTES NA HISTÓRIA DA GALIZA

Prof. Carlos Barros
Historiador da Universidade de Santiago de Compostela

A ocupaçom árabe do século VIII durou 25 anos na Galiza. Houve logo imigraçom desde Al-Andalus para o Reino da Galiza, durante os séculos da Reconquista, mas esta influência muçulmana nom se pode comparar à presença ininterrupta dumha minoria de Judeus ao longo de oitocentos anos, quando menos entre os séculos X e XVIII, públicos durante a Idade Média, mais ou menos clandestinos durante a Idade Moderna. Judeus polo regular nascidos na Galiza, mas também galegos de adopçom na procura de refúgio, fugindo das perseguições árabes (séculos XII-XIII) ou dos inquisidores portugueses (desde finais século XVI).

O objetivo principal desta exposiçom permanente** é recuperarmos a história dos Judeus da Galiza como memória viva, para sabermos mais de nós próprios, para sabermos mais dumha multisecular experiência de convivência frustrada polo Estado moderno e a Inquisiçom. A tolerância entre judeus e cristãos na Galiza medieval como factor distintivo da história do povo galego, tem um valor igualitário, democrático e multicultural, que é preciso relembrar no presente e reivindicar no futuro.

Os primeiros Judeus

Temos evidências de Judeus no reino medieval da Galiza desde os primeiros momentos do repovoamento cristão na Alta Idade Média, primeiro no campo e depois nos pequenos burgos que se formaran na altura do ano 1000, do norte (necrópole judaica da Corunha) até o sul de Ourense [província] e de Portugal, a parte do amplo Reino da Galiza, e mesmo do Reino de Leom, com maior presença judaica nos séculos X-XI, por causa da política repovoadora da nobreza laica e eclesiástica galega, com o apoio da monarquia, que nom diferenciava entre religiões e etnias.

As terras de Cela Nova, entre os rios Minho e Lima, mesmo além, porque as propriedades do mosteiro chegavam até Coimbra, som o melhor paradigma peninsular de convivência rural das “três culturas”, cristãos, mouros e judeus, na Alta Idade Média, o que se reflecte na onomástica, pois abundam os Abrahám, Daniel, Isaías, Moisés, Saul, David, Salomom..., bem como nomes árabes: Habze, Abdella, Cidi ou Muzalha. Foram muçulmanos, convertidos ou sem converter, os que construíram o único resto que fica do mosteiro do século X: a capela de San Miguel de Cela Nova, mostra sobranceira da arte islâmica na Galiza.

Cabe esclarecer, contudo, que os judeus e mudéjares da Galiza do sul trabalhavam entom na sua maioria em atividades agrícolas, como servos ou como homens livres, que incluíam o cultivo do vinho. Os freires de Cela Nova herdam muito cedo, no ano 950, da família aristocrática do seu fundador São Rosendo, fincas trabalhadas por judeus viticultores, perto de Coimbra. Este labor vitivinícola ocupará a parte principal das terras de Cela Nova, que chegavam até as portas de Ribadávia e Ourense, nas ribeiras do Ávia e do Minho; portanto é muito provável que também no Ribeiro os judeus e os mouros agricultores trabalhassem o vinho.

Os Judeus da Galiza alto medieval dedicam-se também ao comércio de teias de seda, que chegavam à Galiza através da rota jacobeia, protegidos pola aristocracia local ligada aos reis leoneses. Temos o exemplo nos mercadores judeus, associados ao nobre galego-português Mendo Gonçalves, assaltados em terras de Cela Nova, no ano de 1044, por um cabaleiro malfeitor, o que provocou umha luta de bandos nobiliários resolvida, em 1047, em prol dos judeus e do seu nobre defensor.

Pacto de convívio

Nos séculos XII e XIII criam-se a maior parte das cidades medievais galegas. Os vassalos de Cela Nova fogem daquela para a Alhariz, Ribadávia e Ourense: com certeza os judeus mercadores o fizeram anteriormente. Constituem-se nas novas urbes comunidades judaicas que começam a ter problemas com a maioria cristã nos finais do século XIII. A modélica resoluçom, através do diálogo, do conflito interétnico em Allariz ilustra o por que na Galiza medieval o antissemitismo popular e o anticristianismo judaico nom terminaram em massacres, como noutros lugares ao longo da Idade Média.

Em 20 de maio de 1289 o Concelho de Allariz, estando presentes o representante do Rei e os párocos da vila, chegam a um acordo com o Judeu Mor, Isaac Ismael, para regular a convivência, quebrada polos agravos dos judeus faziam troça de Jesus e da Virgem Maria nas procissões cristãs, e dos próprios cristãos que prendiam e molestavam os judeus nas suas “rogas e festas”. Pactuam respeitar-se mutuamente as festas religiosas de cada comunidade, bem como viver em harmonia cada umha delas na sua parte da vila, confirmando a autonomia judicial da alfama, e compartindo as portas da cidade muralhada para a passagem de mercadorias e alimentos cara à Judiaria que estava naquele momento fora dos muros, nom longe das freiras de Santa Clara, às quais os judeus cedem, segundo este convénio, terra para fazer o seu cemitério. Favor que o pároco de Sam Estevo “devolveu” em 1487 facilitando terreno para que a alfama pudesse alargar o cemitério judaico. Em 1488, quatro anos antes da expulsom, Alhariz é ainda terra de tolerância para os judeus, porque o ourensão Mosé Péres, cobrador dos impostos reais, traslada para lá a sua morada para evitar o afastamento obrigado na Rua Nova que, desde 1480, os concelhos galegos obedeciam mas nom cumpriam...

Os Judeus de Ribadavia

A perda da documentaçom municipal de Ribadávia faz com que nom tenhamos notícias certas da sua Judiaria até 1386. Damos por feito que a comunidade judaica de Ribadávia se formou nos séculos XII e XIII como nas restantes urbes medievais galegas e peninsulares, beneficiada pola instalaçom de judeus, desde o século X, nas vizinhas terras de Cela Nova, e pola existência dum potente grupo de mercadores em Ribadávia, desde a concessom de foral por parte de Fernando II en 1164, onde se promove justamente a exportaçom de vinhos e a importaçom de tecidos, atividades comerciais ligadas aos Judeus, na diocese de Ourense, desde o século XI, por volta mormente da rota Ribadávia-Ourense-Santiago que ligava com o Caminho francês onde os Judeus monopolizavam o tráfego de mercadorias.

O que aconteceu em 1386? O Duque de Lencastre, casado com a filha mais velha do defunto rei Pedro I, aspirando ao trono de Castela, invade Galiza sem encontrar quase resistência, salvo em Ribadávia, que foi assediada por um exército de mais de 2.000 lanceiros e arqueiros ingleses, que lograram tomar a vila utilizando umha espectacular torre com rodas. Os ingleses entraram a saco, e, segundo a crónica coeva de Froissart, "ce jour occis ungs et autres, parmy les Juifs dont il y avoit assés, plus de quinze cens. Ainsi fut la ville de Ribadave gaignée à force, et eurent ceulx qui y entrèrent, grant butin d'or de d'argent ès maisons des Juifs par espécial". Quer dizer, os testemunhos de Froissart salientam a riqueza em ouro e prata dos judeus de Ribadávia, que foram roubados e assassinados, junto com o resto de vizinhos, polas tropas do Duque de Lencastre.

Exagera Froissart, com toda evidência, quando nos fala em “quinze cens” (quince centos, 1.500) Judeus de Ribadávia em 1386. Este tipo de cifras medievais nas crónicas sobre batalhas som, em geral, pouco confiáveis. O cronista francês erra em vários sítios no tocante a lugares e datas, embora ofereça um bom relato dos factos graças às suas fontes orais e diretas. Sabendo que, no século XV e inícios do século XVI, havia aproximadamente em Ribadávia uns 500 vizinhos, poucos mais podiam existir nos finais do século XIV. Por outro lado, os Judeus raramente superam os 10-15 % dos vizinhos nas cidades medievais da Coroa de Castela, percentagem máxima com a que podemos jogar na Galiza, onde as judiarias som pequenas, consoante a informaçom das listas de impostos que os Judeus pagavam a el-Rei. Na Ribadávia de 1386 podia haver, logo, nom muito mais de 50 judeus, unha dúzia de famílias na sua maior parte vivendo nas casas da Rua da Judiaria, depois Merelles Caula, que, sem lugar a dúvida, tinham umha influência económica na vila do Ribeiro muito superior ao seu número, como se decataram os assaltantes ingleses.

Fraternidade judaico-cristã

Diferentemente doutros locais das Coroas de Castela e Aragom, no Reino da Galiza nom houve durante a Idade Média motins populares antissemitas. O mais parecido foi o assalto da sinagoga de Ourense, em 1442, que resultou “destroyda”, polo bando nobiliário dos Cadórnigas, que levaram consigo “as arbores” (rolos da Torá) e mesmo roubaram depois 50 maravedis velhos... Tanto o Concello como a Igreja de Ourense condenaram o atentado à “casa de oraçon” dos Judeus. O mais duro foi o representante do bispo que excomungou a Pedro Dias de Cadórniga e os seus homens, quer dizer, tratou o delito antijudaico como se fosse um sacrilégio cometido em igreja cristã.

É próprio da Galiza pré-irmandinha este sentimento de agravo de todas as vítimas contra os cabaleiros malfeitores e as suas fortalezas, vítimas expiatórias dumhas tensões sociais que noutros lugares descarregam contra os Judeus.

A amizade entre cristãos e judeus mostra-se novamente em 1457 num casamento de fidalgos de Ourense onde se acordou, estando Judeus e regedores presentes, reconciliarem a duas donas judias que se zangaram, que som libertadas polo Concelho da sua cadeia a fin de que pudessem comparecer perante os juízes da alfama. Desde as Partidas de Afonso X era “proibido” que judeus e cristãos fizessem banquetes juntos, mas o Reino da Galiza ia a contracorrente, e a 25 de abril de 1467, iniciada a grande revolta contra os nobres malfeitores, um coengo da catedral de Ourense relata como “os da Santa Yrmandade avian lançado un pregon que leigos e clerigos, xudeus e mouros, fosen derribar o castelo Ramiro”.

A tradicional e secular tolerância entre judeus e cristãos da Galiza medieval, desde o século X, torna-se pois, no fim da Idade Média, em amizade judaico-cristã, defensiva enquanto vítimas de agravos (assalto de Ribadávia, 1386), ofensiva na hora da revolta social, quando os cabaleiros passam de protetores (Mendo Gonçalves, 1044) a agressores provocando a revolta da Santa Irmandade 1467-1469, no momento histórico de maior desfasamento entre a situaçom dos Judeus na Galiza e no resto da Coroa de Castela: nesses anos têm lugar matanças de judeus e conversos em Toledo (1467), Sepúlveda (1468) e Tolosa (1469); enquanto na Galiza a Santa Irmandade junta camponeses e coengos, judeus e mouros, para ruir fortalezas.

Afastamento e expulsom

A inexistência na Galiza dum antissemitismo popular e violento e dumha igreja que o predique, dificulta a aplicaçom das leis discriminatórias da Coroa unificada de Castela e Aragom que precedem o desterro de 1492. Em 1480 as Cortes de Toledo acordam afastar os judeus em bairros separados. Em 1481 o Tribunal da Inquisiçom, criada em 1478, ordena queimar 2.000 judeus em Sevilha. Aliás, na Galiza, os concelhos seguiam com a sua política de tolerância, às vezes filojudaica. Em 1483, o Concelho de Ourense convoca umha juntança na sinagoga, atuando como testemunhas e possíveis instigadores dous cónegos, e convoca os Judeus a respeitarem a lei de Toledo, devendo afastar-se portanto numha parte da cidade que nom definem... Um novo Concelho, em 1487, critica os anteriores por nom ter levado a cabo a lei de Toledo, obrigando em nome dos Reis Católicos aos arrecadadores das rendas reais, Mosé Péres e Yudá Péres, a morarem na Rua Nova, os quais para safar a ordem mudam o seu domicilio para outros concelhos, acusando aos alcaldes “por nos ser odiosos como lo sois”, ou seja, traidores à tradicional amizade judaico-cristã.

Que reaçom houve na Galiza das “duas culturas” ao édito de expulsom de 31 de março de 1492? Temos para nós que a maioria converteu-se, seguindo muitos deles a praticarem o judaísmo com a conivência dos seus vizinhos cristãos, sem que ninguém os amolasse durante quase um século.

Outros tomaram o caminho do exilo como o ourives da Corunha Isaac que, em 1493, com a cumplicidade de armadores e oficiais reais, foge por mar levando consigo 2,5 milhões de maravedis em moedas de ouro e prata, alfaias “e outras cousas de valor”, entre as que bem podia estar a “Biblia Kennicott”, elaborada na Corunha em 1476 por um judeu abastado chamado Isaac quem marchou com ela para o exilo: assim foi como perdemos os galegos unha das nossas joias medievais.

Tempos de Inquisiçom

A Inquisiçom moderna bate, portanto, com mais de cinco séculos de convívio pacífica medieval entre galegos de diferente etnia e religiom. Quando se quer impor, no século XVI, deparam-se os primeiros inquisidores com umha difusa resistência popular e múltiplos conflitos jurisdicionais com os concelhos, com a Igreja e com os oficiais reais. Até 1574 nom começará a funcionar realmente o Tribunal de Santiago, cem anos mais tarde que em Castela e três séculos depois que Aragom. Mesmo assim, os judaizantes galegos nom serám molestados até princípios do século XVII. Para isso contribuiu a imigraçom portuguesa (por vezes descendente de galegos) que se instala no sudoeste da Galiza quando se agrava a perseguiçom em Portugal, anexada por Filipe II em 1581. No século XVII produz-se deste jeito umha “rejudeizaçom” da Galiza que aviva comunidades judeuconversas que, como no caso de Ribadávia, tinham já mais de cem anos de história.

O ponto de inflexom da ofensiva inquisitorial contra os Judeus clandestinos na Galiza foi o processo de Ribadávia entre 1606 e 1610. Pola primeira vez em 50 anos o Tribunal de Santiago oferece um balanço económico positivo. O grupo maioritário entre os processados pola Inquisiçom em toda Galiza esta formado por judaizantes, a maioria deles comerciantes e, portanto, alvo predilecto da confiscaçom de bens que praticava a Inquisiçom para o seu financiamento.

O processo de Ribadávia

Entre 1492 e 1595 os judeus de Ribadávia vivem relativamente tranquilos, simulando serem cristãos e praticando clandestinamente a sua religiom. Tinham especial cuidado em iniciar os moços na adolescência. Este relevo geracional, que abrangeu quatro gerações, foi vital para garantir a continuidade histórica do judaísmo de Ribadávia. De facto, a maioria dos detidos, e condenados, entre 1606 e 1610, serám moços e moças na vintena. O papel principal na transmissom da tradiçom jogavam-no as mulheres, as mães e as avós, bem como matriarcas judaicas como Branca Vasquez e Ana Mendes, ja finadas quando veio a repressom, que também ensinavam os ritos e cerimónias da Lei de Moisés na comunidade judaizante de Ribadávia.

Nos finais do século XVI sucedem-se as visitas da Inquisiçom a Ribadávia. Em 1595 é processado o advogado Jerónimo Rodríguez: um aviso. A 7 de março de 1606 o Tribunal de Santiago recebe do Conselho da Geral e Suprema Inquisiçom umha carta ordenando passar à açom: “Prendan a once deles”. Serám muitos mais porque um moço circundado, Jerónimo Bautista de Mena, que a comunidade enviara às sinagogas de Veneza, Pisa e Tessalónica, para formar-se e ensinar logo a lei velha em Ribadávia, os denuncia por arrependimento, inimizades e/ou simples desequilíbrio mental: confessou-lles aos inquisidores que quando, dous anos atrás, morrera mãe dele, tentara resuscitá-la como fizera o profeta Eliseu com o filho da viúva.

O fenómeno do malsim (delator) é habitual na história do judaísmo, mais ainda quando a perseguiçom os obrigava a formarem sociedades secretas. O malsim de Ribadávia denunciou de entrada a 200 judaizantes, metade da vila (450/500 vizinhos em 1517-23; 460 vizinhos em 1645), começando pola defunta de sua mãe e polos seus irmãos de 13 e 15 anos. Jerónimo apareceu morto (em estranhas circunstâncias, como se diz nestes casos) no tempo do processo, e o Tribunal, que como Roma vê-se que nom paga traidores, sentencia-o no derradeiro momento (1610) a ser queimado em forma de estátua, junto com os seus ossos, que para tal fim foram desenterrados. Jerónimo Bautista de Mena morre duas vezes, primeiro como falso judeu, depois como falso cristão.

Ao cabo houve 40 condenados em Ribadávia, e importantes confiscações de bens, bem complicadas de executar pola ocultaçom que procuravam os judaizantes. Entre os sentenciados havia dous regedores do concelho, sete mercadores, dous que vivem da sua fazenda, vários profissionais liberais e catorze mulheres. A maior parte dos processados nasceram em Ribadávia, o resto eram ribadavienses originários doutros lugares de Ourense, Galiza e do Norte de Portugal (vários de Vila Flor, Braga), atraídos pola sua florescente comunidade. Vinte e um judaizantes foram sentenciados a cadeia perpétua, depois de a Suprema de Madrid repreender o Tribunal de Santiago pola suavidade das penas. Dous foram condenados, pola sua relevância, a serem relaxados em pessoa, quer dizer, a serem queimados na fogueira: Filipe Álvarez e o seu filho mais rebelde, António Mendes. Os restantes receberam penas de cárcere de entre 6 meses e 4 anos. Polo regular as condenas supunham, para além do imediato sequestro dos bens, a obriga de levar hábito (sambenito).

Nom está claro que os condenados cumpram as penas mais duras, morte e perpétua, tanto polos acordos económicos com a Inquisiçom, como polas dificuldades desta para ter muito tempo os condenados nos cárceres secretos, e a caída em desgraça dos inquisidores que assinaram as sentenças de Ribadávia, Juan Muñoz Cuesta e Juan Ochoa, ao ano de rematar o processo.

Os 25 % dos réus que se reconciliaram com a Igreja no século XVII em España compraram as penas. Claro que nem todos tinham os mesmos possíveis, embora há que dizer que o status social e económico nom poupou a ninguém do sofrimento no tormento, mais bem ao contrário.

O sistema, chamado o “potro”, para atormentar os presos era bem simples: colocavam-nos sobre unha escada, com cordas atadas a braços e pernas que se apertavam dando voltas a garrotes até descobrir o osso se fosse preciso. Deste jeito foram torturados 32 % dos vizinhos de Ribadávia presos: treze réus no total, polo regular gente idosa, cinco mulheres e oito homens. A maioria deles, segundo o proprio Tribunal, venceram o tormento: todas as mulheres, e alguns homens (concretamente, três). A quem se torturava? Às pessoas mais relevantes da comunidade judaica do ponto de vista político, económico e religioso, isto é, aos dous membros da corporaçom municipal, Jerónimo de Morais e Joám Lópes Hurtado (e a sua dona), a aqueles processados que eram mercadores e mulheres de mercadores (os 53 % dos que passaram polo potro eram comerciantes), a viúva do antepassado Marcos López, advogado e relaxado em estátua. Foram muito cruéis sobretodo com Filipe Álvarez, que fazía de rabino de todos eles, e com o seu filho fiel António, os únicos condenados a morte. Torturavam para obter unhas confissões que supunham bons ingressos económicos, e também por pura vingança.

O Conselho Supremo de Madrid e o Tribunal de Santiago, quiseram fazer em Ribadávia um processo exemplar, cortando de raiz, que servira de escarmento para toda a Galiza judaizante: perseguiram os colaboradores da ocultaçom de bens e da fugida de judaizantes; perseguiram os familiares dos condenados, mesmo menores; perseguiram a memória e a fama daqueles defuntos que ensinaram a Lei de Moisés e Ribadávia na segunda metade do século XVI aos presos.

Mas os condenados e torturados de Ribadávia asina obtiveram umha satisfaçom moral. A Suprema envia em 1611 um inspector com 60 cargos de ineficácia e corrupçom contra os dous grandes inquisidores da Galiza durante o processo de Ribadávia, que som acusados de irregularidades no sequestro, depósito e lançamento dos bens dos judaizantes, de repetirem ilegalmente sessões de tortura, de falta dum comportamento pessoal acorde com a sua funçom no Santo Oficio e com o estado clerical. Ochoa é acusado de dar missa bêbado, de amancebar-se com umha casada que chegou a presidir com ele a audiência do Tribunal. Muñoz Cuesta é acusado de ir com prostitutas e de aliciar meninas de 14 e 15 anos. Meses depois do derradeiro auto-da-fé onde se queimaram, na catedral de Santiago, as estátuas do últimos processados de Ribadávia, Juan Ochoa e Juan Muñoz Cuesta, foram expulsos da Galiza, inabilitados por três anos para exercerem cargos na Inquisiçom e multados economicamente. Penas bem pequenas se compararmos com as que eles aplicaram ao rabino Filipe Álvarez e a sua gente por nom trabalharem nos sábados ou recitar na igreja da Madalena os Salmos de David sem o “Gloria Patri”. A pública sançom da imoralidade dos máximos responsáveis do Santo Oficio na Galiza favoreceu, logo a seguir, a negociaçom das penas de morte (Filipe Álvarez) e cadeia perpétua (Simom Pereira), e supomos o mesmo relativamente às outras sentenças contra os vizinhos de Ribadávia.

Quatro séculos depois destes lamentáveis feitos ainda está pendente a reabilitaçom das vítimas, a restauraçom da verdade histórica, a devoluçom da fama e da memória aos desconhecidos descendentes dos últimos judeus de Ribadávia: os Álvarez, Mendes, Gomes, Lopes, Hurtado, Pereira, Vásquez, Duarte, Coronel, Mena, Blandón, Morais, Oliveira, Díaz, Fernández, Rodríguez, Sousa, León, Chaves, que cuidamos seguem a viver em Ribadávia, e noutros lugares da Galiza. Apelidos polo geral comuns, devido ao afã dos conversos de passarem desapercebidos, que nos lembram que todos podemos ter origens xudaicas. Melhor dito, se alguém prendeu e torturou umha pessoa por ser doutra ideia, naçom e religiom, todos somos vítimas, todos somos judeus, todos somos pois vizinhos de Ribadávia naqueles anos de terror 1606, 1607, 1608, 1609, 1610, como bem gostamos de celebrar nas “Festas da Istória”, que caem a cada ano no tempo da vindima e do “Ayuno Grande” dos nossos antepassados.

Memória contemporánea

Depois do processo de Ribadavia a Inquisiçom atuou contra os judaizantes de toda Galiza ao longo dos séculos XVII e XVIII, mantendo deste jeito vivo e latente um espírito anti-inquisitorial que faz parte da nossa cultura popular, e da melhor tradiçom intelectual galega.

A Inquisiçom, engrenagem essencial do Estado absolutista, tentou apagar no Reino da Galiza a memória dourada da liberdade religiosa medieval, espalhando calúnias antissemitas e convertendo em infâmia a ascendência judaica dumha parte do povo galego.

O combate iluminista contra a mentalidade inquisitorial, e a definitiva dissoluçom do Santo Oficio em 1813, fruto dumha potente açom liberal que continuou até o século XX, criaram as condições ajeitadas para a recuperaçom da velha memória das raízes judaicas da Galiza. Ainda que nom será até a restauraçom da democracia, nos tempos presentes, quando o passado judaico se torne em galardom e motivo de orgulho de vilas, como Ribadávia, que recobram o seu esplendor graças à história.

O primeiro protagonista do renascimento da memória judaica em Ribadávia foi o advogado e escritor Leopoldo Meruéndano, alcalde de Ribadavia durante os anos 1900-1906. A sua obra Los judíos de Ribadavia (1915) teve um papel chave na tomada de consciência em Ribadavia, e na Galiza, sobre a história dos judeus.

O pulo cultural e democrático semiado na juventude ribadaviense polos sacerdotes Virgílio Rodríguez Silva, José Benito Rodríguez Sieiro e Miguel Fernández Grande, e os intelectuais Jesus Sánchez Orriols e Rubén García Álvarez, na derradeira década do franquismo, fez possível a constituiçom em 1969 da Asociación Cultural Abrente, e mais tarde do Centro de Estudos Medievais de Ribadávia em 1989, associaçom que faz da historia e da reivindicaçom judia os principais eixos da sua atividade.

En 1989 organiza-se também a “Festa da Istória” com a participaçom do povo de Ribadávia com vestidos da época medieval. A partir desta primeira ediçom, representou-se várias vezes na Praça Maior o processo de Ribadávia e a morte do malsim Gerónimo Bautista de Mena. Aliás, na ediçom de 1993, e noutras posteriores, encenou-se um casamento sefardita.

Em outubro de 1991, em vésperas do 500º aniversário do decreto de expulsom, celebrou-se o Congresso Internacional “Judeus e conversos na história”, que situou a Ribadávia no cerne da investigaçom académica mundial sobre as comunidades judaicas, judaizantes e sefarditas na história.

Hoje em dia Ribadávia, capital da Galiza judaica, representa aos galegos na Ruta de las juderías junto a Toledo, Córdoba, Segovia e outras vilas espanholas.

Seguindo o exemplo da vila do Avia, outras cidades galegas desenvolveram ultimamente atividades divulgativas sobre a presença dos Judeus na história da Galiza.

* Neste artigo o Prof. Carlos Barros realiza umha cronológica da presença judaica na Galiza desde os séculos X-XXI.

** Os textos originais foram redigidos polo autor em 2002 para a exposiçom permanente do Centro de Informaçom Judaica, localizado na Casa dos Condes, em Ribadávia, Galiza.

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