quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

MARCUSE, ISRAEL, O SIONISMO E OS JUDEUS

No Natal de 1971, convidado para palestra na Universidade Hebraica de Jerusalém, Herbert Marcuse foi pola primeira vez a Israel. Foi uma oportunidde para ele visitar o país e para confrontar a populaçom local, árabe e israelita, sobre a questom palestiniana. Eis a entrevista que deu ao "The Jerusalem Post", em 2 de janeiro de 1972, mantida no Marcuse Archiv de Francoforte e reproduzida aqui com permissom de Peter Marcuse. Traduzida, na época, em árabe, suscitou um intenso debate.


Muitos amigos, especialmente entre os estudantes, pediram-me para dar a minha opiniom sobre a situaçom no Oriente Médio. Eu respondo com esta declaraçom. Trata-se dumha opiniom pessoal baseada nas minhas discussões com muitas pessoas, judeus e árabes em diversas partes do país, e umha leitura bastante extensa de documentos e de fontes secundárias. Estou plenamente consciente das suas limitações e oferece um simples contributo para o debate.

Acho que o propósito inicial subjazente que motivou a fundaçom do Estado de Israel era impedir a repetiçom dos campos de concentraçom, os pogroms e outras formas de perseguiçom e discriminaçom. Concordo plenamente com esse objetivo, o que para mim é parte da luta pola liberdade e a igualdade de todas as minorias étnicas e nacionais em todo o mundo.

No atual contexto internacional, a busca deste objetivo pressupõe a existência dum Estado soberano capaz de acolher e de proteger os judeus que som perseguidos ou vivem sob a ameaça de perseguiçom. Se um tal estado existisse quando os nazistas chegaram ao poder, teria evitado o extermínio de milhões de judeus. Se um tal estado fosse aberto a outras minorias perseguidas, incluindo as vítimas de perseguiçom política, teria salvado ainda muitas mais vidas.

Perante estes factos, a nossa discussom deve ser baseada no reconhecimento de Israel como um Estado soberano e ponderando as condições em que foi fundado, isto é, a injustiça que foi cometida contra a populaçom árabe autóctone.

A criaçom do Estado de Israel foi um ato político, viabilizado polas grandes potências porque se inseria na busca de seus próprios interesses. No período de implantaçom que precedeu a criaçom do Estado, e durante a própria criaçom, os direitos e os interesses da populaçom autóctone nom foram respeitados como deveriam ter sido.

A fundaçom do Estado judaico implicou, desde o início, a transferência do povo palestiniano, em parte à força, em parte sob pressom (económica ou outra), em parte “voluntariamente”. A populaçom árabe que ficou em Israel viu-se reduzida ao estatuto económico e social de cidadãos de segunda classe e isso apesar dos direitos que lhe foram reconhecidos. As diferenças nacionais, raciais e religiosas tornaram-se diferenças de classe: a velha contradiçom reapareceu na nova sociedade, agravada pola fusom entre os conflitos interno e externo.

Em todos esses pontos, as origens do Estado de Israel nom som fundamentalmente diferentes daquelas de praticamente todos os Estados na história: criaçom através da conquista, ocupaçom e discriminaçom. (A aprovaçom da ONU nom muda em nada a situaçom: esse aval ratificou de facto a conquista).

A partir do momento em que se aceita esse facto consumado e o objetivo histórico fundamental que o Estado de Israel fixou para si, coloca-se a questom de saber se esse Estado, tal como está constituído hoje e com a política que pratica atualmente, está em condições de atingir seu objetivo, existindo como uma sociedade de progresso que mantém relações normalmente pacíficas com seus vizinhos.

Responderei a essa questom referindo-me às fronteiras de Israel em 1948. Toda anexação, qualquer que seja a sua forma, já deixaria supor, a meu ver, umha resposta negativa. Ela significaria que Israel nom poderia assegurar sua sobrevivência senom enquanto uma fortaleza militar num vasto ambiente hostil, e que a sua cultura material e intelectual se submeteria a exigências militares crescentes. O carácter perigosamente precário e efêmero de semelhante soluçom é demasiado evidente. Se umha superpotência (ou os seus satélites) pode existir nessas condições durante um período prolongado, essa possibilidade está excluída para Israel em razom de sua dimensom geográfica e da política das superpotências em matéria de armamentos.

Na hipótese de se partir da situaçom atual, a primeira condiçom preliminar para umha soluçom é um tratado de paz com a República Árabe Unida; um tratado que compreenderia o reconhecimento do Estado de Israel e o livre acesso ao canal de Suez e ao golfo de Akaba e uma soluçom para a questom dos refugiados. Penso que é possível negociar tal tratado agora, e que a resposta do Egito à missom Jarring (15 de fevereiro de 1971) propõe umha base aceitável para negociações imediatas.

O Egito pede, antes de mais, que Israel se comprometa a retirar a suas forças armadas do Sinai e da faixa de Gaza. A criaçom dumha zona desmilitarizada, colocada sob a proteção dumha força da ONU, poderia proteger contra a eventualidade dum ataque árabe devastador, ao qual, segundo alguns observadores, essa retirada exporia Israel. O risco envolvido nom me parece maior que o risco permanente de guerra que existe nas condições atuais. A potência mais forte pode permitir-se as concessões mais importantes – e, de facto, Israel é essa potência.

O estatuto de Jerusalém poderia aparecer como o obstáculo mais sério a um tratado de paz. Um sentimento religioso profundamente arraigado, com o qual os dirigentes jogam constantemente, faz com que seja inaceitável aos olhos dos árabes (e dos cristãos?) que Jerusalém seja a capital dum Estado judaico. Umha soluçom alternativa poderia consistir em colocar a cidade, uma vez reunificada (Leste e Oeste) sob administração e proteçom internacional.

Na sua resposta, o Egito pede, por outro lado, umha “solução justa para o problema dos refugiados, em conformidade com as resoluções da ONU”. A formulaçom dessas resoluções (dentre as quais, a resolução 242 do Conselho de Segurança) é sujeita a interpretações e, nesse sentido, deve ser, ela própria, objeto de negociações. Eu evocaria apenas duas possibilidades (ou a sua combinaçom), que foram sugeridas nas discussões que tive com personalidades judaicas e árabes.

1. Retorno a Israel dos palestinianos que foram transferidos e desejam voltar. Essa possibilidade é limitada por antecipaçom, à medida que as terras árabes tornaram-se terras judaicas e os bens árabes, bens judaicos. Eis um outro facto histórico sobre o qual nom se pode voltar atrás sem cometer um novo erro. Ele poderia ser atenuado, se esses palestinianos se instalassem em terras ainda disponíveis e/ou desde que se lhes oferecessem equipamentos adequados e indenizações.

Essa soluçom é rejeitada oficialmente polo motivo (correto em si) de que semelhante retorno transformaria rapidamente a maioria judaica numa minoria e, desse modo, aniquilaria o próprio objetivo da criação do Estado judaico. Ora, acredito que é precisamente a política visando a assegurar umha maioria permanente que é, intrinsecamente, destinada ao fracasso. A populaçom judaica está condenada a permanecer umha minoria no seio do vasto conjunto formado polas nações árabes, do qual ela nom pode separar-se indefinidamente sem cair em condições de gueto em maior escala. É evidente que Israel poderia manter umha maioria judaica por meio dumha política de imigraçom agressiva que, em contrapartida, fortaleceria constantemente o nacionalismo árabe. Mas Israel nom poderá existir enquanto Estado de progresso se continuar a ver nos seus vizinhos o Inimigo, o Erbfeind. Nom é na existência dumha maioria fechada sobre si mesma, isolada e dominada polo medo, que o povo judeu encontrará uma proteçom duradoura, mas, sim, apenas na coexistência entre judeus e árabes enquanto cidadãos que se beneficiam dos mesmos direitos e liberdades. Essa coexistência só pode resultar dumm longo processo englobando ensaios e erros, mas as condições preliminares para a realizaçom dos primeiros passos existem agora.

O facto é que o povo palestiniano vive há séculos no território em parte ocupado e administrado por Israel hoje. Essas condições fazem de Israel umha potência invasora (mesmo em Israel), e o Movimento de Libertaçom da Palestina, um movimento de libertação nacional – por mais liberal que possa ser a potência invasora.

2) As aspirações nacionais do povo palestino poderiam ser satisfeitas pola criaçom dum Estado palestiniano nacional ao lado do Estado de Israel. Caberá ao povo palestiniano decidir, via plebiscito supervisionado pola ONU, se esse Estado deve ser umha entidade independente ou federada a Israel ou à Jordânia.

A soluçom ótima seria a coexistência entre israelitas e palestinianos, judeus e árabes, em pé de igualdade dentro dumha federaçom socialista dos Estados do Oriente Médio. Essa perspetiva continua a ser umha utopia. As possibilidades evocadas acima continuam a ser soluções provisórias que se apresentam aqui e agora –rejeitá-las completamente poderia acarretar danos irreparáveis.

30 de dezembro de 1971

Traduzido diretamente do francês para o galego-português a partir desta fonte do texto original: http://www.monde-diplomatique.fr/2004/03/MARCUSE/11079

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