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sexta-feira, 16 de maio de 2025

A CULTURA DOS JUDEUS PORTUGUESES

 Maria José Ferro Tavares

Junto à sinagoga, ou nela, funcionava, na comuna, a escola ou Bethamidrash. Era aí que as crianças judias aprendiam a ler e a escrever hebraico, língua que permaneceria como língua oficial da minoria, em todos os seus atos escritos até finais de Trezentos. D. João I iria exigir que, em todos os atos públicos escritos, os seguidores da Lei de Moisés usassem o português, determinaçom que viria a ser ratificada por D. Afonso V.

O hebraico foi a única língua escrita dos Judeus portugueses até cerca do século XV


Pode-se assim dizer que os Judeus eram, por força das circunstâncias, bilíngues na fala e também na escrita. Utilizavam o português falado na sua convivência diária com os cristãos, usando umha linguagem penetrada de hebraísmos que Gil Vicente satirizaria, e o português escrito nos atos oficiais, a partir dos finais do século XIV; enquanto o hebraico se tornava umha língua interna, marcada pola regiom e polos estudos rabínicos.


Se em todas as comunas existia umha escola, nem em todas havia o doutor da lei, o letrado. Aliás, umha das funções do rabi-mor era a de zelar pola manutençom do ensino e da sua qualidade, nos lugares onde existiam as escolas, segundo se pode ler na legislaçom do arrabiado mor, promulgada por D. João I.


Em Lisboa, sabe-se da existência, durante o século XV, de vários locais de ensino para as crianças aprenderem a ler e a escrever o hebraico, como a escola de rabi Eliézer, ou para os jovens enveredarem polo estudo dos textos rabínicos e doutros conhecimentos, como a que funcionava junto à sinagoga grande.


Esta última, em finais de Quatrocentos, dedicava-se ao estudo das ciências profanas polo que Guedelha Palaçano, judeu cortesão à criaçom dum Estudo, designado por Estudo de Palaçano, para o ensino da ciência rabínica. Perto da sinagoga grande e destas Escolas, localizava-se a Livraria que, com a vinda dos Judeus castelhanos para Portugal, vira crescer o número dos seus livros.

 

Escolas para crianças e para o ensino avançado do Talmud havia tambén em Évora, a segunda comunidade judaica mais populosa e importante do reino.


Infelizmente, sabe-se muito pouco sobre a produçom cultural dos Judeus portugueses, ao contrario do que sucede com a dos Judeus do resto da Península. Na sua grande maioria desapareceu, restando, hoje, umha escassa vintena de manuscritos em hebraico, iluminados uns, outros nom. Enterrados uns, com receio das autoridades cristãs, após a expulsom; queimados outros, mais tarde, quando apanhados pola Inquisiçom; vendidos no norte de África ou no Oriente aos Judeus destas regiões, a verdade é que o que subsiste hoje da produçom cultural dos Judeus peninsulares pode incluir, sem que possa ser destrinçado por ignorância de local de produçom, obras originárias dos Judeus portugueses.


Sobre elas pouco se sabe, apesar de Aboab na "Nomología" elogiar a escola de calígrafos existente em Portugal e de a mais antiga referência à posse privada de livros polos indivíduos desta minoria remontar au reinado de D. Afonso IV, ou seja, a meados do século XIV. Apesar do pouco que se conhece sobre a caligrafia e a iluminura hebraica, em Portugal, a verdade é que este mínimo conduziu a duas teses diametralmente opostas, como a de Gabrièlle Sed-Rajna e a de Thérèze Metzger.

A Nomologia de Immanuel Aboab (Porto, 1555 - Veneza 1628)


Além da cultura autóctone da minoria, pode-se afirmar que esta sofreu umha aculturaçom por parte da maioria cristã, bem visível na produçom de poesia trovadoresca de que ficou a memória escrita dalguns poetas trovadores, como Samuel de Alcobaça, Vidal de Elvas e Judas Negro, trovador da rainha D. Filipa de Lencastre. De Vidal chegou algumhas canções de amor, dirigidas à «formosinha de Elvas» e integradas no Cancioneiro da Vaticana.

Estas duas cantigas fez hûu judeu d'Elvas, que avia nome Vidal, por amor d'ûa judia de ssa vila que avia nome Dona. E pero que é ben que o ben que home faz sse non perça, mandamo-lo screver; e non sabemus mais d'ela[s] mais de duas cobras, a primeira cobra de cada hûa.


Em finais do século XIV ou inícios do XV, A Crónica Geral de Espanha foi copiada em hebraico. Mas, mais umha vez, a referência documental é indireta, polo que se ignora o nome do tradutor e o do encomendador.


Entre os autores de obras jurídicas e filosófico-religiosas, destacaram-se alguns membros da família Ibn Yahia, Navarro e Abravanel. Além destes, figuram como encomendadores de livros alguns ricos mercadores e artesãos de Lisboa. As cópias incidiram sobre as obras de Maimónides, Kimhi, Nahamanides, além de textos bíblicos.


Na biblioteca de Lisboa e, talvez, na de Évora, assim como em certas casas particulares existiam, a par da Torah e doutros livros da Lei, escritos de autores rabínicos, obras de filosofia, matemática, astrologia, medicina, traduzidos para o hebraico por via do árabe. É provável que umha elite soubesse latim e tivesse estudado na universidade. Polo menos, sabe-se que Abraão Ibn Yahia, rabi-mor de D. Afonso V e o seu médico, frequentou os Estudos Gerais de Coimbra, tal como o seu filho Guedelha.


A medicina, quer no seu campo clínico, quer cirúrgico, quer ainda na especialidade de oftalmologia, foi amplamente praticada polos Judeus portugueses, levando alguns deles ao serviço do rei e da sua família, da nobreza, do alto clero e do concelho cristão, apesar dos impedimentos previstos pola lei canónica.


Alguns agregaram aos conhecimentos médicos a observaçom astrológica, como sucedeu com o mestre Guedelha Ibn Yahia, rabi-mor, físico e astrólogo de D. João I, D. Duarte e D. Afonso V. Dele D. Duarte anotaria no seu "Livro dos Conselhos" o cálculo dos solstícios e equinócios e, certamente, também o cálculo das horas pola observaçom da estrela polar. Coube-lhe como astrólogo predizer o reinado infeliz e curto de D. Duarte, com base na conjunçom dos astros no dia da coroaçom régia, prediçom que seria anotada polo cronista Rui de Pina.


Os Judeus portugueses possuíram tipografia em caracteres hebraicos e latinos. Faro, onde Samuel Gacon editou o Pentateuco, foi a primeira [em 1487]. Seguiu-se Lisboa e Leiria. Nesta última, os Orta fizeram sair o "Almanaque Perpétuo" de Abraão Zacuto, traduzido, a pedido de D. João II, por mestre José Vizinho para o castelhano e o latim.

"Almanach perpetuum" contém tábuas astronomicas que foram utilizadas por Vasco da Gama e Pedro Alvares Cabral nas suas viagens


 A produçom artística dos Judeus portugueses desapareceu na sua quase totalidade ou permanece desconhecida. Infelizmente, o terramoto de 1755 destruiu aquela que foi a maior e mais rica sigagoga portuguesa, tal como no início do século XVI, por razões que ignoradas, desapareceu a sinagoga de Évora. Ambas pola amplidom das suas naves e profusom de claustros deviam ter sido importantes como edifícios. A única que restou foi a de Tomar, construída nos meados do século XV. Na sua maioria, as casas de oraçom dos Judeus eram habitações, transformadas em lugares de reuniom e de oraçom. Assim aconteceu em Castelo de Vide ou na Guarda.

Ao seu desaparecimento, junta-se o desconhecimento dos seus arquitetos e da maioria dos seus benfeitores. No entanto, algumhas das poucas lápides em hebraico que chegaram até nós, falam dalguns nomes, como Juda, filho de Guedelha, rabi-mor de D. Dinis, que teria mandado erguer a sinagoga grande de Lisboa, ou de D. Juda Aben Menir, rabi-mor de D. Fernando que teria ordenado a construçom da sinagoga do Porto, cujo arquiteto foi o rabi José ben Arieh.


Além de arquitetos, os Judeus portugueses foram ourives de reis e de rainhas, de membros da família real e de ordens religiosas, como os judeus Sapaio, ourives do duque de Beja, D. Manuel, e artistas das alfaias de ouro e prata que este ofereceu ao convento de Cristo. Iluminadores, douradores, ourives e argentários, na sua grande maioria, as suas obras caíram no anonimato se, porventura, chegaram até nós.


Maria José Pimenta Ferro Tavares (Lisboa, 1945) é umha historiadora e professora portuguesa, especialista na história dos Judeus e dos cristãos novos em Portugal. Em 1998 foi a primeira reitora dumha universidade ou instituiçom de ensino superior em Portugal. As principais obras dela são "Os Judeus em Portugal no século XIV", Lisboa, Guimarães Editores (2000) e "Os Judeus em Portugal no século XV", Universidade Nova de Lisboa  (1982-1984).

Fonte: Linhas de Força da História dos Judeus em Portugal UNED

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