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sábado, 17 de outubro de 2020

Refugiada palestiniana descobre que era judia e pode ser portuguesa

Ana B. Carvalho

Fonte: Wort.lu

Foi uma viagem de mais de 600 anos que uma jovem de 26 anos - de uma família de refugiados palestinianos de terceira geração- , que se recusava a aceitar a falta de reconhecimento internacional da sua identidade, fez.

Ao fim de três anos de dedicação e depois do trabalho "excecional" de um advogado "teimoso", Heba Iskandarani segura um passaporte espanhol desde o dia 12 de setembro deste ano. Em Portugal, o processo que dá também esperança ao pai e tio de Heba tem enfrentado vários entraves e dificuldades que se prendem "essencialmente com o excesso de burocracia e um atraso sem precedentes na tramitação dos processos", explica a Advogada Eva Garcia. 

Para Heba, porém, há já uma certeza neste momento: "Vou finalmente poder visitar a Palestina, nem acredito", comenta ao Contacto ainda embevecida de entusiasmo. 

"Judeus e árabes são todos realmente filhos de Abraão" declarou, no ano 2000, Harry Ostrer, Diretor do Programa de Genética Humana da Faculdade de Medicina da Universidade de Nova Iorque, autor de um estudo coletivo de vários investigadores internacionais que concluiu que os homens judeus partilham um conjunto comum de assinaturas genéticas com não-judeus do Médio Oriente, incluindo palestinianos, sírios e libaneses, sendo que estas assinaturas divergem significativamente dos homens não-judeus fora desta região. 

Segundo o estudo intitulado "Os judeus são os irmãos genéticos dos palestinianos, sírios e libaneses", publicado na revista Science Daily, judeus e árabes partilham um antepassado comum e estão mais intimamente relacionados uns com os outros do que com não-judeus de outras áreas do mundo. 

Mas essa irmandade genética não se reflete na política internacional, especialmente quando se refere a descendentes de refugiados palestinianos. No dia 12 de setembro de 2020, Heba Iskandarani encerrou um capítulo importante na sua história pessoal e abriu uma porta de esperança não só a toda a sua família, mas também à "enorme quantidade de pessoas" que lhe têm escrito através do Facebook, onde partilhou a sua história.


Em busca de uma pátria

Heba Nabil Iskandarani nascida e crescida no Dubai, é uma dos muitos milhares de herdeiros de uma identidade não reconhecida, natural de quem partilha linhagem palestiniana. 

"Sempre estive em conflito com a minha identidade, sem qualquer sentimento de pertença ou direito a qualquer país, porque nunca tive documentos válidos", conta de voz grave e tom assertivo a filha de mãe libanesa e de pai palestiniano. 

Ahmad, o avô paterno natural de Jaffa, foi exilado da Palestina para o Líbano em 1948, durante o Nakba, o êxodo palestiniano depois da invasão do seu território pelo que viria a ser o povo israelita. Casaria com uma libanesa e a partir daí, todos os membros da sua descendência passariam a ser marcados como "refugiados palestinianos", seguindo-se duas gerações de direitos negados e identidades não reconhecidas. No Líbano, é a linhagem paterna que define a nacionalidade, pelo que o facto de ser neta de mulher 100% libanesa não lhe deu direito a nada.

"Senti sempre em mim esta busca de identidade, porque ao crescer foi-me sempre negada uma nacionalidade. Refugiada palestiniana, não reconhecida por Israel como indígena de lá, internacionalmente não reconhecida como original de um Estado e altamente descriminada pelo Líbano", conta em entrevista ao Contacto. 

A forma como os palestinianos são tratados no Líbano "é absolutamente revoltante", diz enquanto descreve como lhes é negado o direito à propriedade privada, com a possibilidade única de habitar em campos de refugiados, "para não falar da dificuldade de encontrar um emprego e outras incontáveis formas de discriminação".

"A minha família toda está no Líbano, há duas gerações. Estão lá presos, pobres, sem oportunidades." 

"O meu pai viveu praticamente a vida toda no Líbano, cresci com as histórias sórdidas de como foi tratado ao longo dos anos e também eu senti sempre na pele uma constante sensação de ser 'menos que'.  A minha família toda está no Líbano, há duas gerações. Estão lá presos, pobres, sem oportunidades. Eu sempre que passo na fronteira, no controlo de passaportes, a forma como as autoridades nos olham da cabeça aos pés é angustiante", descreve. 

Diz-se crescida numa bolha, no Dubai, em que todos que são de fora "são tratados como iguais", "nunca me senti menos do que ninguém aqui", mas também, apesar de ter lá nascido, é considerada "de fora". Não sendo, por isso, país que a reconhecesse como sua cidadã. 

Quando era criança, Heba perguntava ao pai se podia ser política, embaixadora de um país. "Posso ser política do Líbano?". "Não", respondia-lhe. "E da Palestina? Posso?", ao que o pai voltava a responder negativamente. "Mas porquê?", indagava inconformada.  "Ele respondia-lhe sempre: Não tens documentos".  

Licenciada em arquitetura no Dubai, a primeira vez que se deparou com "o mundo lá fora" foi quando viajou para o Reino Unido para estudar no âmbito do mestrado de Gestão de Projeto.

Por ser estudante internacional, teve de se dirigir a uma estação da polícia para se registar. Quando lhes deu o passaporte libanês o polícia comenta "Oh! Não via um destes há muito". No entanto, assim que o abriu apercebeu-se que a nacionalidade registada é "Refugiada palestiniana". "Desculpe, não compreendo", disse-lhe o polícia. "É um passaporte libanês, com identidade palestiniana mas está escrito que nasceu no Dubai. De onde é que é afinal?", perguntou-lhe. Ao Contacto, Heba conta esta história com destreza e alguma ironia. "Se tiver uma resposta, por favor diga-ma", ter-lhe-á respondido a jovem de 26 anos. 

Os dois ter-se-ão rido da situação, mas este terá sido mais um rastilho aceso naquela que se tornaria uma longa e aventurosa jornada de procura por uma pátria. 

Terminado o mestrado, há três anos, Heba disse ao pai que não podia continuar nesta situação. O pai riu-se. "Eu estou nesta situação há 67 anos e aceitei a realidade, acho que devias deixar de te fixar na ideia de encontrar uma identidade, um lar para onde voltar. Eu vivi bem assim", respondeu-lhe. 


Afinal era judia 

A filha, porém, não se conseguia imaginar a "viver bem" nestas circunstâncias e  não se contentou com a resposta do pai, começando a fazer perguntas sobre as origens da família. "Perguntei ao meu pai de onde é que éramos originais, ao que me respondeu que tinha ouvido rumores que éramos egípcios. Então fui ao Google e procurei: origem do nome Iskandarani". A primeira resposta do motor de busca deixou-a estupefacta. "Encontra a tua linha ancestral Iskandarani judaica na Argentina", leu. "Consegues imaginar? Eu sou árabe, palestiniana e de repente estou a ler que a origem do meu nome é judaica, quando é precisamente a origem do meu problema o facto de Israel ser anti-palestiniano desde sempre". 

Começaria assim uma busca sofrida por respostas às suas origens. No seu computador, janela após janela, surgiam especialistas em genealogia, cidadanias e foi assim que descobriu uma lista de nomes de famílias judaicos que incluíam o seu. "Pai, é possível que sejas judeu", partilhou. "Impossível! Somos palestinianos", ouviu de volta. "Então, decidi provar-lhe", relata ao Contacto com entusiasmo. 

Heba mergulhou no mundo das bibliotecas, dos documentos antigos e dos livros sobre ancestralidade. Tudo provava que o apelido de família era de origens judaicas, incluindo Rabis e figuras que tiveram um papel importante no Médio Oriente ao longo dos séculos. Tirou cópias e fotografias do que encontrou e enviou ao pai. Estava finalmente convencido que algo de interessante ali se passava e decidiu ajudá-la no seu processo de investigação. 

Seguiu-se um teste de DNA. "Pedi que estudassem apenas a linhagem do meu pai, porque da minha mãe sabemos que é libanesa pura há gerações", explica. Os resultados voltaram e foram "chocantes": "És 0% do Médio Oriente. A linha de sangue do teu pai é uma das proeminentes judaicas, cerca de 50% do norte de África e 50% Península Ibérica", declarando assim que as suas raízes são sefarditas- o termo usado para descendentes de judeus originários de Portugal e Espanha. 

Com as provas dadas, o pai de Heba Nabil concordou juntar-se à busca de soluções para a falta de reconhecimento internacional da sua identidade. Heba contactou advogados israelitas e judeus mas todos lhe negaram o caso "Em que é que estás a pensar? És muçulmana não há forma alguma de tratar disto", ter-lhe-ão respondido. 

Mais uma vez, através do motor de buscas mais conhecido do mundo, Heba acabaria por encontrar um advogado com base em Barcelona, Giorgio Guarneri, que lhe disse "somos todos cidadãos do mundo, com todos os documentos que tem nas mãos tenho uma forte sensação de que vai ser possível".

Apesar de todas as fotografias aos livros que havia encontrado, estes não eram considerados documentos de apoio ao processo, sendo por isso necessário recolher os documentos de identificação da família. 

"A minha sorte foi que o meu avô paterno guardou sempre todos os possíveis documentos numa caixa em Beirute e pediu à minha avó que nunca se perdessem, porque poderiam vir a ser úteis um dia". Heba, que diz que "parece que ele previu isto tudo". Viajou para o Líbano, encontrou a caixa e os ditos documentos. E as surpresas não ficaram por aí. 

É ao deparar-se a identificação do avô paterno que se apercebe que a família toda o conhecia com um nome diferente do que estava no papel. "Eu nunca conheci o meu avô paterno e ele era muito reservado, ninguém sabia muito sobre ele. Na família, toda gente dizia que ele se chamava Ahmad Ahmad mas nos papéis dele eu encontrei uma identificação com o nome Ahmad Ayyoub Iskandarani". A família recebeu a notícia com descrença. 

Mais tarde, Heba viria a descobrir um segundo documento que pressupõe que Ahmad terá mudado a sua identidade ao chegar ao Líbano. "Nunca ninguém soube de nada, a família toda foi apanhada de surpresa. Levou para a cova o segredo dele e deixou os documentos". 

Heba teve de reconstruir a sua árvore genealógica, viajar 600 anos na história e não quis publicar no Facebook o documento devido "à presença de alguns judeus que são de alguma forma próximos da minha família", a jovem diz que não quis causar turbulência nas redes sociais. "Há pessoas que não sabem lidar bem com isto tudo, demorei três anos a escrever a publicação no Facebook que conta a minha história. Tenho medo de não ser aceite por nenhum dos lados", explica. 

Enquanto desenhava as ramificações antigas da sua família, começou a aperceber-se que todos os tios-avós tinham nomes judaicos. "Não havia um único nome muçulmano, de Moisés a Rúben, Zacarias ou Jacó, David, todos estes nomes faziam parte da minha família e nunca ninguém questionou por um segundo porque é que temos estes nomes na nossa família? A única certeza partilhada era que somos todos palestinianos e fomos expulsos de lá passados tantos anos graças à guerra", conta enquanto descreve a reação dos membros da família que agora lhe dizem "agora faz sentido! Estes nomes eram estranhos entre os tradicionais nomes palestinianos!".

Mas as descobertas continuavam. Depois de uma pasta repleta de documentos que foram "mesmo muito difíceis de encontrar", as autoridades espanholas exigiram mais provas. Entre eles estava um documento que provasse a identidade da bisavó paterna. "Não conseguíamos descobrir esse documento. Foi tão, mas tão difícil. Tentámos em vários lugares, inclusive arquivos Libaneses, mas trataram-nos super mal". 

A mãe de Heba acabaria por viajar até Beirute, à casa de família e foi lá no meio de muitos arrumos que  descobriu uma identificação da bisavó paterna. Latife Djerbi: ali estava o bendito documento, também ele com um novo sobrenome de origens judaicas, conectado ao norte de África. 

Heba, juntamente com os quatro irmãos, o pai e um tio reuniam agora todos os documentos necessários para prosseguir com os processos de pedido de nacionalidade, tanto em Portugal, quanto em Espanha. 

Os seis iniciaram o processo em Portugal, mas em Espanha apenas Heba e dois irmãos iriam tentar a sorte, já que lhes seria exigido um "enorme desafio" que nem todos estavam capazes de enfrentar: "tivemos três meses para aprender a língua, fazer dois níveis e um exame de nacionalidade", explica. "Fiquei tão obcecada com aquilo, estudei todos os dias. Dizem que não se aprende uma língua da noite para o dia, mas eu tentei tudo", conta orgulhosa. "Toda esta devoção que tivemos em família, acredito que teve impacto na manifestação de tudo isto". 


Um advogado teimoso

Giorgio Guarneri, advogado que trabalhava num escritório que prestava assistência a famílias descendentes de judeus sefarditas em Barcelona, disse ao Contacto que se lembra que Heba lhe telefonou "sem qualquer expectativa", inquirindo sobre a lei que entrou em vigor a 1 de outubro de 2015 e concede a nacionalidade espanhola aos sefarditas, apresentada como uma reparação histórica aos judeus expulsos de Sefarad há 524 anos. 

O facto de não ter quaisquer provas na mão, fez com que fosse rejeitada por todos os advogados anteriores. "Esta é a razão pela qual nenhuma firma de advogados quis aceitar o seu caso, dada a "luta" que teria causado, a fim de encontrar e estruturar as provas certas", explica. 

No entanto, considera-se um "advogado teimoso" que "não podia negar-lhe ajuda". Sem promessas e apenas motivado pela paixão que tem ao seu trabalho, descreve que "não foi fácil", especialmente porque a Federação de Comunidades Judias em Espanha, a única autoridade com direito a confirmar se alguém é "descendente de judeus sefarditas", "parecia não aceitar as provas, muito valiosas, reunidas com a Heba até ao momento". 

A resistência fez com que procurasse outra direção, consultando uma lista de "investigadores sefarditas autorizados", os únicos que podem emitir relatórios genealógicos que poderiam ter sido utilizados para tais pedidos de cidadania. 

"Qualquer outro relatório, emitido por um académico não incluído nesta lista, não era para ser considerado pela FCJE. Por conseguinte, contactei todos os investigadores da lista, mas, infelizmente, nenhum académico estava interessado no seu caso", lamenta. "Ou, se alguém estava interessado, apenas sob o pagamento de uma quantia considerável de dinheiro, não acessível a todos. Heba estava quase a desistir, mas graças à nossa determinação e aos meus contactos, encontrei um investigador sefárdico, o Prof. Roger Martinez que, no entanto, não estava na lista aprovada pelo Governo espanhol", descreve.

Os conhecimentos e perícia deste especialista eram "demasiado interessantes e úteis", para não recorrerem a ele. Depois de negociarem "um pouco", e "apelando também ao seu lado humano", acabou por aceitar o seu estudo de caso sob o pagamento do que considerávamos uma taxa justa. 

"Após um par de meses, as suas descobertas foram incrivelmente úteis, uma vez que basicamente conseguimos seguir as primeiras raízes da família de Heba", explica o advogado. "Para além dos documentos que eu e Heba reunimos no início, tínhamos também o relatório muito informativo emitido pelo Prof. Roger Martinez. No entanto, como ele não estava incluído na lista de investigadores, tivemos sempre de gerir as nossas expectativas".

Segundo Giorgio Guarneri, quando tudo estava quase perdido, recebeu "uma bela notificação da FCJE, confirmando as raízes sefarditas de Heba, e a emissão do seu certificado". Trata-se de "um caso muito raro", em que um relatório emitido por um académico não autorizado, foi aceite como prova adequada.  

Para o advogado que tem também ele migrado ao longo destes últimos 10 anos, "qualquer pessoa tem de ter o direito legal de circular livremente e estabelecer a sua vida quando mais lhe agrada, sem qualquer restrição".

Além do mais, o seu grande interesse na geopolítica do Médio Oriente, e o apoio "desde sempre" à causa palestiniana, não lhe permitiram que "deixasse a Heba sem qualquer esperança". 

E põe a questão: "E se eu estivesse na sua situação e ninguém me ajudasse? Somos todos seres humanos, e vimos todos do mesmo lugar. Quem sou eu para excluir a possibilidade de alguém mudar a sua vida? A minha ética obriga-me a ajudar qualquer pessoa que procure uma vida melhor. Só posso imaginar o que significa estar na situação de Heba. Sendo um cidadão da UE, não tenho as mesmas restrições que alguém como ela", comenta. 

Uma história como a de Heba é, do seu ponto de vista, "inaceitável em 2020" e considera que é dever profissional e moral, "pelo menos tentar e mudar as coisas". Hoje está verdadeiramente feliz, "não podem imaginar o que significa para mim ver um cliente/amigo com um passaporte espanhol; não há palavras para explicar o quão satisfatório, mais a nível humano, do que profissional, o meu trabalho pode, por vezes, ser". 

Em Portugal, a burocracia

Em terras lusas, é Eva Garcia quem tem guiado o caso de Heba e da sua família. Mas o processo tem enfrentado vários entraves e dificuldades que se prendem "essencialmente com o excesso de burocracia e um atraso sem precedentes na tramitação dos processos", explica.

Segundo a especialista, um processo desta natureza é analisado, pela primeira vez, de um ano e meio a dois anos após a entrada do processo na conservatória. Só depois deste período, é que serão confrontados com pedidos de esclarecimentos ou documentos adicionais, sendo que entre cada resposta e nova análise, distam pelo menos mais três a seis meses.

"A Conservatória não tem meios humanos suficientes para tratar do crescente número de solicitações, colocando oficiais de registo sem formação jurídica a redigir ofícios que deveriam ser devidamente fundamentados em matéria de direito e não o são, em sucessivos atropelos do Processo Administrativo", explica.  

O resultado, segundo Eva Garcia, traduz-se, "vastas vezes", em "pedidos desprovidos de razoabilidade". Em causa está, por exemplo, terem requerido um novo certificado emitido pela Comunidade Israelita porque, no certificado enviado, diz-se que o requerente é natural de Beirute, Palestina,  um "evidente lapso material". 

"Ora, um tal erro, por lei, jamais poderia conduzir ao indeferimento do pedido, sendo desprovido de razoabilidade, num processo que leva já mais de ano e meio, oficiarem o requerente a pedir um novo certificado que vai demorar um ano a ser emitido, sem fundamento legal para o fazer", explica.

Para melhorar ainda o cenário burocrático, Eva Garcia afirma que qualquer ação judicial da qual pudessem "lançar mão", demoraria pelo menos dois a cinco anos a ser concluída e o processo de nacionalidade fica suspenso durante esse tempo. 

"O interesse do cliente é ter o seu direito reconhecido em tempo útil. Isto leva a que, mais das vezes, optemos por aceder aos pedidos infundados, porque o acesso à via judicial, é, nestes casos, absolutamente inútil", comenta Eva Garcia.

Remediar o passado

"Não é uma situação comum ter de viajar tão longe no tempo para a conquista de uma pátria. Até porque esta viagem emerge do contexto muito específico de uma comunidade ancestral e das atrocidades que foram continuadamente vítimas ao longo dos séculos", explica a advogada cujos tetra-avós foram também cristãos novos no final do sec. XVIII.

"Mas não precisamos de viajar muito atrás no tempo para nos depararmos com a necessidade do Estado Português legislar sobre o que sucederia com os cidadãos nascidos portugueses na sequência do movimento de libertação colónias portuguesas- se o fez bem ou mal, já é outra história", comenta. 

Segundo a advogada, a decisão política do Estado em decidir “reparar” os danos causados pela perseguição dos judeus sefarditas no passado, forçando-os ao batismo católico se por cá quisessem permanecer, surge de uma iniciativa popular através de uma petição pública que trouxe à atenção do legislador a vontade que os descendentes destes antepassados tinham em retomar as ligações às suas origens, estando impossibilitados de o fazer em razão da expulsão e do exílio dos seus antepassados.

"O sentido de identidade de um cidadão com a sua pátria é uma ligação muito forte que não se perde no tempo. Tem de ser acautelado. É uma área fascinante. Esperemos continuar a testemunhar situações em que os estados que se preocupam em não deixar os erros do passado cair no esquecimento, e a ter vontade de os reparar, mesmo que 600 anos depois".

 A Identidade palestiniana

"Se isto já veio de tantas gerações da minha ancestralidade, sempre em busca de um lar, de uma identidade, se calhar no meu subconsciente este sentimento de não pertença e de me sentir inferior por não ter documentos já uma percepção amplificada", comenta Heba ao analisar esta odisseia. "Uma senhora disse-me que eu agora quebrei este ciclo na minha família e que não só para mim, mas para todas as gerações passadas". 

O mesmo não acontece com toda a sua família no Líbano. "Eles estão todos presos em campos de refugiados e isso deixa-me doente. É mesmo muito triste. Se conseguirmos a nacionalidade ao meu pai, vamos tentar para eles também".

Neste momento, está feliz que conseguiu finalmente um passaporte através de justiça, mas ao mesmo tempo tem medo que a sua identidade palestiniana seja posta em causa por ter descoberto as suas raízes judaicas.

Rami Rmeileh, um refugiado palestiniano de terceira geração, nascido e criado no campo de refugiados de Burj Barajneh, no Líbano, explica que "os palestinianos no exílio partilham uma identidade e significados comuns a ela associados. Estes significados são produtos de uma história traumática coletiva de deslocação, atrocidades e injustiça atual. No entanto, alguns países árabes impõem a única identidade e narrativa palestiniana, como se a posse de uma outra identidade representasse uma ameaça à identidade e causa palestinianas".

Atualmente, Ramy faz parte do programa europeu Global-MINDS, num Mestrado em Psicologia da Mobilidade Global, Inclusão e Diversidade e trabalha especificamente em áreas de como o trauma colectivo, identidade, e emoções. 

"Esta narrativa estabelece vários desafios que privam os refugiados palestinianos nos países árabes de acolhimento dos seus direitos civis e humanos fundamentais. Esta negação viola vários tratados e convenções internacionais fundamentais, incluindo a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a Convenção Relativa ao Estatuto dos Apátridas (1954), o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (1966), e o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (1966)", esclarece.

O jovem que se diz parte de uma geração de "imaginários políticos inovadores"  no que diz respeito ao "Regresso" e à resolução de conflitos, explica que "os refugiados palestinianos são esquecidos pelas autoridades palestinianas, pela Liga Árabe, e pela comunidade internacional. O trauma intergeracional é subestimado e forçado".

A todas estas ramificações familiares "é-lhes pedido que não usufruam de uma vida decente e digna até que o "direito ao regresso" seja estabelecido, mantidos, como que 'em pausa', em campos de refugiados desde 1948. 

"Gerações inteiras são criadas com uma identidade que paga o preço de quem não tem outra escolha. E deles espera-se que lutem com recursos limitados e reconhecimento. São vítimas de um conflito geopolítico", comenta ao Contacto por Whatsapp . 

Para Ramy é bastante claro, "tudo o que estas pessoas exigem é uma solução prática que facilite as suas vidas, ambições e esperança. Apesar de ainda serem "palestinianos", sem terem de recuar 600 anos para conseguirem singrar".

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