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domingo, 18 de setembro de 2016

A INQUISIÇOM PORTUGUESA

José Hermano Saraiva

Foi na sequência da reforma promovida pola Europa contestatária artesã, reformista e revoltada contra Roma que surgiu a Inquisiçom. Portugal, pola sua posiçom geográfica, composiçom social, estado económico e condições políticas (João III era cunhado de Carlos V e este era o grande suporte político da Europa fiel a Roma), alinhou nesse conflito no bloco ocidental contra o bloco protestante. Porém, em Portugal faltava quase completamente o motivo da repressom, pois a heresia luterana nom se fez sentir. Por isso, o objeto da repressom antirreformista foi em Portugal substituído por um outro: a questom judaica.

A questom judaica era umha realidade em Portugal. Muitos Judeus, convertidos à força, continuavam a ser Judeus por dentro, embora ostensivamente praticassem os atos do culto cristão. [Neste sentido] o judeu Maimónides [1138-1204] escrevera a sua "Epístola sobre a Apostasia", na qual defendia o criptojudaísmo, isto é, o direito moral a professar intimamente umha crença e aparentar que se professava outra. A frase feita "o credo na boca" é umha boa síntese desta situaçom.


Ora a prática de judaismo por quem já tivesse sido baptizado era considerada um crime de apostasia, punido com a pena de morte e o confisco da fortuna. Este último aspeto assumiu muito interesse quando se agravaram as dificuldades económicas do Estado, porque muitos homens de ascendência judaica possuíam grandes fortunas. A represssom do criptojudaísmo, isto é, do culto judaico secreto, podia tornar-se umha opotuna fonte de receita.

Em 1531, D. João III pediu ao papa a licença necessária para a organizaçom da Inquisiçom em Portugal. Os cristãos-novos mobilizaram toda a sua força económica para o impedir, afirmando que o que se pretendia era apenas espoliá-los. Existe muita documentaçom sobre essa luta diplomática e a sua leitura obriga a dar razom aos Judeus: a questom do confisco das fortunas teve papel fundamental.

A bula da Inquisiçom foi concedida em 1536 embora já desde 1534 houvesse um inquisidor e seja deste último ano o procedimento contra Gil Vicente [considerado o primeiro grande dramaturgo português, a teor do seu prestígio dirigiu-se ao monarca através dumha carta defendendo os cristãos-novos em 1531]. O primeiro auto-de-fé realizou-se em 1541. Nos 143 anos que vam até 1684 foram queimadas 1379 pessoas. Depois, o ritmo desceu, mas as execuções continuaram até ao tempo do Marquês de Pombal. O maior número de condenados à morte é formado por acusados de judaísmo, mas há muitas condenações por feitiçaria e por depravaçom de costumes.
As fogueiras da Inquisiçom desacreditaram Portugal em toda a Europa
As fogueiras som, dentre as várias formas assumidas pola atividade inquisitorial, o que, pola sua publicidade espetacular, se tornou mais célebre e o que ainda hoje causa maior horror. Mas houve outros aspetos menos visíveis, mas de consequênicas nom menos grave: a dimensom da denúncia e a censura inteletual.

Denunciar um delito contra a fé era considerado um dever religioso, e isso numha época de religiosidade profunda: o dever religioso sobrelevava qualquer outro. O crente era, em consciência, obrigado a denunciar qualquer facto ou aparência de facto que, na sua opiniom, revelasse judaismo ou desrespeito pola fé. Houve denúncias por cousas insignificantes e houve denúncias por má-fé: inveja, vingança, ciúme. Mas o que mais conta é essa inclusom do dever de denuncia no número dos deveres para com Deus; a denúncia deixou de ser umha vileza odiosa e sórdida e foi proclamada como piedosa virtude. Todo o País era religioso, e por isso durante dous séculos todo o País serviu de polícia a si próprio. Foi a operaçom policial de maior duraçom e de maior envergadura que a história portuguesa regista e durante ela toda a gente viveu entre o dever de denunciar e o terror de ser denunciado. Isto explica o número extraordinariamente alto de processos que ainda hoje existem: mais de 20.000, sabendo-se que muitos outros se perderam.


Do rigor e fanatismo com que foi perseguida pode-nos dar ideia este facto anedótico: era perigoso possuir bonecos de barro de Estremoz, porque se podia ser denunciado à Inquisiçom. Entom como agora, esses bonecos representavam muitas vezes bovinos; e o povo confundia a palavra toura (aportuguesamento de Torá, "Pentateuco ou Bíbilia judaica") com a palavra toura, feminino de touro...

Na realidade, o Santo Ofício foi já umha manifestaçom de decadência e prolonga umha linha de intolerância que lhe é anterior, atestando-se, por exemplo, na política antijudaica de D. Manuel. A atividade inquisitorial pôde exercer-se sem fortes reações internas, porque nom existia umha classe média com independência económica e mental, e também esta situaçom lhe é anterior. (...) Foi ela que institucionalizou e interiorizou o espírito de intolerância, que é o lado mau da alma portuguesa. Organizou e forneceu base moral à denúncia e ao genocídio cultural.


Duas causas fundamentais da decadência: a repressom inquisitorial, com o isolamento e paralisaçom das iniciativas culturais que provocou, e a crise económica e política que culminou com a perda da independência e que conduziu a umha situaçom de depressom e de desánimo incompatível com o brilho das letras e das artes.

Embora [o séc. XVII] foi um século decisivo no caminho do conhecimento e da ciência, bem como as letras e as artes, corresponde em Portugal (sob o jugo espanhol e da inquisiçom) umha época apagada. Nom ocorre o nome de algum grande escultor, pintor, dramaturgo, pensador, cuja omissom constitua lacuna imperdoável. Dentre os maiores nomes europeus, alguns tem relaçom com Portugal: Espinosa era filho dum judeu português que a Inquisiçom obrigou a fugir para Holanda. Evitava-se os temas quentes e as inovações que podiam chamar a atençom do inquisidor português ou do governador espanhol e, para poder sobreviver, aninhou-se nos grandes subterfúgios do estilo, da história, do irracionalismo, das artes menores.

Os Jesuitas nom tinham as mesmas ideias que a Inquisiçom acerca dos cristãos-novos e admitiram-nos nas suas escolas. O mais ilustre jesuíta português, o Padre António Vieira, defendeu os Judeus e esteve preso na Inquisiçom.


Em 1640 o poder económico estava concentrado principalmente no clero e na nobreza, classes nom interessadas numha mudança das instituições políticas; os homens de negócios com grandes fortunas eram quase só os cristãos-novos, e esse facto retirava-lhes toda possibilidade de atuaçom política. alguns capitalistas que proporcionaram ajuda a D. João IV foram presos pola Inquisiçom. Assim que a monarquia que se quis "restaurar" foi a monarquia tradicional.

[Por isso, para financiar a guerra de independência contra Espanha (1640-68)] o P. António Vieira defendeu que havia que arranjar dinheiro português que estava em mãos dos Judeus portugueses e cristãos-novos que foram expulsos de Portugal e que estavam na Inglaterra, Holanda, Itália e França e que tinham grandes empresas, grandes companhias e grandes fortunas. Ele achava que era preciso atrair toda essa gente de novo em Portugal e para isso habia que acabar com essa odiosa diferença entre cristãos-velhos e cristãos-novos. Era preciso acabar também com a brutalidade da Inquisiçom que comete crueldades e que desacredita a Portugal em toda a Europa. Era preciso juntar todos os portugueses pola liberdade e pola vitória nacional...

[De resto,] o P. António Vieira representa a tendência e umha literatura com base num puro culto da forma que leva a usar a palavra como algo que vale por si, desligado da ideia. Esgotou o talento a puxar o brilho às palavras e realizou com elas os mais belos espetáculos verbais jamais conseguidos na língua portuguesa.

A única corrente filosófica europeia que teve eco em Portugal foi a cabala que, embora nom seja propriamente umha filosofia, constituiu umha irrupçom de irracionalismo, ocultismo e messianismo que situa a meio caminho entre a gramática e a nigromancia. Os dous homens mais importantes do século XVII, D. Francisco Manuel de Melo e o Padre António Vieira acreditaram firmemente na cabala. A cabala foi o único que veio de fora, nem o método nem os logaritmos (outra profunda meditaçom sobre os números, mas baseada no pensar e nom no crer), nem a física.


Fugidos aos perigos que a Inquisiçom continuava a representar [no século XVIII] para os intelectuais, sobretodo quando pudessem ser acusados de judaizantes (caso de Jacob de Castro Sarmento, de Ribeiro Sanches). A esses intelectuais, consciencializados no estrangeiro e defensores da adopçom de ideias, métodos e correntes literárias estrangeiras, deu-se o nome de estrangeirados.


*José Hermano Saraiva (1919-2012) foi um advogado, professor e historiador português que desenvolveu um imenso trabalho como divulgador em prol da História, da Cultura e da Literatura. Passagens tiradas da "História concisa de Portugal", transcritas para o galego-português.

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