segunda-feira, 2 de novembro de 2015

OS JUDEUS PORTUGUESES DE HAMBURGO

Os primeiros Judeus que assentaram nos arraiais de Hambugo foram Judeus portugueses que chegaram a essa cidade alemã em 1590 depois de passar por Antuérpia e/ou Amsterdão fugindo da opressom do reinado dos filipes nos reinos de Espanha e Portugal. Houve casos de famílias a separarem-se em dous ramos entre a Alemanha e os Países Baixos.
Quando os tripulantes e donos dos barcos que traziam os refugiados portugueses solicitaram autorizaçom de residência, esta foi-lhes concedida. Os registos indicam que em 1595 havia sete famílias portuguesas em Hamburgo.

Embora ao princípio tentaram ocultar a sua origem étnico-religiosa, quando foi descoberta a sua judeidade alguns vereadores (Burgerschaft) e o clero luterano reclamaram em 1603 a sua expulsom ao governo local. Assim sendo, o Senado da cidade consultou a opiniom ao respeito das faculdades de teologia luterana de Jena e Francoforte-do-Oder as quais, após muitas negociações, acordaram que os Judeus portugueses seriam tolerados, em troca do pagamento de impostos pola sua proteçom. Receberiam o estatuto de estrangeiros residentes, nom podendo praticar o culto judaico em público. 

Nesta decisom das autoridades alemãs pairavam os benefícios económicos que a sua presença podia acarretar nom apenas polos impostos, mas também porque o facto de serem comerciantes a sua atividade contribuiria para reforçar as relações internacionais de Hamburgo. Na sua resposta, o Senado destacou a origem portuguesa desses comerciantes estrangeiros que na altura de 1609 abeiravam a centena de pessoas.


No Norte da Europa o termo Português já era comum na designaçom dos Judeus serfarditas conversos, fossem eles de origem espanhola ou portuguesa. 

Como nom estava permitida a abertura de cemitérios próprios a nom luteranos na cidade, em maio de 1611 três Judeus portugueses compraram umha courela em nome das congregações que já existiam na cidade. A terra estava localizada em Heuberg, na atual Königstrasse, no bairro de Altona, nessa altura dependente do condado do Holstein. O cemitério, usado até 1871, seria alargado em várias ocasiões durante os séculos XVII e XVIII. O primeiro enterramento neste cemitério sefardita teve lugar em 1611, data gravurada na campa mais antiga que se conserva.



Ao abrigo de regulamentações comerciais (Kaufmannshantierung) que o Senado concedia a todos os comerciantes estrangeiros, em 1612 o próprio Senado assinou um tratado com a “natio lusitana” que garantia aos Judeus portugueses residência e plena liberdade no exercício das suas profissões, impondo-lhes, todavia, grandes restrições no domínio religioso. Segundo umha lista nessa altura a comunidade sefardita estava formada por 125 adultos, para além de funcionários e crianças. 

Os Judeus portugueses conseguiram a igualdade de direitos para a exportaçom e importaçom,  o que significou que poderiam desenvolver as suas relações comerciais,  nom apenas com familiares e parceiros em Portugal, mas também nas novas colónias. Previamente, no início do século XVI, o rei D. Manuel I concedera privilégios a Hamburgo que, pola sua vez, enviara o seu primeiro cônsul para Lisboa em 1566.

Com as suas atividades, os mercadores portugueses, aliás em sintonia com outros grupos estrangeiros, sobretudo Holandeses e Ingleses, deram novo fôlego a Hamburgo que naquela altura atravessava uha fase difícil em consequência do declínio em que tinha entrado a Liga Hanseática. O porto de Hamburgo ficaria ligado ao novo pivot comercial que já nom era o Mediterrâneo nem o Báltico, mas sim o estuário do rio Tejo.

O tratado assinado com o Senado era renovável a cada cinco anos e em 1617 os cristãos-novos portugueses obtiveram o direito de eleger quatro representantes dentre a comunidade para integrar a Bolsa de Hamburgo (o primeiro mercado de valores da Alemanha), sendo aumentada posteriormente essa representaçom para quinze. Logo a seguir é duplicada a taxaçom que os Judeus deviam pagar à cidade e que em 1612 era de 1000 marcos.

À vez que se estabelece a comunidade sefardita, a partir de 1610 chegam a Hamburgo os primeiros grupos de Judeus asquenazitas, os quais, no entanto, a princípio, apenas podiam trabalhar como empregados nas empresas ou famílias sefarditas. Sem qualquer reconhecimento legal, a congregaçom asquenazita nom se irá formar até a década de 1660. 

Os Judeus portugueses encetaram e impulsionaram o comércio com a Espanha e Portugal e as suas colónias. Por exemplo, em 1621, 85 barcos vindos de Hamburgo aproaram para Lisboa, mais do que para os outros portos ibéricos juntos. E, em 1623, aportaram em Hamburgo 101 navios portugueses, quer dizer, o dobro dos barcos espanhóis. Foi através dos portugueses e das suas actividades comerciais que importaram gêneros coloniais (Kolonialwaren), como várias especiarias, o açúcar de cana, o café, o tabaco, algumas fazendas como a chita, pedras preciosas e corais. A importaçom daqueles artigos luxuosos contribuiu para a formaçom dum estilo de vida mais requintado da burguesia desta metrópole do Elba. Um outro artigo de luxo introduzido polos Judeus portugueses sefarditas foram as faianças, conhecidas de «Hamburger Fayencen», mas que eram feitas por encomenda em Portugal e depois exportadas para Hamburgo. Entre as mercadorias menos luxuosas destaca o sal marinho, preferido ao próprio sal-gema alemão, e a marmelada. Como no caso da comunidade de Bordéus, os Judeus portugueses despontaram no tráfico de escravos, “mercadoria” muito cobiçada polos capitalistas alemães.

Para além do comércio, os Judeus portugueses envolveram-se no comércio grossista, como financeiros, construtores navais, tecelões ou ourives, o que ajudou muito a impulsionar o comércio da cidade. De facto, em 1619 tiveram um papel proeminente na fundaçom do primeiro Banco de Hamburgo, encontrando-se quatro portugueses entre os seus fundadores, entre os quais o abastado António Faleiro.

Registos de 1627 atestam a existência dumha Esnoga (Talmude Torah) frequentada polos Portugueses da Naçom hebreia na casa de Eliah Aboab Cardoso. O imperador Fernando II de Habsburgo encaminhou umha queixa ao senado sobre esta “sinagoga”, já que nom estava permitido que os católicos abrissem umha igreja em Hamburgo nessa altura. Porém, apesar deste protesto e dos ataques violentos do clero luterano, o Senado hamburguês continuou a proteger. O primeiro rabi oficial chegou da Veneza. Também se abriram mais duas sinagogas (Keter Torah e Neveh Shalom). Em setembro de 1652 as três congregações uniram-se na grande Esnoga Portuguesa de Hamburgo sob o nome Beth Israel e cujo Rabi-chefe (rabino da nação) foi erudito David Cohen de Lara.

O fim do armistício entre Espanha e os Países Baixos em 1621 faz com que Judeus portugueses fixados em Amsterdão rumem para Hamburgo e outras cidades do norte (Emden, Stade ou Glückstadt). Em consequência, em 1650 a comunidade judaica sefardita de Hamburgo está formada por 1.200 "portugueses", número muito significante, levando em conta que naquela altura a cidade tinha só 30.000 habitantes. 

Com o intuito de inserir a Dinamarca no comércio de especiarias e diamantes, controlado polos mercadores Judeus portugueses, em 1622 o rei Christian IV, convida aos Judeus conversos Portugueses de Amsterdão estabelecerem-se em grandes centros comerciais do seu reino, como Glückstadt, cidade alemã sob o controlo dele. Em consequência, os Judeus portugueses concentraram-se nos ducados de Holstein e  Schleswig, onde mantinham suas Esnogas.


Entre a comunidade havia elementos distinguidos pola sua riqueza e influência política dentre os quais os reinos da Suécia, Polónia e Portugal nomearam Judeus portugueses como os seus embaixadores em Hamburgo. Outros membros eram responsáveis dos assuntos financeiros de reis. O caso mais notório é o do rico e poderoso Manuel Teixeira, cônsul e conselheiro de finanças da rainha Cristina da Suécia. Foi graças aos seus residentes portugueses que Hamburgo se tornou num lugar de destaque no palco diplomático e na vida mundana.

Entre os proeminentes membros da comunidade sefardita que moravam em Hamburgo estava o físico e autor Rodrigo de Castro (1550–1627), da família de Castro, considerado maior médico do seu tempo, assistindo a doentes que se espalhava por toda a Europa, incluindo vários reis e membros da alta nobreza. Autor de vários livros, nascera em Lisboa no seio de uma família de ilustres médicos e chegou a Hamburgo via Antuérpia.

Os Judeus portugueses fixados em Hamburgo mostraram também um talento especial para as línguas, entre os quais, o lexicógrafo e físico Benjamin Mussafia (1609–72), o gramático e escritor Moses Gideon Abudiente (1602–88), autor da Gramâtica Hebraica, o rabi e escritor Abraham de Fonseca (finado em 1651) e o poeta José Arefati (f. 1680). Samuel Habas, professor e prestigiado dirigente da comunidade portuguesa de Hamburgo, deixou uma biblioteca com mais de 1100 volumes, a qual, após a sua morte, em 1691, foi leiloada em Amesterdão. O judeu de naçom portuguesa Manuel Teixeira, por exemplo, dominava cinco línguas: além de português e alemão, falava espanhol, francês e italiano. E ainda no século XIX, a grande figura dos grémios literários de Berlim, Henriette Herz, filha do médico de origem judia galego-portuguesa de Hamburgo Benjamin de Lemos (1711-89), um médico conhecido que foi diretor do hospital judaico de Berlim, falava nada menos do que dez línguas.

«Die Portugiesen», como eram conhecidos entre a populaçom de Hamburgo foram portadores de nomes bem galego-portugueses como Andrade, Teixeira, Rodrigues, Matos, Faleiro, Dinis, Mendes, da Costa, Cardoso, de Castro, Brandão, para mencionar alguns exemplos. Só para uso interno dentro da comunidade judaica, assumiram nomes hebraicos e para o comércio marítimo deram umha forma germânica aos seus nomes (por exemplo, João Francês foi mudado para Hans Franzen e Paulo de Milão para Paul Dirichsen). Tratou-se dumha manobra para ludibriar a Inquisiçom o que, aliás, nom resultou devido a traidores, e por isso os arquivos da Inquisiçom na Torre do Tombo são a fonte de informaçom mais exaustiva sobre os portugueses de Hamburgo.

Naturalmente falavam português entre si e essa língua continuou a ser meio de comunicaçom até ao séc. XVIII. Ainda em 1785, Abraão Meldola publicou a sua Nova Grammatica Portugueza, enquanto as inscrições nas lápides das campas do cemitério na Königstraße, tal como os registos e a correspondência da comunidade, são em português durante grande parte do séc. XIX.

Quando os Judeus portugueses começaram a construir umha sinagoga, em 1673, espalhou-se uma onda antissemita e o Senado da cidade-estado mandou arrasar o edifício, que ainda estava em obras. Nos fins 1697 os editais municipais puseram em causa  a liberdade religiosa obtida polos Judeus portugueses ao serem submetidos a umha taxaçom anual muito elevada (6.000 marcos). Em consequência  muitas das ricas famílias judaico-portuguesas começaram a deixar a cidade rumando para Amsterdão ou o bairro de Altona (desde 1640 enclave dependente da Dinamarca e onde já existia o cemitério judaico). As brigas internas e especialmente a retirada de Jacob Abensur, ministro residente de Augusto II o Forte, bem como dos seus seguidores provocaram o declínio da comunidade sefardita de Hamburgo. 

A severa regulamentaçom anti-judaica tornou Hamburgo numha cidade hostil para os Judeus portugueses e foi preciso esperar pela liberalização do século XIX para a vida regressar à normalidade.

Nos inícios do século XVIII inicia-se o declínio cultural e social da comunidade sefardita de origem portuguesa, em parte devido à ascensom dos judeus asquenazitas. Em 1710 umha comissom imperial fixou o estatuto dos Judeus asquenazitas e sefarditas de Hamburgo através do "Reglement der Judenschaft in Hamburg sowohl portugiesischer als hochdeutscher Nation" (Regulamento da Judiaria de Naçom portuguesa e alto-alemã de Hamburgo), promulgado em nome do Imperador José I. Doravante este édito tornou-se na legislaçom fundamental que regulou o tratamento dos Judeus em Hamburgo. 

No entanto, os Portugueses, orgulhosos da sua nobre linhagem, rejeitaram terem sido colocados no mesmo nível que os Judeus alemães e isolaram-se a cada vez mais, o que contribuiu para o declínio referido. Umha outra parcela, constituida por treze famílias, migrou em 1703 para Altona, onde construiram em 1770 a comunidade de Neveh Shalom. Em Altona os judeus asquenazitas, diferentemente dos Judeus Portugueses, eram obrigados a visto e pagamento de impostos para viverem sob a coroa dinamarquesa.

Com a anexaçom de Hamburgo em 1810 ao primeiro Império Francês, os habitantes tornaram-se em cidadãos franceses com igualdade de direitos, salvo os Judeus, discriminados polo chamado decreto infame. A congregaçom sefardita Beth Israel passou a depender do Consistório Judaico Francês. Em 1814 Hamburgo recuperou a sua independência como cidade-estado, sendo restaurado o velho Regulamento da Judenschaft consoante a Confederaçom Germánica.

Em 1842 a principal Esnoga portuguesa em Alter Wall foi queimada no grande incêndio da cidade. Entre 1855 e 1935 os sefarditas possuiram um pequeno prédio comunitário em Markusstrasse 36. 

As reformas liberais de fevereiro de 1849 trouxeram o reconhecimento dos direitos de cidadania para os Judeus de Hamburgo (Emancipaçom judaica) ao adoptar a cidade-estado a legislaçom da Assembleia Nacional de Francoforte. Em Altona, dependente da Prússia desde 1866, os Judeus conseguiram a cidadania em 1863 através dumha lei dinamarquesa. Porém, em 1887 a comunidade foi dissolvida devido à falta de membros.

No decorrer dos séculos XVIII e XIX produziu-se umha diminuiçom da influência portuguesa em Hamburgo e no Reino de Dinamarca. Enquanto na Judiaria de Hamburgo os Judeus portugueses perderam peso com a chegada de judeus asquenazitas, no Reino de Dinamarca as poucas familias judaicas portuguesas migraram para Amsterdão, Londres, Hamburgo e Américas. Assim sendo, no ano de 1900, nom haviam mais que 400 pessoas da Naçom Portuguesa entre os Judeus residentes em Hamburgo.


No início da era nazista os descendentes dos Judeus portugueses, entre 150-200 pessoas,  começaram a deixar a Alemanha, muitas delas em direçom a Portugal. Lisboa e o Porto tornaram-se verdadeiros portos de abrigo. Ainda durante a guerra, muitos destes Judeus saíram de Portugal em direçom à Palestina, a Inglaterra ou aos Estados Unidos. Mas nem todos conseguiram sair a tempo de Hamburgo, e a derradeira centena que nom conseguiu fugir foi deportada para os campos de concentraçom nazis de Theresienstadt, de Auschwitz, Dachau e Lodz, onde foi morta.


Durante o nazismo a comunidade sefardita de Hamburgo tornou-se na única da súa espécie na Alemanha. Enquanto todas as discriminações antissemitas abrangeram os seus membros com a mesma dureza que aos asquenazitas, a congregaçom nom foi o principal alvo de agressões ativas. Em 1935 a comunidade portuguesa deslocou-se para um prédio de Innocentiastrasse #37, em Harvestehude, deixando a velha esnoga à congregaçom asquenazita. A Esnoga nom foi atacada na noite do pogrom de novembro.

Quando Hamburgo foi  libertado em 3 de maio de 1945 polas tropas britânicas já nom havia comunidade portuguesa em Hamburgo. Ficou o cemitério da Koenigsstrasse, que sobreviveu por milagre aos bombardeamentos aliados, mas foi repetidamente profanado e as sinagogas demolidas polo regime nazi.

No pós-guerra os Judeus portugueses de Hamburgo cairam em completo esquecimento e, quando em 1989 foi comemorado o 800º aniversário do seu porto, ninguém se lembrou deles e do contributo valioso que deram ao desenvolvimento económico e cultural da cidade-estado.


Entre as pesquisas realizadas relativamente ao cemitério sefardita de Hamburgo destaca a realizada por Michael Halévy, que fez um exaustivo levantamento das suas lápides e inscrições funerárias, permitindo reconstruir as grandes linhagens da "nação portuguesa" em Hamburgo. Hoje pode ser visitado apenas por convite. 

3 comentários:

  1. Gosto do seu blogue, mas gostava de saber o motivo de escrever numa espécie de Português arcaico*.

    * - «congregaçom» e não «congregação», etc..

    Se calhar é ignorância minha, mas não conheço este dialecto.

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  2. Antes de mais, agradecer o seu comentário.
    No que diz respeito à escrita (-çom em vez de -ção, polo/a em vez de pelo/a, umha em vez de uma,...), o blogue inteiro está redigido em galego, isto é, no português da Galiza.

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    1. Obrigado pelo esclarecimento. E boa continuação.

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