quinta-feira, 18 de setembro de 2014

SIONISMO, ANTISSEMITISMO E A ESQUERDA

Moishe Postone é um académico marxista radicado na Universidade de Chicago. Para além de escrever abundantemente acerca da crítica da economía política de Marx, tem sido fundamental no desenvolvimento de teorias sobre o "antissemitismo de esquerda", analisando a forma como posições assumidas por grupos de esquerda, particularmente no que se refere ao conflito Israel/Palestina, podem tornar-se ou ser baseadas, numha hostilidade para com os Judeus. Martin Thomas falou com ele.
Q. Para muitas pessoas na esquerda de hoje, o antissemitismo parece ser apenas mais outra forma de racismo, indesejável mas por enquanto francamente marginal, e que é proeminente nas discussões apenas porque o governo israelita utiliza as acusações de antissemitismo para defletir as críticas que enfrenta. O senhor argumenta, contudo, que o antissemitismo é diferente das outras formas de racismo, e que o mesmo nom é marginal hoje em dia. Porque?
Moishe Postone: É verdade que o governo israelita utiliza as acusações de antissemitismo para se proteger das críticas. Mas isso nom significa que o próprio antissemitismo nom seja um problema sério.
A forma como o antissemitismo se distingue, e deve ser distinguido, do racismo, está ligada ao tipo e poder imaginário, atribuído aos Judeus, ao sionismo e a Israel, que está no âmago do antissemitismo. Os Judeus som vistos como constituindo umha forma global de poder imensamente poderosa, abstrata e intangível que domina o mundo. Nom existe nada semelhante a esta ideia no cerne das outras formas de racismo. O racismo, por aquilo que conheço, raramente constitui um sistema integral que procura explicar o mundo. O antissemitismo é umha crítica primitiva do mundo, da modernidade capitalista. A razom porque o considero particularmente perigoso para a esquerda é precisamente porque o antissemitismo possui umha dimensom pseudo-emancipatória que as outras formas de racismo raramente apresentam.
P. Em que medida considera que o antissemitismo de hoje está ligado com atitudes face Israel? Parece-nos que umha corrente na atitude de algumhas forças da esquerda em relaçom a Israel tem implicações antissemitas. Essa é a corrente que deseja nom apenas criticar e mudar a política israelita face os palestinianos, mas a aboliçom de Israel enquanto tal, e um mundo onde os outros estados-naçom possam existir, mas nom Israel. Deste ponto de vista, ser um judeu, sentir qualquer identidade comum com outros Judeus e, portanto, com os Judeus de Israel, significa ser "sionista", algo que será tam aberrante como ser um racista.
R. É preciso desagregar muita cousa neste âmbito. Existe umha espécie de convergência fatal dum número de correntes históricas na forma contemporânea de antissionismo.
Umha, cujas origens nom som necessariamente antissemitas, tem as suas raízes nas lutas entre membros da intelligentsia judaica na Europa do Leste no início do século XX. Umha maioria de intelectuais judaicos, incluindo intelectuais secularizados, sentiam que algumha forma de identidade colectiva fazia parte da experiência judaica. Esta identidade tornou-se crescentemente definida como nacional, em virtude do colapso das anteriores formas imperiais de coletividade; isto é, a medida que os impérios antigos, os impérios dos Habsburgo, Romanov e Prússia se desmembravam. Os Judeus na Europa do Leste, ao contrário dos Judeus na Europa Ocidental, viam-se a si mesmos como umha coletividade, e nom simplesmente como umha religiom.
Existiam várias formas desta auto-expressom nacional judaica. O sionismo foi umha delas. Havia outras, como os autonomistas culturais judaicos e o Bund, um movimento socialista autónomo dos trabalhadores judeus, muito maior do que quaisquer outro movimento e que saiu Partido Operário Social-Democrata Russo nos primeiros anos do século XX.
Por outro lado, havia Judeus, muitos deles membros de Partidos Comunistas, que viam qualquer expressom da identidade judaica como um anatema para as suas noções do que eu chamaria noções iluministas abstratas de humanidade. Por exemplo, Trotsky, numha fase inicial, referiria-se ao Bund como "sionistas enjoados". Note-se que a crítica do sionismo aqui nada tinha a ver com a Palestina ou a situaçom dos Palestinianos, umha vez que o Bund se focava na autonomia no Império russo e rejeitava o sionismo. Ao invés, a equaçom de Trostky do Bund e o sionismo implicava a rejeiçom de qualquer forma de autoidentificaçom comunitária judia. Trotsky, acho, mudou de opiniom posteriormente, mas essa atitude era francamente típica. As organizações comunistas tendiam a se opor fortemente ao nacionalismo judeu, quer se tratasse do nacionalismo cultural, nacionalismo político ou sionismo. Esta é umha das correntes do antissionismo. Nom é necessariamente antissemita, mas rejeita a autoidentificaçom coletiva judia em nome dum universalismo abstracto.
Todavia, frequentemente, esta forma de antissionismo é inconsistente, pois visa conceder a autodeterminaçom nacional à maioria de povos, salvo aos Judeus. É neste ponto que aquilo que se apresenta como universalismo abstrato torna-se ideológico. Para além disso, o próprio significado desse universalismo muda com o contexto histórico. Após o Holocausto e o estabelecimento do Estado de Israel, este universalismo abstrato serve para velar a história dos Judeus na Europa. Isto cumpre umha dupla funçom "purificadora": a violência historicamente perpetrada polos Europeus sobre os Judeus é apagada; ao mesmo tempo, os horrores do colonialismo europeu agora som atribuídos aos Judeus. Neste caso, o universalismo abstrato expressado por muitos antissionistas hoje torna-se numha ideologia de legitimaçom que ajuda a constituir umha espécie de anésia relativamente à longa história de ações, políticas e ideologias europeias face os Judeus, enquanto essa história, no essencial, continua. Os Judeus, mais umha vez, tornaram-se no objeto singular da indignaçom europeia. A solidariedade que a maioria de Judeus sentem em relaçom a outros Judeus, incluindo em Israel, compreensível depois do Holocausto, é agora criticada. Esta sorte de antissionismo tornou-se numha das bases para um programa com vista a erradicar a autodeterminaçom judia existente. Converge com algumhas formas de nacionalismo árabe, agora codificada como singularmente progressista.
Outra corrente da esquerda antissemita, esta vez fondamente antissemita, foi introduzida pola Uniom Soviética, particularmente nos julgamentos fantoche na Europa Oriental após a Segunda Guerra mundial. Isto foi particularmente dramático no caso do julgamento de Slansky, quando a maioria dos membros do Comité Central do Partido Comunista Checoslovaco foram julgados e depois fuzilados. Todos os cargos contra eles eram cargos antissemitas: eles careciam de raízes, eram cosmopolitas e faziam parte dumha conspiraçom global geral. Já que a Uniom Soviética nom podia oficialmente usar a linguagem do antissemitismo, a palavra "sionista" começou a ser utilizada com o mesmo significado ao do "judeu" utilizado polos antissemitas. Esses líderes do PC Checoslovaco, que nada tinham a ver com o sionismo, pois a maioria deles eram veteranos da Guerra Civil espanhola, foram afuzilados como sionistas.
Esta corrente de antissionismo antissemita foi importada para o Próximo Oriente durante a Guerra Fria, em parte polos serviços de inteligência de países como a Alemanha Oriental. Foi introduzida umha forma de antissemitismo que era considerada "legítima" pola esquerda, e designada por antissionismo.
As suas origens nada têm a ver com o movimento contra o estabelecimento de Israel. Com certeza, a populaçom árabe da Palestina reagiu negativamente e resistiu à imigraçom judia. Isto é bastante compreensível e, em si mesmo, nom é certamente antissemita. Mas estas correntes de antissionismo convergeram historicamente.

Em relaçom à terceira corrente, houve umha mudança nos últimos dez anos, começando polo próprio movimento palestiniano, relativamente à existência de Israel. Durante anos, a maioria de organizações palestinianas rejeitaram aceitar a existência de Israel. Porém, em 1988 a OLP decidiu que iria aceitar a existência de Israel. A segunda intifada, que começou em 2000, foi politicamente muito diferente da primeira, e implicou umha reversom dessa decisom.

Considero que esse foi um erro político fundamental, e acho que é extraordinário e lamentável que a esquerda tenha sido apanhada pola onda e esteja, a cada vez mais, a exigir a aboliçom de Israel. Porém, hoje no Próximo Oriente há quase tantos Judeus quanto Palestinianos. Qualquer estratégia baseada em analogias a situações como a Argélia ou a África do Sul simplesmente nom funciona, tanto a nível demográfico como a nível político e histórico.

Porque é que as pessoas nom conseguem apreender a situaçom tal como ela é atualmente, e tentam descobrir se existe algum tipo de resoluçom para aquilo que é essencialmente um conflito nacional que poderia libertar umha política progressista? Subordinar o conflito à categoria de colonialismo é desconhecer a situaçom. Ao contrário daqueles que limitaram a política progressista a umha luta nacional, eu penso que enquanto a luta estiver centrada na existência de Israel e na existência da Palestina, as lutas progressistas permanecem indeterminadas. As pessoas que consideram a luta contra a existência de Israel progressista estám a aceitar algo reacionário.

Na última década tem havido umha campanha concertada por parte dalguns Palestinianos, e conduzida no Ocidente pola esquerda, no sentido de colocar a existência de Israel novamente em cima da mesa. Entre outras cousas, isto tem como efeito o fortalecimento da direita em Israel.

Entre 1967 e 2000 a esquerda em Israel argumentou sempre que os palestinianos queriam a autodeterminaçom e que a noçom propagada pola direita de que eles pretendiam erradicar Israel era umha fantasia. Infelizmente, essa fantasia revelou no ano 2000 nom ser umha fantasia de todo, o que fortaleceu incomparavelmente a direita nas suas tentativas de impedir a criaçom dum Estado palestiniano. A direita israelita e a direita palestiniana estám a reforçar-se mutuamente, e a esquerda ocidental está apoiar aquilo que considero ser a direita palestiniana, os ultranacionalistas e os islamistas.

A ideia de que a cada naçom, excetuando os Judeus, deve ser permitida a autodeterminaçom conduz-nos de volta à Uniom Soviética. Basta apenas ler Estaline acerca da questom das nacionalidades.

P. Outra cousa invulgar nalgumhas atitudes atuais das correntes de esquerda em relaçom a Israel é a sua projeçom sobre Israel dum poder enorme e misterioso. Por exemplo, é frequentemente assumido como axiomático que Israel é a potência dominante do Próximo Oriente, e é igualmente argumentado que Israel possui um enorme poder nas camadas dirigentes dos EUA e do Reino Unido.
R. Israel é de longe ser tam forte como assumido. Porém, existe gente como o meu presente e antigos colegas na Universidade de Chicaco, John Mearsheimer e Stephen Walt, fortemente apoiados por círculos britânicos, que defendem que o único elemento que dirige a política americana no Próximo Oriente é Israel, medida polo lobby judeu. Eles realizam esta afirmaçom veemente na ausência de qualquer tentativa séria de analiar a política americana no Próximo Oriente desde 1945, que seguramente nom pode ser adequadamente compreendida estando assente em Israel. Assim sendo, por exemplo, eles ignoram completamente a política americana relativamente ao Irám nos últimos 75 anos. Os alicerces reais da política americana no Próximo Oriente após a Segunda Guerra mundial foram a Arábia Saudita e o Irám. Isto mudou nas últimas décadas, e os americanos nom têm a certeza hoje em dia acerca de como lider com isso e assegurar o Golfo para a prossecuçom dos seus objetivos. Todavia, há um livro escrito por esses dous académicos mencionados que alega que a política americana no Próximo Oriente foi conduzida mormente polo lobby judeu, sem se preocuparem em analisar seriamente as políticas das grandes potências em relaçom ao Próximo Oriente no século XX.

Já sustentei noutro lugar que este tipo de argumentaçom é antissemita. Isto nom tem nada a ver com as atitudes pessoais do povo envolvido, mas a sorte de enorme poder global atribuido aos Judeus (como, neste caso, o de manipularem ocultadamente o gigate, bondoso e ingénuo Tio Sam) é típico do pensamento antissemita moderno.

Dum modo mais geral, essa ideologia representa aquilo que eu chamo de forma fetichizada de anticapitalismo. Isto é, o poder misterioso do capital, que é intangível, global e que desestabiliza nações, regiões e a vida das pessoas, é atribuído os Judeus. O domínio abstrato do capitalismo é personificado no judeu. O antissemitismo é umha revolta contra o capital global, falsamente entendido como os Judeus. Esta abordagem pode também ajudar a explicar o crescimento do antissemitismo no Próximo Oriente nas últimas duas décadas. Nom penso que mencionar apenas o sofrimento dos Palestinianos seja umha explicaçom suficiente. Economicamente, o Próximo Oriente tem declinado significativamente nas últimas três décadas. Apenas a África Subsariana se encontra em piores condições. E isto ocorreu num momento em que os outros países e regiões, tidos como parte integrante do Terceiro Mundo há cinquenta anos, se desenvolveram rapidamente. Penso que o antissemitismo no Próximo Oriente, hoje em dia, é umha expressom nom apenas do conflito israelo-palestiniano, mas também dum sentimento geral de impotência exacerbado à luz destes desenvolvimentos globais.

Na direita alemã de há cem anos, a dominaçom global do capital costumava ser considerada como dos Judeus e da Grã Bretanha. Hoje em dia a Esquerda encara esse domínio como o de Israel e os EUA. O padrom de pensamento é o mesmo. Temos agora umha forma de antissemitismo que parece ser progressista e "anti-imperialista"; o que constitui um verdadeiro perigo para a esquerda.


O racismo raramente constitui um  perigo para a esquerda. A esquerda tem de ter cuidado para nom se tornar racista, mas isso nom é um perigo permanente porque o racismo nom possui a dimensom aparentemente emancipadora do antissemitismo.

P. A identificaçom do poder capitalista global com os Jueus e o Reino Unido remonta a umha época anterior aos nazis, as seções da esquerda britânica durante a Guerra dos Bóeres, condenada como sendo umha "guerra judaica", e ao movimento populista nos EUA, no final do século XIx.
R. Sim, e está a voltar nos EUA atualmente. Os chamados "tea parties", a denominada fúria popular (grass-roots) de direita acerca da crise financeira, possui traços marcadamente antissemitas.
P. O senhor defende que a URSS e os sistemas similares nom eram formas de emancipaçom do capitalismo, mas formas de capitalismo de Estado. Assim, a atitude geral da esquerda ao colocar-se do lado da URSS, por vezes dum modo bastante crítico, contra os EUA foi autodestrutiva. O senhor tem realçado a analogia entre o tipo de anti-imperialismo que se coloca do lado do Islám político, enquanto contrapoder dos EUA, e a velha Guerra Fria. Quais som as características comuns entre estas duas polarizações políticas? E as diferenças?
R. As diferenças som que a forma anterior de antiamericanismo estava ligada à promoçom das revoluções comunistas no Vietname, em Cuba,... O que quer que pensássemos disso na altura, ou como o encaremos retrospetivamente, a sua própria autocompreensom era a de que promovia um projeto emancipador. Os EUA eram severamente criticados nom apenas por serem umha grande potência, mas também porque estavam a impedir a emergência dumha ordem social mais progressista. Essa era a autocompreensom de muitos dos que solidarizavam com o Vietname ou com Cuba.

Hoje em dia, duvido que mesmo as pessoas que proclamavam "somos todos Hezbollah" ou "somos todos Hamas" acreditem que esses movimentos representam umha ordem social emancipadora. No melhor dos casos está envolvida umha reificaçom orientalista dos Árabes e/ou Muçulmanos enquanto Outro, mediante a qual o Outro, desta vez, é afirmado. Trata-se doutra indicaçom do sentimento histórico de impotência por parte da esquerda, da incapacidade para desenvolver um imaginário acerca de como poderia ser um futuro pós-capitalista. Nom possuindo qualquer visom dum futuro pós-capitalista, muitos substituíram qualquer conceçom de transformaçom por umha noçom reificada de "resistência". Qualquer cousa que "resista" aos EUA é encarada positivamente. Considero esta forma de pensamento extremamente questionável.

Mesmo no período anterior, quando predominava a solidariedade com o Vietname, Cuba,..., penso que a divisom do globo em dous campos teve consequências bastante negativas para a esquerda. A esquerda encontrou-se frequentemente numha posiçom em que era o espelho dos nacionalistas ocidentais.

Muitos elementos de esquerda tornaram-se nacionalistas do outro lado. A maior parte deles, com algumhas exceções significativas, era extremamente apologética do que se estava a passar nos países comunistas. O seu olhar crítico estava distorcido. Em vez de desenvolver umha forma de internacionalismo que fosse crítico de todas as relações existentes, a esquerda tornou-se apoiante dum dos lados numha outra versom do Grande Jogo.

Isto teve efeitos desastrosos nas faculdades críticas da esquerda, e nom apenas no caso dos comunistas. É absurdo que Michel Foucault tenha ido ao Irám e considerado a revoluçom dos mullahs como possuidora de aspectos progressistas.

Umha cousa que tornou a divisom em dous campos sedutora foi o  facto dos comunistas ocidentais tenderem a ser pessoas bastante progressistas, pessoas muito corajosas, frequentemente, que sofriam em virtude das suas tentativas, no seu próprio entendimento, de criar umha sociedade mais humana e progressista, e talvez mesmo umha sociedade socialista. Essas pessoas foram completamente instrumentalizadas; mas, por causa do duplo carácter do comunismo, era muito difícil para algumhas pessoas constatar isso. Os segmentos da esquerda social-democrata que se opunham a esses comunistas, e viam como eles eram manipulados, tornaram-se eles mesmos ideólogos do liberalismo  durante a Guerra Fria.

Julgo que a esquerda nom deveria ter apoiado nengum dos dous lados da divisom. Mas penso igualmente que a situaçom da esquerda é pior hoje em dia.

Entrevista original: "Zionism, anti-semitism and the left", in Solidarity, Vol. 3, Nº 166, fevereiro 2010, PP. 21-22.

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