sexta-feira, 16 de maio de 2014

GALIZA JUDAICA

Prof. Carlos Barros
Historiador da Universidade de Santiago de Compostela
Casa do Judeu de Quintela, Cabanelas, Carvalhinho. MANUEL GAGO
Segundo Américo Castro, cristãos, mouros e judeus constituiram Espanha na Idade Média, época histórica decisiva para a formaçom nacional da Galiza, ainda que nom podamos falar neste caso tam claramente numha convergência de três culturas, especialmente se considerarmos a praticamente nula presença árabe na Galiza medieval.

Dá-se o aparente paradoxo de que nom houve Mouros na Galiza histórica mas eles estám bem presentes na mentalidade popular como mouros imaginários, os seres míticos que habitam nos castros; enquanto sim houve judeus galegos e, no entanto, se recordam hoje em dia como algo alheio a nós, quando nom como umha maneira de escarnecer e maldizer a este ou àquele. Com esta exposiçom queremos contribuir para a recuperaçom da nossa historia real, quer dizer, plural.

Judiarias

As comunidades judias na Galiza medieval foram pouco numerosas mas avonde significativas na vida social de concelhos como Ourense, Ribadávia ou Allariz. Caso se conservasse mais documentaçom municipal daquele tempo com certeza confirmaríamos noutras cidades (na Corunha, por exemplo) a influência económica e política judaica. Contodo, a consequência mais proeminente da presença dos Judeus na Idade Média galega está nas mentalidades colectivas.

Conforme formos na Península para o Norte e Oeste diminui o número de judeus, se bem dispomos de mais dados sobre Galiza que sobre o resto da cornija cantábrica. No tocante ao tamanho, as judiarias galegas assemelham-se, portanto, mais à Europa do que à Espanha, e quando em 1391 se desatam as matanças de judeus na Andaluzia, Castela e Aragom, Galiza seguirá fiel à tradicional tolerância medieval entre cristãos e judeus até uns anos antes do édito de expulsom de 1492.

Precisamente nas listas de impostos reais de 1474 a 1491 aparecem comunidades judaicas em Alhariz, Baiona, Betanços, Coruña, Monforte, Ourense, Pontedeume, Ribadávia e Ribadeu. Outras fontes medievais falam em judeus em Tui, Lugo, Ponte Vedra... Aliás, está documentada presença judaica no mundo rural nos cartulários dos mosteiros de Cela Nova (século XI) e de Sobrado.


En 1492, do arcebispo de Santiago dependia a judiaria de Cacabelos no Berço, havia também judeus na mesma Compostela medieval? O mais importante historiador dos judeus na Espanha cristã, Yitzhak Baer, deixou escrito que "no lugar santo para toda a Cristandade onde se ia pregar no túmulo do apóstolo, só no século XV há constância da existência de judeus e em número escasso". Seja como for, o Caminho de Santiago, cosmopolita, esteve aberto aos judeus que sen dúvida o percorreram: no Códice Calixtino o Papa Leom interroga-se como pode haver alguém no mundo que "nom deseje amparar-se no patrocínio de Santiago" e passa lista a todas as nações -mormente bárbaras- que está a vir a Compostela, significativamente começa polos Francos e remata com os "Judeus e as demais gentes inumeráveis de todas as línguas"; confirma a existência de judeus peregrinos um hino do século XI em latim, grego e hebraico que o padre Fita publicou há anos e mais unha lápide encontrada em Leom onde, em hebraico, se conta como um judeu foi assassinado no Caminho de Santiago na época de Gelmires. Chegando à catedral os peregrinos judeus podiam contemplar no Pórtico da Gloria, e na Porta de Pratarias, os seus patriarcas Moisés e Aarom; os seus profetas Isaías, Geremias, Oseias, Joel, Amos, Obadias; o Rei David; e outras imagens que representam o povo judeu de forma bem diversa ao estereótipo antissemita que via acima de todo no povo de Israel o povo deicida que crucificou o filho do Deus. Outro signo mais da tolerância mútua entre ambas as religiões do livro no reino medieval da Galiza.

Passado o tempo, em pleno rigor inquisitorial, no século XVII, Santiago de Compostela será a única sé galega que tenha um estatuto de limpeza de sangue que obrigava a todos os aspirantes a entrar no cabido da Catedral a demonstrar que nom tinham sangue de judeu ou converso na sua linhagem...

Pegadas

Das referências aos judeus galegos que tiramos nas fontes narrativas, cabe sublinhar o que diz o cronista Froissart, que acompanhava as tropas do Duque de Lencastre que tomam Ribadávia en 1386: "Assim foi a vila de Ribadávia ganhada à forza, e houveram os que là entraram, grande botim de ouro e prata em especial nas casas dos Judeus". A impressom que teve o cronista francês da importância da judiaria de Ribadávia fez com que exagerasse notoriamente o número de judeus (1.500).

No tocante aos restos materiais, conservam-se três lápides do cemitério judaico da Corunha, anteriores ao século XII, com inscrições hebraicas de três defuntos chamados dona Justa, dona Çeti e Abrahám. Ao contrário, nada sabemos do que se encontrou em 1500 ao se remover o cemitério judaico de Alhariz (túmulos de pedra em forma de cadeira, lápides em hebraico, restos de corpos em posiçom sedente com vestimenta ritual e joias de ouro e prata). Do ponto de vista arqueológico está ainda todo por fazer relativamente aos cemitérios e sinagogas judaicas na Galiza.

Referências documentais ajudaram a localizar o prédio da sinagoga (na rúa que vai da Praça Maior à igreja da Madalena) e do bairro judeu de Ribadávia (entre o castelo e a muralha).

Noutros lugares da Galiza a memória da existência judaica está bem patente na toponímia. Mas onde se encontraram as lápides corunhesas, na cidade velha, temos unha rua chamada "Sinagoga"; parecida proximidade cemitério-casa do oraçom dá-se em Alhariz, onde é popularmente conhecida como "Sinagoga" a Rúa Acenhas. Umha aldeia da paróquia de Caberta (Mugia) tem o nome de Sinagoga, e assim mesmo fincas em Sobrado e Doncide (paróquia de Silva no município de Pol). Existem outros topónimos que provavelmente fazem referência a unha presença histórica judaica: a Rua Batizados em Santiago, o lugar de Sión (Sião) na paróquia de Ribeiras do Sor (município de Manhom), etc. O mesmo se poderia dizer da antroponímia: muitos dos nomes bíblicos (David, Salomom, Moisés, Abrahám, Jacob..), que na documentaçom medieval de Ourense e Lugo, por exemplo, pertencem a judeus, seguem em uso hoje, outros perderam-se como Judá e Donouro.

Galiza tolerante

Um sartego com a estrela de David e outras inscrições significativas, encontrado no lugar de Vilar (paróquia de Servoi, município de Castrelo do Vale), permite-nos datar a existência de judeus na Galiza desde o século IV até o final do século XV. Estamos em condições de afirmar que a tolerância dominou durante um milénio as relações entre cristãos e judeus. Já o fizeram notar outros autores que escreveram sobre os judeus galegos como a nota mais original da passagem do povo escolhido do Antigo Testamento pola Nossa Terra. Dizemos tolerância porque coexiste com manifestações de antijudaísmo (e por outro lado, de anticristianismo), que se mantêm a níveis suportáveis. Este domínio da hostilidade por parte do convívio tornou-se patente no século XV: enquanto se reproduziam ciclicamente pogroms no resto da península no reino da Galiza no apenas continuaram as relações pacíficas, mas nalguns lugares incrementaram-se. Na Galiza nom há nem matanças populares de judeus nen conversões forçadas ao cristianismo (até o grande êxodo de 1492).
Estrela de David na igreja da paróquia de Sta. Maria de Magazos, Viveiro
Existe um documento exemplar assinado a 20 de maio de 1289 polo concelho de Alhariz e os seus párocos, ante o representante real na vila, com Isaac Ismael, "Judeu Maor dos xudeus moradores en esta vila", para regular o convívio pacifico de cristãos e judeus. Muito depois, quando se agudizam as tensões sociais a tolerância chega a se transmutar em fraternizaçom. No Ourense do ano 1457 na festa de casamento dum fidalgo, os cristãoss convidam os judeus, contradizendo a legislaçom vigorante, e conseguem, aliás, a reconciliaçom de duas famílias judias enfrentadas; dez anos depois, em 1467, a direçom local dos irmandinhos bota um pregón para que "leigos e clérigos, judíos e mouros, fosen derribar o castelo Ramiro". Já na década de oitenta, o Concelho de Ourense resiste-se a aplicar o decreto que obrigava a afastar os judeus na Rua Nova (algúm deles refugia-se em 1488 em Alhariz para safar essa marxinación). Asim por diante até 1492.

Os Reis Católicos decretam a 31 de março de 1492 a expulsom nos reinos de Castela e Aragom de todos os judeus que nom se quiserem batizar. Temos para nós que os mais dos judeus galegos se converteram ao cristianismo, e seguiram a praticar clandestinamente a sua religiom com a conivência dos seus vizinhos cristãos. Outros exilaram-se para nom renegarem publicamente da fé dos seus antepassados. Assim sendo, o ourive da Corunha Isaac foi denunciado em 1493 por se embarcar para o exilo com ouro, prata e mais tesouros, o que estava proibido; nom foi o único caso, os representantes reais na Corunha, bem como mercadores e capitães de barcos do seu porto, resultaram ser cúmplices da fugida clandestina de judeus galegos e doutros lugares. Na linha dumha tradiçom de convívio que chocava na Galiza com a tradiçom de perseguiçom que tentava impor o conhecido decreto estatal e o estabelecimento da Inquisiçom. Faltava na Galiza umha vaga de antissemitismo popular que servisse ao Santo Ofício e ao novo Estado para apoiar e justificar o seu labor depuratório.

A Inquisiçom na Galiza

No reino da Galiza podemos considerar instalada a Santa Inquisiçom na altura de 1574 (o Tribunal de Santiago foi o último em se estabelecer), quase um século depois da sua fundaçom em Castela. Um reflexo serôdio pois do desfase medieval entre umha Galicia tolerante e umha Castela medieval cunha tendência mais marcada ao antijudaísmo. A resistência galega ao Santo Oficio é global, duradoura e num princípio bastante efetiva. Para além dumha constante e difusa resistência popular, a Inquisiçom que vinha de Castela tem múltiplos confrontos com os concelhos, os oficiais reais e a própria Igreja galega. De facto, o Tribunal nom encara decididamente na Galiza o problema dos judaizantes até que os imigrantes portugueses obrigam a tomar, no século XVII, cartas no assunto. Isto é, que depois da conversom forçosa de 1492 decorre quase um século antes de que sejam reprimidas as práticas religiosas e os costumes dos nossos judeu-conversos.

O processo inquisitorial de Ribadávia (1606-09) encetou com a denúncia feita por Jerónimo Bautista de Mena contra 200 vizinhos (incluída a sua família) por judaizarem e acabou com a condenaçom de 42 deles. Por enquanto, o tal Jerónimo, que chegara a estudar a lei de Moisés nas sinagogas de Veneza, Pisa e Tessalônica, portanto, um grande malsim (traidor) para os seus, apareceu morto na vila. As práticas denunciadas foram: trabalhar e vestir roupa limpa no sábado (o dia santo judaico), acender o candelabro e cambiar a muda da cama a véspera, nom comer carne de porco, sangrar a carne, jejuar em setembro, etc. O grupo mais numeroso dos judeu-conversos condenados na vila do Ávia eram jovens de 20 a 30 anos; os 77% dos culpados eram de Ribadávia e doutros lugares da Galiza, e 23% portugueses; no total, entre 1492 e 1606 a religiom judaica praticou-se e transmitiu-se de pais para filhos, mantendo-se para tal fim umha boa relaçom com as sinagogas da Itália, Grécia e França (Baiona). Escusado será dizer que a maioria dos judaizantes de Ribadávia detinham certa posiçom social: mercadores, regedores, funcionários, médicos, boticários, advogados, estudantes...

Em 1680, no Auto General de Fé celebrado em Madrid participam 21 judaizantes vizinhos da Galiza, aqui som maioria os procedentes de Portugal (como Juan Bautista Pereira, 37 anos, tratante, natural de Monforte de Lemos mas originário de Portugal).

Existem também casos de cristãos velhos convertidos ao judaísmo, Caro Baroja noticiou o caso dum clérigo da catedral de Ourense, Jacinto Vázquez Araújo, que em 1687 declarou a sua crença na lei de Moisés, sendo ato contínuo denunciado, foge a pé rumo para Madrid, mas fica preso pola Inquisiçom perante a qual declara voluntariamente por escrito, o que nom o livrou mais tarde da tortura porque nom se queria emendar. Confessou valorosamente Jacinto que "aunque toda su familia han sido Christianos viejos, este confte. quiere ser Judío nuevo". Nom tinha muitos conhecimentos da religiom judaica, salvo o que aprendera num panfleto antissemita que lera, mas reinvindicava que "en defensa desta Ley de Moyses se han sacrificado muchos hombres que a quemado el Santo Oficio de la Inquisición y mujeres que con ser del sexo fragil y pusilamines se han arrojado a las llamas". O nosso judeu novo cumpria a sua maneira com os ritos judaicos -mesmo no cárcere inquisitorial- e pedia a Deus nas suas orações liberdade e piedade para o povo de Israel "repartido por varias partes del mundo, y perseguido de los cristianos y otras naciones", dedicando os seus jejuns aos mártires da Inquisiçom. Depois de torturado, teimoso, berrava que queria morrer na lei de Moisés. Como tornava sempre à sua fé no judaísmo, cuidavam que endoidecera e mandaram vir aos médicos que, porém, acreditaram que estava no seu são juízo. Nos finais de 1688 foi condenado a cadeia perpétua e a levar o sambenito, degradado verbalmente, perdeu os seus bens e o seu hábito. Um personagem extraordinário digno da nossa memória colectiva.


Tradições

A imagem negativa dos judeus na Galiza é um fenómeno moderno, vinculado à perseguiçom levada a cabo pola Inquisiçom nos séculos XVII e XVIII; é entom quando começam a correr histórias imaginárias de rituais anticristãos: sacrifício dumha criança cristã (Lugo), imagens de Cristo açoitadas (Monforte, Ribadávia), profanaçom de hóstias consagradas (Ourense). Falsas acusações que alastraram a má fama do judeu, que passou a ser considerada palavra injuriosa e malsoante. Embora também a Inquisiçom teve muita má fama em determinados médios populares e cultos do Antigo Regime. Tradiçom alternativa que deu lugar no século XIX a celebrações reivindicativas do passado judeu e judeu-converso da Galiza.

A mais conhecida é a festa da História de Ribadávia, que tinha lugar em setembro, quando a Virgem do Portal, e consistia na representaçom por parte dos vizinhos dum episódio da história do povo de Israel, como a batalha contra os Filisteus, onde morre o rei Saul, berrando entom a todos os presentes o diretor da representaçom: "Chorai, filhos de Jerusalém, a morte do vosso rei Saul"; segundo conta Meruéndano. A Festa da Historia foi recuperada recentemente. Em 1992 foi representado o processo inquisitorial de 1606-1609 e a morte do malsim Jerómino Bautista de Mena. Em 1993 representou-se um casamento judaico.

Original: Galicia xudía, Santiago, Concelho de Santiago, 1994, 29 pp. (Folheto da exposiçom no Paço de Bendanha, abril/maio de 1994).

4 comentários:

  1. Excelente postagem, sou-lhe muito grato por ela. Compartilhei o link em um dos meus blogs educativos e também no mural do meu Facebook! Saudações do Brasil!

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  2. Muito esclarecedor o artigo. Ótimo!

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