domingo, 2 de março de 2014

OS EMBRULHOS IDEOLÓGICOS DA EXTREMA DIREITA

Alain Soral tece a sua teia

Por Evelyne Pieiller | LE MONDE DIPLOMATIQUE

A falta de ambições da esquerda ou a sua incapacidade para as realizar, incentiva a extrema direita para a desapossar das suas ideias mais promissoras. Abandonada por esta, injeta-lhe a sua veemência, a sua aspereza e as suas obsessões nacionais ou religiosas. Neste registo que entrelaça incansavelmente "esquerda do trabalho e direita dos valores", Alain Soral tornou-se numha estrela da Internet.

Todos junto dam as boas-vindas aos visitantes. À esquerda do ecrã, Hugo Chávez, Ernesto "Che" Guevara, Muammar Khadafi, Patrice Lumumba e Thomas Sankara, bem como a MM. Mahmoud Ahmadinejad, Fidel Castro e Vladimir Putin. À direita, Joana d'Arc e o criador desses contatos imediatos do terceiro grau, Alain Soral. Em pano de fundo preto, eles enquadram o nome do site, Igualdade e Reconciliaçom (E&R), e o seu lema: "Esquerda do trabalho e direita dos valores". Este último ocupa o posto 269 no ranking Alexa (considerado fiável) que classifica os sites Web franceses com base no tráfego que geram. No de Télérama ocupa lugar 260...

Guevara e o Sr. Putin? Chávez e a "direita dos valores"? Existem nevoeiros no ar político do tempo. Ou, dito doutro jeito, confusom ideológica. Eis a questom: o que implica ser de direita e o que implicar ser de esquerda?

O Mouvement des Entreprises de France (MEDEF) bate palmas calorosamente o Ministro da Economia e Finanças, o Sr. Pierre Moscovici, que veio afirmar na universidade de Verão do patronato: "Nós deveríamos estar lutando juntos". Alain de Benoist, cofundador do Grupo de Pesquisa e de Estudos para a Civilizaçom Europeia (Grécia), líder do que foi chamada de "Nova Direita", declara-se em prol da nacionalizaçom da banca, da criaçom dum sistema de crédito socializada, recusa o pagamento da dívida, e baseia-se em intelectuais progressistas como Emmanuel Todd, Perry Anderson ou os Economistas chocados (1). A Frente Nacional (FN) defende o protecionismo, juntamente com umha parte da esquerda radical, e fala, como a Frente de Esquerda (FG), na "soberania popular".

Assim, quando os sindicalistas ligados à esquerda, quando umha comunista, candidata sob as siglas da FG nas eleições legislativas em Marselha em 2012, escolhe candidatar-se sob a bandeira da FN, talvez seja preguiçoso considerar estas impressionantes, mas anedóticas, evoluções. Como foi a transferência para o FN dum percentual significativo de votos socialistas nas eleições legislativas parciais no segundo distrito de Oise, e nos de Villeneuve-sur-Lot. É mais o sinal dumha séria confusom.

Mas entom, o que significa esta confusom? É preciso, com Jacques Julliard, ver nisso o mistério dumha inflexom emocional, com o pano de fundo do "ceticismo a respeito dos meios dirigentes, misturando esquerda e direita" (2), ou a escolha de transcender as divisões, já que os "extremos" poderiam, ao fim e ao cabo, se juntar amigavelmente? Definido no início como "transcorrentes" e como instrumentos de resistência ao "sistema", os vídeos mensais de Soral no seu site, cujo público nom é, certamente, trivial, especialmente entre os jovens (quinze milhões de exibições para 382 vídeos), permitem esclarecer do que se trata.

Soral dirige-se, em nome próprio, aos cidadãos de boa vontade que tentam entender algo sobre toda este "bordel" , termo "soraliano". Num sofá, vestido de casual em t-shirt e concentrado, ele explica a situaçom: a atualidade e o sentido da história. O seu passado mostra a sua sensibilidade de artista: vários filmes e um romance. Mas também a sua coragem intelectual, pois a sua carreira política responde às tentações de muitos inquietos. Da adesom ao Partido Comunista (curta, ao que parece) na década de 1990 à Lista Antissionista fundada com o comediante Dieudonné para as eleições europeias de 2009, passando dous anos na Frente Nacional (2007-09), ele realizou sem medo paradoxos e ruturas. Ele retrata serenamente o seu "mal espírito" como fez o advogado Jacques Vergès, a quem cumprimentou estando presente durante o seu funeral (a 20 de agosto de 2013), ao lado do ex-ministro socialista Roland Dumas, o ex-ministro do governo Balladur, Michel Roussin, e de Dieudonné...

Adepto dos desportos de combate (pugilismo francês e inglês) ele apresenta-se, discreta mas com firmeza, como a simbiose dumha juventude prolongada, -caracterizada como é devido pola intensidade do seu questionamento, o nom-conformismo os seus engajamentos (e desengajamentos)-, e dumha pessoa quase média, confrontado à solidom heróica mas musculosa de quem que, sem partido, sem apoio, contra todos, tenta de ser esclarecedor. Estamos longe do pensador universitário ou do quadro político. O que facilita tanto o forrageamento ideológico, praticado por muitos usuários da Internet, amiudamente desprovidos da formaçom que davam ontem partidos ou sindicatos e que estruturava a reflexom.

É em torno de algumhas emoções e conceitos chave sobre os quais a proposta se organiza: ​​o sentimento de impotência perante a globalizaçom e a perda de autonomia dum país sujeito às leis da UE, a preocupaçom com as regressões económicas e sociais; o desconforto face os valores da modernidade autoproclamda progressista, a dificuldade de imaginar um futuro diferente. Sob o apadrinhamento intrepidamente conjunta  dumha santidade guerreira e de dirigentes políticos fora do consenso, Soral dá a sua análise e as suas respostas.

A obsessom com a moralidade e a naçom

Em primeiro lugar, é importante combater o "mundialismo", um "projeto ideológico que visa instaurar um governo mundial e a dissolver, em consequência, as nações, sob o pretexto da paz universal", passando pola "mercantilizaçom integral da humanidade"(3). Este mundialismo traduz-se numha "dominaçom oligárquica", que abafa a soberania popular e mantém o mito da onipotência do mercado, "como se isso nom fosse política, um equilíbrio de poder e um equilíbrio de classe" (vídeo, janeiro de 2013). A atribuiçom de direitos específicos para as "minorias oprimidas" vem, entom, para substituir as conquistas sociais colectivas e leva a umha balcanizaçom, que poderia levar a umha guerra civil: o testemunho mais vivo deta deriva seria a "leitura racial das relações sociais de souchiens contra árabes, todos abaixo da escala social, em vez de trabalhar contra o capital", e que torna os muçulmanos em "bodes expiatórios".

Em resumo, a Nova Ordem Mundial, também chamada de Império quer fazer triunfar umha democracia formal, "o poder dos mais ricos" (vídeo, maio de 2013), defendendo um igualitarismo abstrato que substitui as "questões sociais" polas da "questom da desigualdade social, da exploraçom de classes" (vídeo, maio-junho de 2013): brandir os direitos do homem justifica-a.

Portanto Soral propõe "sair da Uniom Europeia, sair da NATO e recuperar o controlo da nossa moeda (...) para tornar a França à sua soberania e à democracia um pouco do seu sentido". Combater a  "obsolescência dos Estados face à economia global". E introduzir o protecionismo.

Pode-se ver como esta leitura da situaçom geral nom choca àqueles que, como ele, querem dar cabo da "oligarquia da renda sobre o trabalho humano". Mesmo Soral poderia fazer acreditar que ele é, ao contrário do que ele afirma, "marxista" -haveria que estar tam distraídos-, mas à procura dumha "esquerda autêntica". Especialmente se acrescentarmos que ele condena o colonialismo, "traiçom da esquerda do universalismo francês" bem como o neocolonialismo, insiste sobre o facto da "manipulaçom das tensões étnico-sectárias" ser utilizada para desviar a luta de classes e deseja um mundo multipolar. No entanto, ele fala muito pouco nos movimentos sociais, na socializaçom dos meios de produçom..., parecendo mais inspirado na denúncia da "aliança cruzada da direita financeira e da esquerda libertária" que legitimam as elites e mídia...

É que a sua autêntica obsessom nom é a justiça social, mas o resgate da França  -"Eu quero salvar a França" (vídeo de 2012, Parte 3) e o que esta para ele representa. Noutras palavras, importa-se menos com a política do que com a moral, com a revoluçom menos que com a naçom. A moral, para o sentido que se pode dar à sua vida pessoal, a naçom, para o sentido que se pode dar à vida coletiva.

Se as relações de classe som um tópico onipresente nas suas observações, o seu estudo fica fraco. Porque a cerna da sua análise é apoiada por umha concepçom do homem que o liberalismo, sinónimo de modernidade, procurava destruir. O principal inimigo é o que incita ao "consumo compulsivo e ao individualismo" (Carta de E&R), ou seja, a "ideologia do mundo comercial". Muito mais do que a exploraçom, o que se condena no neoliberalismo é que ele produz "umha espécie de sociedade dedicada aos seus impulsos" (vídeo, maio de 2013), resultando num enfraquecimento do sentido do coletivo, e, portanto, da consciência política através do desenvolvimento de egoísmo, do espírito de competiçom e da busca do prazer. Mas só a naçom é "capaz de proteger os povos dos lucros cosmopolitas que nom têm nem pátria nem moral" e pervertem os valores que vam além da mera satisfaçom pessoal. O salto é brutal.

De que naçom se fala?

Obviamente, para "proteger os povos", deve ser a corporificaçom da rejeiçom do egoísmo e dos "lucros cosmopolitas". Isto implica, por um lado, que se trata dumha essência singular, o génio próprio dumha cultura particular. E, em segundo lugar, é preciso excluir o cosmopolitismo amoral.

Sagrada confissom. Da procura de soberania face, entre outras, às leis supranacionais, trata-se de usar umha noçom quase mística, com a pretensom de criar umha "frente de trabalho, patriótica e popular, contra todas as redes financeiras e o ultraliberalismo global" (4). "Comunidade nacional fraterna nacional, consciente da sua história e da sua cultura", na que se encontram "aqueles que querem umha distribuiçom mais justa do trabalho e da riqueza" e "aqueles que querem manter o que era bom, mesurado e de humano na tradiçom", essa tradiçom grego-cristã levaria à exigência da igualdade real. Para terminar com o materialismo, é necessário, segundo Soral, encontrar a força espiritual que lhe fazia contrapeso, representada tanto pola religiom quanto polo comunismo ou o universalismo francês: o senso da fraternidade, o respeito por si próprio e de outro, a consciência de ser um indivíduo ligado a um conjunto.

A naçom seria, portnato, umha entidade por natureza anticapitalista, da que estariam excluídos de facto todos os agentes, conscientes ou nom, do neoliberalismo: na esquerda, aqueles para quem a luta é reduzida para os "igualdade em direito", à direita, os que "querem manter seus privilégios". O que importa é a possibilidade juntar na partilha de valores comuns, maiores do que os apetites e características individuais. Portanto, nom importa o secularismo, tornado numha "religiom, a mais fanática de todas", nom importa a origem do cidadão -os franceses muçulmanos integrados "som umha oportunidade para a França" em vez de "esta nova geraçom de inadaptados, saídos dos guetos da marginalizaçom (...) portadores da liberal e criminosa ideologia americana". O inimigo da fraternidade é tanto o comunitarismo, em nome da igualdade "vitimária", quanto o improdutivo, o ganancioso, o gozador- o individualista. Todos os "progressistas" e todos os "reacionários " nom constituem grupos homogêneos.

É importante definir os verdadeiros contribuintes para umha sociedade desalienada da representaçom do mundo neolibeal: o autêntico povo, portador do espírito da naçom. Longe de falsos antagonismos, longe de divisões-clichés, ele inclui a pequena burguesia que pode estar perto do proletariado, o pequeno patrom que nom tem as mesmas práticas como o MEDEF. Todos juntos, camponeses, trabalhadores, pequenos empresários,... podem ir para umha "sociedade mutualista de pequenos produtores cidadãos", porque, para todos, "a responsabilidade económica e social -e, portanto, política- resulta da propriedade dos seus meios de produçom". Soral nom está longe de Pierre-Joseph Proudhon, nem de Pierre Poujade. Mas ele está muito longe de Karl Marx.

Um facilitador de desviamento

Esta sociedade "reconciliada", digna, poderia ser um alvo comum para a direita anti-liberal e a esquerda radical. "Existe umha direita moral que é, reparando bem nisso, a aliada da esquerda  económica e social. E, ao invés, umha esquerda amoral que se revela como a condiçom ideológica da direita económica na sua versom mais recente e brutal". "Esquerda do trabalho, direita dos valores": o slogan de E&R faz sentido. A esquerda social integra o senso da transcendência levado polos valores da naçom, e a luta de classes é abolida numha sociedade diversificada e coesa.

Fica por explicar a vitória do neoliberalismo, -incluído na sua empresa ideológica-, sobre a esquerda amoral. É muito simples: é devida à conspiraçom americano-sionista.

Se a democracia é umha farsa, se as teses em favor do neoliberalismo também estám tam fortemente propagadas, se a oposiçom é tam frequentemente enfraquecida, é porque redes ocultas infiltraram-se em todos os órgãos do... Império, neutralizando ou corrompendo a açom política: os jantares do Século (5) às "novas maçonarias pola hiperclasse que som os think tanks, estilo Bilderberg e a Trilateral", a oligarquia prepara e as suas manobras e a opiniom, enquanto que, de conspiraçom em conspiraçom, cria a ameaça terrorista com as Torres Gémeas ou a guerra civil na Síria. O que justifica o apoio de Soral à "resistência islâmica" e aos seus aliados, os únicos que se oporiam à dominaçom mundial desta casta...

No coraçom destas conspirações estariam, ligados à América rapaz, os "Judeus", nom errantes, mas por natureza estrangeiros à naçom, e, além disso, mergulhados no acúmulo de capital. A banca é judia, a imprensa é judia, o destrutor da unidade nacional é judeu... O ódio de Soral aos judeus é um ódio positivamente fascinado. Ele vê-os por toda parte. Obviamente, ele prefere facilmente falar em antissionismo ou de oposiçom à política de Israel. Mas isso é simplesmente antissemitismo, e nom umha expressom de apoio ao povo palestiniano ou um gosto marcado pola provocaçom supostamente libertadora.  Se ele reedita os clássicos do antissemitismo em Kontra kulture, a sua editora (Edouard Drumont, La France juive,...), é por convicçom ardente. Inequívoco.

No entanto, esse desencadeamento maníaco nom é suficiente para o desacreditar perante os seus seguidores. É que as teorias da conspiraçom, maçonaria, judaica, illuminati e outras conectam com esse grande sentimento de impotência hoje espalhado, acrescentando-se com os ataques, também muito frequentes, contra as elites e a oligarquia. Nom há dúvida de que existiram e existem, por vezes, arranjos realmente secretos (que dizer das ligações entre os Estados Unidos e certos elementos do patronato chileno na preparaçom do golpe de Estado que derrubou Salvador Allende?). Mas ainda é importante perguntar-se se esse tipo de reflexom, que se vangloria acima de todo como moral, por sobre os partidos, anticapitalista e nacionalista, muitas vezes acaba levando frequentemente a um populismo "vermelho-marrom", pouco anticapitalista, mas muito fortemente tingido de xenofobia, se nom de fascismo. Para acreditar a resposta está na história.


Seria, no entanto, frívolo achar que os seguidores de Sorel som todos semente do fascismo. Seria-o igualmente nom reparar no que, do seu discurso, é um "engranador" da confusom, um facilitador do desvio. É em torno da posta em paralelo dos valores societários e de questões sociais, bem como do retorno à naçom, que se joga o essencial das suas propostas e das suas consequências: umha visom aparentemente coerente dos estragos sociais e íntimos da modernidade liberal, que fornece os internatuas com a sua própria suspeita de serem tristes reacionários, enquanto os conforta no sentimento de pertencer a umha minoria  de esclarecidos. Por isso, talvez, nom é sem interesse para a esquerda determinada a criar as condições dumha verdadeira justiça social, lembrar que nada no seu discurso e objetivos devem ser confundidos com os da extrema-direita. Para fazer isso, seria melhor precisar a sua própria análise sobre estas questões, apesar dos confrontos no seu próprio campo.

Artigo de opiniom tirado de LE MONDE DIPLOMATIQUE. Traduzido para o galego-português por CAEIRO.
(1Eléments, no 146, Paris, janeiro-março de 2013.
(2Marianne, Paris, a 29 junho de 2013.
(3) Alain Soral, Comprendre l’Empire. Demain la gouvernance globale ou la révolte des nations  ?, Blanche, Paris, 2011. Todas as citações, salvo indicaçom contrária, remetem a esta referência.
(4Charte d’E&R. As outras citações do parágrafo estám igualmente tiradas desta carta.
(5) Ler François Denord, Paul Lagneau-Ymonet et Sylvain Thine, «  Aux dîners du Siècle, l’élite du pouvoir se restaure  », Le Monde diplomatique, fevereiro de 2011.
(6) Ler também o courrier des lecteurs na ediçom de dezembro de 2013.

2 comentários:

  1. Caro Caeiro, tenho para mim e desde há muito "uma chave" para resolver a questão esquerda/direita e que é de Alain: "Aquele que diz que não há diferenças entre a esquerda e a direita... é de direita!". Tenho-a confirmado ao longo da vida, acredite.

    cumprimentos
    Francisco Romão

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  2. Caro Francisco Romão, acho eu que o artigo reproduzido nom fala em termos (genéricos) de esquerda vs. direita, mas nas suas expressões mais extremas. Assim sendo, tenho para mim que em temas como o antissionismo moderno (forma politicamente correta do velho antissemitismo) as teses da extrema direita e da extrema esquerda se confundem. Algo tam velho como aquela lei hermética de que "os extremos se tocam".
    Apenas repare na evoluçom política do "intelectual" francês referido no artigo: militante comunista na década de 1990, membro do comité central da Frente Nacional (2007-09) e militante antissionista na atualidade. Mais informações sobre o caso em: http://fr.wikipedia.org/wiki/Alain_Soral
    Cumprimentos
    Caeiro

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